sábado, março 24, 2012

Zé Caradípia

Zé Caradípia (José Luiz Fernandes), compositor, cantor e violonista, nasceu em Canoas, RS, em 19/2/1956. Ingressou no cenário artístico de Porto Alegre em 1976, como integrante do grupo Cordas & Rimas.

Ao longo de sua trajetória, participou de eventos culturais, festivais de música, feiras e mostras musicais pelo Brasil. Apresentou-se em teatros do Rio Grande do Sul (OSPA, São Pedro, Renascença, Álvaro Moreira, Araújo Vianna), Santa Catarina, São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Goiás e Pernambuco, além de Itália, Suíça e Alemanha.

Na década de 1980, obteve reconhecimento nacional como o autor de Asa morena, gravada com sucesso por Zizi Possi. A canção foi citada como destaque no ano de 1982 no livro “A Canção no Tempo”, de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello.

Em 1996, lançou seu primeiro CD, Onda Forte (Independente), contendo suas composições Recado brasileiro, Esses negros, Apocalipse nouveau, Ouriço d'olho, Pandora, Otrelon Tele, Música gozada, Canção do lado emocionado, Diamante, Tu blues, Calor de outono, Após bares e a faixa-título, além de Asa morena.

Em 2001, lançou o CD Retina da alma, gravado ao vivo no Teatro Renascença, em Porto Alegre, registrando canções próprias: Samba da amoreira, Vermelho paixão, Que seja assim, Carinho aos quatro ventos, Enfeitiçada, Esses moços, Perfume exemplar, Retina da alma, Chuva de outono e Madeixa.

Apresentou-se, nesse mesmo ano, em Buenos Aires, juntamente com outros artistas porto-alegrenses, no projeto de intercâmbio cultural realizado através da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre com a Prefeitura de Buenos Aires. Nesse mesmo ano, participou, como intérprete, do CD Paralelo 30 – ontem e hoje, coletânea independente de música popular do Rio Grande do Sul, ao lado de Bebeto Alves, Claudio Vera Cruz, Gelson Oliveira, Nelson Coelho de Castro e Raul Elwanger. O disco foi contemplado com o Prêmio Açorianos, na categoria Melhor Disco de MPB de 2001.

Em 2003, lançou o CD Pintando falas, com show no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. No repertório, a regravação de Asa morena, além de Na ribanceira, No riso das crianças, Sara cigana, Céu azulão, Cissa, Tâmaras frescas, Via cristalina, Tudo ali e Olhos claros.

Teve canções gravadas por intérpretes gaúchos, como Loma (Enfeitiçada e Corpo a fora), Nanci Araújo (Vermelho Paixão) e Flora Almeida (Estrela nova).

Obras

Apocalipse nouveau, Após bares, Asa morena, Calor de outono, Canção do lado emocionado, Carinho aos quatro ventos, Céu azulão, Chuva de outono, Cissa, Diamante, Enfeitiçada, Esses moços, Esses negros, Madeixa, Música gozada, Na ribanceira, No riso das crianças, Olhos claros, Onda forte, Otrelon Tele, Ouriço d'olho, Pandora, Perfume exemplar, Pintando falas, Que seja assim, Recado brasileiro, Retina da alma, Samba da amoreira, Sara cigana, Tâmaras frescas, Tu blues, Tudo ali, Vermelho paixão, Via cristalina.

Discografia

(2003) Pintando falas • Agevê Music • CD
(2001) Retina da alma • Independente • CD
(2001) Paralelo 30 - Ontem e hoje • Independente • CD
(1996) Onda forte • Independente • CD

Fonte: Dicionário Cravo Albin da MPB

Funeral de Calça Larga

Joaquim Casemiro
Quando um sambista ao invés de “exalar o último suspiro” (como é das praxes no preciosismo da formulação literária) apenas, no seu linguajar pitoresco, “abotoa o palitó”, o sentir de sua gente não entristece a música. Os tamborins, os pandeiros, continuam a ser batidos na mesma cadência, apenas sem o allegro empolgante, de alvoroço. O seu funeral se faz com tristeza, pesarosamente, mas sem a lamúria em cantochão do requiem e do de profundis.

