quarta-feira, março 29, 2006

Elvira escuta

Elvira escuta - José Marcelo de Andrade - Adaptação e interpretação: Luiz Cláudio



Tom: Lá maior.
        A     A7         D
Elvira escuta os meus gemidos
               E7            A    A7
Que aos teus ouvidos irão chegar.    
              D                A
Não sejas traidora, tem dó de mim
            E7                 A
Tem dó dest´alma que te sabe amar. 

          A    A7         D
Se tu me amas como eu te amo
         E7                A     A7
Eu te prometo não te desprezar.
              D               A
Não sejas traidora tem dó de mim
            A7                 A
Tem dó dest’alma que te sabe amar. 

       A             D
Teu coração é um rochedo
         E7           A    A7
Este rochedo é meu penar.
              D               A
Não sejas traidora tem dó de mim  
            A7                 A
Tem dó dest’alma que te sabe amar.

       A      A7      D
Sobe a escada bem devagar
        E7             A
Elvira dorme, pode acordar.
               D              A
Não sejas traidora tem dó de mim
            A7                 A
Tem dó dest’alma que te sabe amar. 

       A       A7        D
Ainda mesmo depois de morta
      E7              A    A7
A tua face eu irei beijar.
              D               A
Não sejas traidora tem dó de mim
            A7                 A
Tem dó dest’alma que te sabe amar 

Amo-te muito

João Chaves
Amo-te muito (modinha, 1910) - João Chaves - Interpretação de Berenice Chaves



-------------C--- G7
Amo-te muito
C
Como as flores amam
-------------------------Ebo---- G7
O frio orvalho que infinito chora
-------------Dm A7
Amo-te como
-----------------Dm--- Dm/C
O sabiá da praia
---------------G7----------------------- C--- C7
Numa sangüinea e deslumbrante aurora

-------------------F ----G7
Oh não te esqueças
------------------C---- A7
Que te amo assim
-------------------Dm---------- G7---- C--- (C7)
Oh não te esqueças nunca mais de mim (bis)

--------------C---- G7
Amo-te muito
-----------------------C
Como a onda, a praia
--------------------------Ebo---- G7
Que a praia, a onda a vem beijar
-------------Dm A7
Amo-te tanto
---------------------Dm ----Dm/C
Como a branca pérola
----------------G7---------------- C C7
Numas entranhas do infinito mar

---------------------F ---G7 ----------C ---A7
Oh não te esqueças que te amo assim
-------------------Dm --------G7-------- C (C7)
Oh não te esqueças nunca mais de mim

É a ti flor do céu

É a ti, flor do céu (modinha) - Teodomiro Alves Pereira e Modesto A. Ferreira - Interpretação: Zé Renato e Wagner Tiso:



É a ti flor do céu que me refiro
Neste trino de amor nesta canção
Vestal dos sonhos meus, por quem suspiro
E sinto palpitar meu coração

Oh! dias de risonha primaveras
Oh! noites de luar que tanto amei
Oh! tardes de verão ditosa era
Em que junto de ti amor gozei

Não te esqueças de mim por piedade
Um só dia, um só instante, um só momento
Não me lembro de ti sem ter saudades
Nem podes me fugir do pensamento

Quem me dera outra vez este passado
Esta quadra ditosa em que vivi
Quantas vezes eu na lira debruçado
Cantando em teu colo adormeci.

Zé Pereira

O "zé-pereira" é uma brincadeira carnavalesca introduzida no Rio de Janeiro em meados do século XIX por imigrantes portugueses, caracterizada pelo ir e vir de foliões, isoladamente ou em grupos, a bater bombos e zabumbas pelas ruas da fomra mais atroadora que pudessem conseguir.

Embora apontada pelo cronista da vida carioca Vieira Fazenda como criação de um morador da cidade de nome José Nogueira de Azevedo Paredes, que teria originado por corruptela o genérico zé-pereira, a brincadeira barulhenta constitui em verdade o prolongamento de costumes populares da região do Minho, em Portugal, onde há notícia da presença desses tocadores de 'zabombas" à frente de procissões e festas da igreja, desde o século XVI.

No Rio de Janeiro uma peça musicada francesa intitulada Les Pompiers de Nanterre (Os bombeiros de Nanterre), com música de Antonin Louis, ia tornar tão popular sua fanfarra de abertura, que no mesmo ano receberia versão carioca cantada por seu autor, o comediante Francisaco Correia Vasques, na cena cômica intitulada Zé-pereira carnavalesco, representada no Teatro Fênix, do Rio de Janeiro, em 1869.

Apoiada agora pela melodia francesa na marcação barulhenta característica dos zabumbas dos zé-pereiras de rua - "E viva o zé-pereira / Pois ninguém faz mal / E viva a bebedeira / Nos dias de Carnaval / Zim balalá, zim balalá / E viva o Carnaval" - a cantiga viria a transformar-se, sob as mais variadas versões dos versos, a "primeira cantiguinha e música do Carnaval Brasileiro", conforme o historiador de música carnavalesca carioca Edigar de Alencar, em seu livro Claridade e sombra na música do povo (pág. 33).

A extrema popularidade da melodia breve, feita para explodir nos metais, tornou o zé-pereira, a partir da década de 1930, a música obrigatória de abertura dos bailes de Carnaval com orquestra.


Fonte: Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora.

O Entrudo


Avô e pai do Carnaval, o Entrudo era festejado antes de Cristo para comemorar a chegada da primavera. D. Pedro II e membros da família imperial gostavam de participar do Entrudo. É lógico que o faziam em palácio, que o imperador não iria sair pelas ruas molhando suas irmãs. A brincadeira que precedeu o Carnaval era adotada em todo o país, embora às vezes beirasse à violência e algumas leis municipais proibissem a prática considerada nociva.


Oriundo de Portugal, onde acontecia entre o Sábado Gordo e a quarta-feira de Cinzas, na abertura da primavera, o Entrudo era realizado entre famílias amigas ou pessoas conhecidas, ganhando mais tarde as ruas, envolvendo desconhecidos, atingidos por baldes de água, farinha, cinzas, lama, onde quer que a vítima se encontrasse. Casas ficavam inundadas, passantes nas ruas encharcados e todos, senhores e escravos, senhorinhas e mucamas, se divertiam.

Já mais civilizado, o costume chegou ao início do século XX, as pessoas sendo atingidas por limõezinhos de cera, cheios de água perfumada. Até o Carnaval se impor no país.

Diário de Thomas Ewbank sobre o Entrudo

Dia 21/02

"Durante a semana passada, encontrei à venda, aqui e acolá, bolas coloridas expostas sobre pratos. As verdes poderiam confundir-se com pequenas maçãs, as amarelas com laranjas e limão. Algumas têm a forma de peras e outras de melão. O conhecimento que tive de algumas esta manhã eliminou a indiferença com que vinha passando a seu lado. Outro artigo também chamou-me a atenção. Tratava-se do amido nativo, não granulado como o nosso, mas sim um pó extraordinariamente branco e fino, colocado em cilindros de papel de quinze centímetros de comprimento por trinta de diâmetro. Para usá-lo, abre-se uma das extremidades do cilindro e deixa-se o pó sair.

Enquanto estava sentado tomando o seu café da manhã, S. passou por trás da cadeira de J. e, com grande espanto meu, esvaziou um par de cilindros sobre a cabeça e os ombros do mesmo. A operação foi realizada tão silenciosamente e o pó caiu tão leve que J. não percebeu o acontecido, senão quando um punhado de pó lhe foi aplicado ao rosto e às orelhas. Cuspiu, ergueu-se e, meio cego, foi saudado com esguichos de líquidos de uma garrafa de água da colônia de gargalo comprido. Meio encolerizado e entre muitas risadas, efetuou uma rápida retirada, vestiu-se e saiu para a cidade.