Foi exatamente assim, que no rito da tradição, o Salgueiro acompanhou o mano Calça Larga (Joaquim Casemiro), levado num bonito envelope ao cemitério da suja e poeirenta praia do Caju. Sentia-se a perda do animador da Escola, do crioulo gordo e afável que nas horas precisas sabia dizer um discurso simples, porém cativante. Não havia, no entanto, o alarde do choro alto, gritado. O samba foi com ele, em funeral ritmado em bemól, quase sussurrado, com uma cuíca gemendo baixinho. Mas não houve, de modo algum, o lamento soturno, de música dorida.

O pedreiro Casemiro

Trazendo nos seus trecos a necessária colher de apanhar e espalhar a argamassa, ferramenta de sua profissão, Joaquim Casemiro chegou ao Morro do Salgueiro no não muito longe ano de 1932. Gordo, com sua calça de boca de sino cobrindo o sapato, e à qual devia o apelido trazido de Miracema teve, no seu jeito comunicativo, falante, boa acolhida. Fez logo amigos: o Anacleto Português, o Alfredo Bolinha, o Servan de Carvalho, o Paulinho de Oliveira, o Mano Galego, o Sílvio da Ladeira, o Nestor e muitos outros. Com eles entrou nas primeiras rodas de samba, formou nos primeiros blocos, nos primeiros sujos do Carnaval.

Pouco depois, abandonava o ofício, deixava de ser um Waldemar do samba (fazia casas e não tinha onde morar) e tornava-se soldado do Exército. Habilidoso, encaixando-se bem na dureza da disciplina do quartel, conseguiu rapidamente pregar na túnica as duas lagartixas da graduação de cabo. Ganhava também, ao mesmo tempo, a proteção do coronel Barros, do Serviço de Intendência, de quem passou a ser peixinho. Com isso, conseguia algumas dispensas e noites livres para com seus amigos do morro ir aos bailes do Lyrio do Aragão, do Sul América, do Elite.

Das “pastorinhas” para o samba

Antes de ser o sambista que morreu consagrado, com voto de pesar no Parlamento, deputados carregando seu esquife e discurso de governador à beira da sepultura, Calça Larga organizou e animou ranchos de pastorinhas. Com Alfredo Bolinha e Anacleto Português (seu compadre e grande amigo), na época do Natal arregimentava as crianças do morro e descia para as visitas aos presépios. Em marcha lenta entoavam os cantares ingênuos: “ ... viemos de Belém saudar Nosso Senhor, o Nosso Salvador...“ E, à frente do grupo, recomendando ao velho que tremesse apoiado no seu bastão, pedindo à borboleta que cantasse mais alto, comandava o Calça Larga.

No começo de janeiro, quando as batalhas de confete iam criando o ambiente para a Rua Dona Luíza e Dona Zulmira, o Calça Larga participava deles. Vinham do morro os blocos (depois classificados de escolas) sem denominação e apenas designados por suas bandeiras: o Verde e Amarelo, o Azul e Branco e tantos outros. Resolveu, porém, a polícia embargar o que tinha as “cores brasileiras” e eles as mudou passando a ser o Verde e Branco. Com sua bateria, suas baianas, desfilou diante do coreto da comissão. Dirigindo a moçada lá estavam o Calça Larga, o Anacleto, o Paulinho, o Servan.

Um morro cheio de “escolas”

Passando os grupos e rodas de samba dos morros, dos bairros e dos subúrbios a ter a denominação de Escola (termo que foi lançado no Carnaval, em 1908, pelo renomado rancho Ameno Resedá) os do Salgueiro prontamente a usaram. Assim, em 1935, ali existiam as Unidos do Salgueiro, Depois eu Digo, Azul-e-Branco, que participavam de um concurso promovido pelo jornal A Nação e disputado na Praça Onze de Junho. Dispersava-se, como rivais, um punhado de sambistas, que embora defendendo a expressão musical do morro tijucano, não poderia mostrar sua força total.
Joaquim Casemiro, o popular Calça Larga


Acertadamente, pondo de lado as diferenças que separavam os componentes das diversas escolas, houve a unificação de todas elas e surgiu como única representativa do morro a Acadêmicos do Salgueiro hoje existente. Essa fusão, acertada e que resultou em maior brilho para o atraente desfile do domingo de Carnaval, foi, é claro, obra meritória de alguns sambistas. Em meio deles, porém, estavam o Calça Larga, o Paulinho e o Anacleto, este sempre ligado ao seu compadre Casemiro. O morro de muitas escolas passou a ter uma só, verdadeiramente representativa e com foros de academia.