Enquanto perguntava a mim mesmo o que significaria tal coisa, senti caírem de minha testa uma ou duas partículas. Erguendo a mão verifiquei que meus cabelos também haviam sido cobertos de pó. Meus gritos provocaram gritaria geral. Levantei-me para fugir, mas isso fora previsto e a única porta através da qual podia escapar encontrava-se fechada à chave. Cercado agora por um exército de inimigos femininos, esquivei-me e corri até me sentir quase exausto, tentando fugir aos incessantes ataques de amido e água. Finalmente protestei que se a desonesta guerra continuasse, eu deveria chegar e chegaria a um corpo a corpo e, "vi et armis", capturaria e utilizaria contra o inimigo a sua própria artilharia. Tais ameaças foram recebidas com novos ruídos de alegria e novos ataques. Finalmente todos concordaram com um armistício, que se prolongaria durante aquele dia. Contaram-me então que o entrudo começava no dia seguinte quando os membros de todas as classes, dentro ou fora das casas, empoeiram e borrifam uns aos outros, sendo habitual fazer um pouco disso no dia anterior à guisa de prefácio.

Retirei-me para trocar roupa, mas não tinha ainda dado cinco passos quando fui assaltado por uma tempestade de bolas coloridas carregadas com algum líquido e semelhante às que eu notara na cidade. Surpreendido diante dessa violação declarada de um compromisso e pelos fragmentos vermelhos e azuis com que eu for a salpicado, não perdi tempo em chegar a meu quarto e fechar a porta. Tirei da estante um antigo dicionário português para obter informações. De acordo com o mesmo, entrudo ou intrudo deriva-se do latim introitu – entrada ou princípio. O dicionário descrevia o festival como algo em que, como bacantes, as pessoas brincam, festejam-se, dançam e fazem travessuras dentro das casas, enquanto for a realizam toda espécie de brincadeiras, molhando e empoeirando umas às outras. Sobre a origem da festa – da qual eu já experimentara um pouco antecipadamente – não pude descobrir nada. Nem o vigário nem qualquer outra pessoa a quem perguntei, puderam dar-me o menor detalhe sobre sua história. Admite-se, porém, que date de épocas remotas.

Talvez seja de perguntar se o entrudo e o carnaval da Itália sejam a mesma cousa. Embora ambos estejam associados ao grande jejum da Quaresma, existe entre eles grandes pontos de divergência aparente. O primeiro, em sua etimologia, não faz referência à abstinência de carne, de que o último é uma expressão literal. Carni, carne; vale, adeus. A época do carnaval estende-se desde primeiro de janeiro até o princípio da Quaresma, ao passo que o entrudo se realiza na parte final de fevereiro e dura apenas três dias, principiando invariavelmente no domingo que prece à quarta-feira de cinzas. Além disso, o lançamento de pós e água é sua característica especial e o mais destacado de seus ritos.

As bolas de entrudo, como são chamados aqueles objetos coloridos, ao invés de serem os frutos com que se parecem, são apenas cascas de cera cheias de água. Têm resistência suficiente para conter o líquido e para serem delicadamente apanhadas e lançadas a considerável distância. Da mesma forma que outras bombas fatais, explodem quando atingem o alvo; a cera fragmenta-se então e fica em sua maior parte grudada onde atinge. Recebi como presente espécimes de superior qualidade, em forma de garrafa ou jarro de mesa e decorados com pintura e douração. O gargalo era fechado numa imitação de rolhas seladas. Para serem utilizadas, são carregadas com água de colônia ou outros líquidos perfumados.

Dia 22/02

Hoje é dia do entrudo. Ao se levantar, meu amigo R. encontrou as extremidades inferiores de suas calças costuradas. Não é anormal colocar meia dúzia de bolas em cada perna, mas como R. encontra-se bastante indisposto, foram-lhe poupadas essas singulares manifestações de afeição e banhos de pé. Por ocasião dos cumprimentos habituais, esmagaram-me uma ou duas bolas na mão. Alguém encontrou seu café da manhã sem açúcar, outro achou o seu com sal e um terceiro começou a tirar fios da boca, o que causou novas explosões de riso; nos dois pratos de torradas todos os pedaços haviam sido envoltos em fios finos, de tal forma que os dentes de quem os comesse fatalmente ficariam presos àquela rede de fios. Alguns negociantes estrangeiros pararam, a caminho do Jardim Botânico. T. convidou-os a entrar. Os simplórios aceitaram! Pouco depois seus trajes de montaria estavam transformados em trajes de banho. Um deles saiu sem chapéu e afastou-se de cabeça descoberta! Voltou porém durante a tarde com um escravo trazendo uma grande cesta de projéteis de cereais e, entrando calmamente pela retaguarda, pagou com juros a seus adversários.

O vigário entrou e foi recebido com água de colônia. Sua sotaina porém foi poupada aos ataques do amigo. Mencionou então vários casos em que ficara quase afogado após receber as mais solenes promessas de que não seria molestado. Acreditei realmente e, voltando-me para algumas senhoras, perguntei-lhes como podiam, em um domingo, mentir assim… "Oh!", responderam-me, "As mentiras do entrudo não são pecados". Não é possível acreditar em coisa alguma enquanto dura o entrudo. O padre prudentemente safou-se; não ousou ficar para o jantar, pois seus aposentos poderiam ser roubados por amigos que em seu nome iriam buscar tudo que lá houvesse de valioso, dona F., por meio de uma esperteza dessa espécie, conseguiu uma dúzia de garrafas de cerveja do carpinteiro de J., que as tinha sob sua guarda. Ele próprio pregou uma peça no vigário no ano passado. Além disso, com o auxílio de um escravo, privou um amigo de um peru e várias outras aves, que foram servidas num jantar em que o próprio proprietário e sua família supunham que fossem convidados sem sonhar sequer que haviam contribuído para o ágape. Era costume colocar diante dos comensais pernis de madeira, pastéis de areia, doces e pudins de materias não comestíveis, pratos dos quais saltavam sapos, etc. No entanto, o entrudo, como outros festivais, não é mantido da mesma forma que outrora.

O senhor F. levantou-se para sair, mas foi convencido a sentar-se de novo em sua cadeira sobre a qual um vizinho colocara uma quantidade de farinha e bolas de água. Ergueu-se de um salto quando esse ninho de ovos foi esmagado e os autores da brincadeira tiveram convulsões de riso. A algazarra não esmoreceu com o seu jeito de limpar as partes afetadas Achando impossível permanecer, despediu-se com bom humor, acenando com uma das mãos, enquanto com a outra colocava o chapéu na cabeça – para cair em nova armadilha. O chapéu estava cheio dos ingredientes habituais do dia. Duas extremidades de sua pessoa encontravam-se agora nas mesmas condições em que a cabeça de dom Quixote, quando pediu inesperadamente seu elmo, num momento inconveniente para Sancho entregá-lo.

Retirando-me para meu quarto, encontrei uma senhora desconhecida escrevendo sobre a mesa. Parei e dirigi-lhe a palavra. Não deu resposta alguma, nem fez qualquer movimento. Avancei então. A intrusa era apenas um travesseiro ao qual haviam adicionado mangas, saias, gorros, xale, etc. muito artisticamente. Abrindo as gavetas, verifiquei que as mangas e os colarinhos de todas as camisas estavam costurados, enquanto as outras peças de roupas encontravam-se também hermeticamente fechadas, de tal forma que seria necessário muito tempo ou paciência para vesti-las.

As pessoas de ambos os sexos são peritas em acalmar uma vítima após o ataque e fazê-la abandonar sua atitude de reação. As senhoras mostram as palmas da mão abertas, esfregam-nas no corpo, para provar que não têm projéteis ocultos, sentam-se ao lado da vítima, manifestam cansaço e dizem que um pouco de brincadeira é bastante bom, mas seu excesso é uma tolice e uma vulgaridade; mostram-se inocentes, como madonas e concluem dizendo: "Chega de entrudo". Desfazem-se as suspeitas, mas em dez vezes contra uma, naquele mesmo momento, a vítima recebe no rosto um par de bolas de cera, cheias de água com sabão ou é alvo de um canudo de um amigo. A bela inimiga afasta-se da vítima com um grito e causa-lhe nova surpresa. Retira de sua pessoa miríades de bolas e canudos, até forçar a vítima à conclusão de que é feita de tais coisas ou tem consigo alguma máquina para produzi-las.