“Quero morrer no samba”

Sambista, de pouco ou nenhum tutu armazenado nos bancos, Calça Larga jamais pensou em ordenar disposições testamentárias para acautelar a patroa, e a sua prole de quase uma dezena de meninos. Muito menos pediu, ou insinuou o desejo de ter funeral solene com réquiem e de profundis lamentosos. Apenas, e isto ele dizia cantando os versos de Walfrido Silva em 1935: “Quero morrer cantando um samba, no meio de uma roda bamba”. Ou na versão de Ataulpho Alves, anos após: “Quero morrer numa batucada de bamba, na cadência bonita do samba”.

Conseguiu como era de seu anelo proclamado em música e ao ritmo de bateria certa, afinada, a morte que o consagraria: no terreiro do samba, apito na boca, o boné vermelho e branco, nas cores de sua querida escola. Deixou triste, inconsolável, a moçada a quem ele, gordo, gingando o quanto permitia sua volumosa barriga, comandava: “no peito!... numa boca só!...“.

E, tal como disse o governador, o chaveiro S. Pedro deve tê-lo acolhido assim, com intimidade: “Entre, Calça, você é um dos nossos”.

(O Jornal, 20/9/1964) 
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

Cidade Maravilhosa não nasceu hino

André Filho
Cidade Maravilhosa não nasceu hino nem com pretensão a tal. André Filho, o autor, compositor de música popular, já trazendo em sua bagagem alguns sucessos, concebeu-a, como se depreende da letra e ritmo, na característica apenas de alegre marchinha glorificante. O agrado que prontamente logrou, graças à espontaneidade de sua melodia e de seus versos, tornando-a popularíssima, acabou, no entanto, dando-lhe o galardão de hino. Não dentro da exegese de uma temática musical e poética, mas pelo seu exato sabor de glorificação simples, sem rebuscamentos, exaltando apenas a cidade que a inspirou.

Depois, consolidada pela preferência popular, a marchinha ganhava diploma legal, concedido pela vereança carioca, e que determina sua adoção “como marcha oficial da Cidade do Rio de Janeiro”. Conseqüentemente, embora não havendo rígido preceito obrigatório, dá cunho de solenidade à sua execução no início e término de bailes e festas, afora sua utilização como prefixo de programas de rádio e televisão. Havendo, ainda, acrescida ao seu sucesso local, a ampla divulgação que tem no exterior através de múltiplas gravações, inclusive na China, com a respectiva adaptação de seus versos.

Uma frase que “pega”

A rigor, no cotejo cronológico, não foi (como bem esclarece Almirante em No tempo de Noel Rosa) o compositor Antonio André de Sá Filho o criador da frase “cidade maravilhosa”. Paulo Coelho Netto, por justiça e direito, apontou e reivindicou para seu pai a paternidade da feliz denominação, pois ela é encontrada num artigo do consagrado escritor publicado por A Notícia em 1908. Mas, inegavelmente, quem a reviveu, em 1932 a 1934, foi o locutor César Ladeira quando lia diariamente, crônicas escritas por Genolino Amado focalizando aspectos do Rio e subordinadas à epígrafe Cidade Maravilhosa.

A cuidadosa dicção, a pronúncia propositadamente escandindo as sílabas da frase que dava motivo às apreciadas digressões literárias interpretadas por tão excelente speaker, fizeram a denominação correntia e usual. A denominação de maravilhosa dada ao Rio de Janeiro pegou de galho como se diz na gíria. Daí ocorrer a um musicista (no caso André Filho) que dedica as suas produções ao êxito popular, tomá-la como tema para uma marchinha alegre, despretensiosa, com o fito de exaltar a sua cidade “cheia de encantos mil!”. Feita com habilidade, tendo todos os predicados para ser apreendida facilmente, foi cantada por todo o povo e acabou obtendo as prerrogativas de um autêntico hino.