É costume também enviar pessoas em missões que só podem ser consideradas idiotas. Assim, por exemplo, uma pessoa de boa fé é mandada tratar do que imagina ser um assunto confidencial de grande importância para seu amigo – tomar dinheiro emprestado, por exemplo. A carta que leva em síntese: "Envie o tolo para o senhor B. e peça-lhe para enviá-lo a outro, com o mesmo pedido!"

Aconteceu o caso de uma família ser banqueteada com suas próprias vitualhas. Um guloso reverendo vingou-se de uma peça semelhante que lhe haviam pregado, aproveitando-se prodigamente da mesa de um vizinho. Sua hilariedade foi maior quando um esplêndido bolo foi trazido e colocado à sua frente. Com os olhos brilhantes investiu decisivamente sobre o bolo e, quando três quartos do mesmo já haviam sido consumidos, uma insinuação fê-lo levantar-se, permanecer em pé horrorizado e pedir paciência! O bolo – presente valiosíssimo de uma amiga – fora surrupiado de sua própria despensa.

Caminhei em direção do Passeio e vi alguns indivíduos serem molestados. Um cavalheiro vestindo terno novo recebeu duas ou três bolas e indignou-se deveras; dirigiu-me algumas observações e apontou para a janela de onde haviam partido as bolas. É inútil ficar encolerizados, pois aqueles que o fazem terão sua cólera refrescada por um chuveiro frio.

Os jovens aqui e acolá brincam com seringas. Há algum tempo notei enormes aparelhos de lata pendurados à porta dos funileiros e certa vez encontrei um indivíduo levando um deles para casa. Desejando saber para que eram destinados, detive-me um dia a examiná-los. Tudo o que pude saber do sorridente profissional foi que o preço de cada um era de dois mil réis. Eram seringas de entrudo de um ou dois litros. Os jovens marotos negros, que as enchem nos esgotos, raramente molestam qualquer pessoa que não seja da sua cor. Os rapazes brancos, porém, não têm cerimônia em molhar os etíopes. B. falou-me de alguns conhecidos seus que ocultavam as bombas no jardim para saudarem com ele seus amigos. Ele próprio tinha uma delas, mas estava desarranjada.

A ilustração, de um artista do Rio, representa magnificamente uma cena de entrudo nas ruas. Vi certa vez um negro carregando água da fonte da Carioca ser atacado precisamente da mesma maneira assim representada. O negro tropeçou e caiu de cabeça para frente. Felizmente sem se ferir. Retirando-me já à noite, não pude encontrar meios de me deitar na cama. Os lençóis e as colchas haviam sido transformados em um saco, cuja boca fechada estava por baixo do travesseiro. Acendendo de novo o candeeiro, desmanchei a costura e finalmente deitei-me para descansar, exausto do entrudo e considerando que ainda devia ser grato por não ter encontrado um monte de bolas no fundo do saco.

As puerilidades do entrudo não seriam dignas de menção se não ilustrassem costumes antigos. Da mesma forma que outros divertimentos, sobreviveram às instituições que deviam comemorar, o que é muito natural, pois todas as pessoas apreciam divertimentos e alegrias.

Têm sido freqüentemente observadas coincidências notáveis na língua, costumes e outras questões que estabelecem uma intimidade, senão identidade, entre os ancestrais dos povos da Europa Ocidental e da Ásia Central. Não tenho conhecimento de que o entrudo tenha tido quanto à sua origem explicação desta maneira. Parece, porém, haver pouca dúvida de que seja o mesmo Hohlee do Indostão – festa que data de épocas míticas e conseqüentemente se envolve em densa obscuridade.

Alguns escritores supõe que o Hohlee refere-se à volta vitoriosa de um famoso herói após a batalha. Outros pensam que se baseia nas orgias de Krishnu, deus mais licencioso que o Júpiter grego. Outros ainda imaginam que se refere ao encerramento do ano velho e à aproximação da primavera, quando a natureza espalha suas flores pela terra. O epíteto de "purpúreo" foi dado à primavera pelos poetas antigos e a mesma estação é caracterizada pelo pó vermelho que os hindus, ao celebrarem o Hohlee, lançam uns sobre os outros.

Um relatório escrito da participação que teve na celebração deste festival na Corte de um princípe hindu é dado pelo senhor Broughton, que diz:

"Celebrar o Hohlee consiste em lançar uma certa quantidade de farinha feita de uma noz aquática chamada singara e colorida com tinta vermelha: essa farinha chama-se abeer e o principal divertimento é lançá-la aos olhos, à boca e ao nariz dos foliões e enlameá-los completamente com água tingida de cor de laranja. A abeer é muitas vezes misturada com talco em pó, para fazê-la brilhar, e quando penetra nos olhos causa bastante dor. É algumas vezes encerrada em pequenos glóbulos feitos de um material gelatinoso mais ou menos do tamanho de um ovo, com os quais é posssível fazer boa pontaria contra aqueles a quem se deseja atingir; necessitam porém ser manejados habilmente, pois rompem ao mais ligeiro contato…

Poucos minutos depois de termos sentado, grandes bandejas de lata, cheias de abeer e das pequenas bolas já descritas foram trazidas e colocadas diante do grupo, juntamente com água amarelada e uma grande seringa de prata para cada indivíduo. O Mha Raj iniciou a brincadeira atirando um pouco de água vermelha ou amarela sobre nós, com goolabdans – pequenas vasilhas de prata para borrifar água de rosas nas visitas de cerimônia. Todos começaram então a lançar abeer e a orvalhar seus vizinhos. É contra a etiqueta qualquer coisa contra o Raj; no entanto já lhe havíamos dito que tínhamos tomado a resolução de atacar quem quer que nos atacasse e, com bom humor, respondeu que "com todo o seu coração estava preparado para nos enfrentar e disposto a apostar quem atacava melhor". Verificamos, porém, logo que com ele não tínhamos a menor probabilidade, pois além de seus servidores segurarem um pano diante de seu rosto, tinham-lhe posto na mão uma mangueira de bomba de incêndio, cheia de água amarela e operada por meia dúzia de homens. Com esta arma atacou os que se encontravam em torno, com tal resultado que dentro de algum tempo não havia na barraca um único homem que tivesse seca qualquer parte do corpo.

Às vezes dirigia a água contra os que estavam sentados a seu lado com tal força que não era fácil à pessoa conservar-se sentada. Toda oposição a esse formidável aparelho seria fútil. Pazadas inteiras de abeer eram lançadas, seguidas imediatamente por um esguicho de água amarela, de tal forma que éramos alternadamente empoeirados e ensopados, até que o chão em que nos sentávamos tivesse ficado coberto com algumas polegadas de espessura de uma espécie de lama cor de rosa e alaranjada. Nunca testemunharia em minha vida cena semelhante.

Imaginai grupos sucessivos de dançarinos, enfeitados com fitas de ouro e prata, com seus vistosos enfeites manchados de abeer e gotejantes como náiades, com água cor de laranja – cantando agora as canções do Hohlee, com todas as árias da libertinagem e pouco depois gritando com afetadas exclamações, quando recebiam um novo jato de água de parte do Raj; a dissonância dos tambores, trombetas, violinos e címbalos, tocando como se tentassem apenas abafar os outros ruídos que se ouviam ao redor; o triunfo daqueles que lançavam com êxito a abeer e os clamores das vítimas dos ataques; as grandes explosões de risos e os aplausos que se ouviam por todos os lados entre a multidão alegre; imaginai se puderdes tal reunião de objetos extraordinários, em seguida pintai-os com duas brilhantes pinceladas de róseo e amarelo, e tereis uma idéia da cena, que vai além absolutamente de qualquer descrição".

Em outros pontos o entrudo e o Hohlee concordam. O último, ao que nos informa "é realizado quase na mesma época que nossa quarta-feira de cinzas e também precede a Quaresma ou temporada de expiação hindu" – coincidência de época e finalidades, tornada ainda mais notável pelo fato de ambos os festivais serem celebrados com poeira e água, com bolas e seringas. O Hohlee é celebrado por todas as classes na India inteira, constituindo uma oportunidade de divertimento universal. Entre suas principais brincadeiras incluem-se as que entre nós caracterizam o primeiro de abril.

Em diversos aspectos o festival asiático assemelha-se à antiga Saturnália e ao moderno carnaval, sendo permitidas as maiores liberdades às pessoas de todas as categorias. Já foi comparado ao Hilaria celebrado em Roma no equinócio vernal em honra da mãe dos deuses, quando sua estátua era levada em procissão acompanhada por pessoas fantasiadas que por seus trajes e maneiras assumiam então a máscara da personalidade que lhes agradava.

Na verdade quase todas as nossas antigas festas religiosas são ligadas a instituições semelhantes da India, Egito, Grécia e Roma.

Para concluir este curioso assunto, deve-se recordar que nos últimos anos a borracha da India tem sido aplicada a uma multidão de finalidades úteis. Contribui com numerosos aparelhos valiosos para a ciência. Garrafas de borracha constituem uma espécie nova e única de instrumentos de exaustão e compressão. Fazem-se também com borracha cintas e ventosas assim como substitutos para seringas. Esta última invenção é devida aos aborígenes do norte do Brasil. No Pará, região da borracha, as seringas de goma elástica são comuns desde há muito tempo, e durante o entrudo podem ser vistas nas mãos dos índios, dos brancos e dos negros.

É também bastante curioso o fato de ser lançada pelos foliões uma terra ou ocre amarelo, assim como amido de caçava."


Fontes: História do Samba - Editora Globo; EWBANK, Thomas: 'A vida no Brasil' ou 'Diário de uma visita à terra do cacaueiro e das palmeiras'. Belo Horizonte / São Paulo, Editora Itatiaia / Editora da Universidade de São Paulo, 1976. Reconquista do Brasil, 26.

Melo Morais Filho

Melo Morais Filho (Alexandre José de Melo Morais Filho), poeta, cronista e folclorista, nasceu em Salvador (BA), em 23/02/1843 e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), em 01/04/1919. Formou-se em medicina em Bruxelas, Bélgica, e revalidou o diploma no Rio de Janeiro em 1876. Diretor do Arquivo Municipal, aposentou-se em 1918. Colaborador de jornais e revistas, deixou grande bibliografia etnográfica e folclórica.

Foi o primeiro tradicionalista do seu tempo. encabeçando campanha pela valoriazação de festas, autos e bailes populares, muitos dos quais encenou.

Publicou Cancioneiro dos ciganos, Rio de Janeiro, 1885; Ciganos no Brasil, Rio de Janeiro, 1886. Festas populares do Brasil, Rio de Janeiro, 1888, Festas do Natal, Rio de Janeiro, 1895; Cantares brasileiros: cancioneiro fluminense, 2 volumes, Rio de Janeiro, 1900; Festas e tradições populares no Brasil, nova edição, revista e aumentada, Rio de Janeiro, 1901 (3a. ed., revisão e notas de Luís da Câmara Cascudo, Rio de Janeiro, 1946); Serenatas e saraus (Coleção de autos populares, lundus, recitativos, modinhas, duetos, serenatas, barcarolas, etc.), 3 volumes, 1901-1902; Histórias e costumes, Rio de Janeiro, 1904; Fatos e memórias, Rio de Janeiro, 1904; Quadros e crônicas, Rio de Janeiro, s.d.

O pai do grande poeta e compositor Vinícius de Moraes era sobrinho de Melo Moraes Filho.


Fonte: Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora e Publifolha.