Pretendeu ser carnavalesca

Lançada em outubro de 1934, na interpretação de Aurora Miranda e do próprio autor, que além de tocar piano tinha boa voz, alcançou boa vendagem em discos da Odeon, promotora de sua gravação. André Filho achou, pois, oportuno destiná-la ao Carnaval de 1935. Inscreveu-a num concurso patrocinado pela Municipalidade, mas o júri desse certame deu a primeira colocação a Coração Ingrato, marchinha de parceria Nássara (Antonio) e Frazão (Erastótenes). Não obstante Cidade Maravilhosa apareceu com destaque na parada musical dos festejos de Momo e devido a seu espírito de exaltação do Rio continuou sendo muito executada e tendo novas roupagens orquestrais.

A princípio sua preferência era ditada apenas pela melodia convidativa, entusiástica, onde os versos entravam certinhos e puxados pelas rimas ricas, fáceis: “encantos mil” sugerindo logo “coração do meu Brasil”. Depois, seguindo um curso crescente de popularidade deixava de ser a marchinha que seria apenas carnavalesca como pretendeu seu autor, e tomava ares de uma canção glorificante muito grata aos cariocas. Não se impunha que a tocassem nos bailes, nas programações das emissoras de rádios ou se fizesse sua inclusão nas revistas teatrais, mas O agrado público e notório dava-lhe preferência clara intuitiva.

Furando as fronteiras

Vitoriosa na metrópole que a inspirou, entoada com ênfase para ter valorizada sua letra, a marchinha Cidade Maravilhosa despertava o interesse de arranjadores, de gravadoras, de editoras musicais. Um sem número de edições em discos e partituras foram surgindo e começaram a ser exportadas. Ao mesmo tempo, orquestras de outros países assimilavam a tessitura musical da marchinha e, mesmo sem alcançar a vivacidade do ritmo, o andamento brasileiro, faziam sua divulgação, davam-lhe foros de internacional.

Viajando para os Estados Unidos, onde triunfava sua irmã Carmen, Aurora Miranda ali encontrando o famoso Bando da Lua fez nova gravação da marchinha de André Filho, repetindo o êxito da primeira. Viu então propagar-se por toda a nação amiga, já bastante interessada pela música do Brasil, em adaptações várias que iam da Beautifull City à aportuguesada Cidade Morravilhóse, a canção onde o Rio era exaltado. Assim, quando uma das bem informadas press nos trouxe a notícia de que Cidade Maravilhosa havia sido gravada na China, não houve surpresa, mas apenas orgulho e vaidade pelo sucesso de nossa música.

Marcha Oficial e quase “hino”

Já consagrada, tendo adquirido pela popularidade o feitio de hino do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa com a criação do Estado da Guanabara ganhava, em 1960, a honraria definitiva. Um decreto resultante de indicação do saudoso vereador Salles Neto determinava em seu artigo primeiro: “Fica adotada como marcha oficial da Cidade do Rio de Janeiro, respeitados os respectivos direitos autorais, ex vi da legislação em vigor, a marcha Cidade Maravilhosa de autoria do compositor André Filho.”

Na ocasião o musicista, como infelizmente ainda agora, encontrava- se enfermo. Um repórter do Diário da Noite levou-lhe a grata notícia de sua marchinha no Hospital da Ordem do Carmo e, jubiloso, é claro, mas humilde e sem vaidade, ele a recebeu. Disse que o ato o animava a prosseguir e anunciou já estar elaborando uma nova composição intitulada Brasil, coração da gente.

Não conseguiu, mesmo doente, esconder a emoção que sentiu ao ver a sua Cidade Maravilhosa obter o laurel de marcha oficial o que, reconheça-se é quase a mesma coisa que ser hino.

(O Jornal, 14/7/1964) 
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

Chopin e Debussy na música de Vogeler

Henrique Vogeler
Estudiosos da música popular brasileira, Vasco Mariz e Elza Cameu apontaram as composições de Henrique Vogeler como influenciadas ou conduzidas por Chopin e Debussy. Ele, em seu livro A Canção Brasileira, escreveu: “... sua música (de Vogeler), sempre romântica, revela forte influência de Chopin...“. Elza, secundando-o, numa conferência que realizou em dezembro de 1962, disse: “... A influência de Debussy se fez sentir até na música popular de piano.” Esclarecendo a seguir: “... Não em seus processos técnicos, é claro, mas no aproveitamento da célula conclusiva de La plus que lente, da qual Henrique Vogeler tirou toda a inspiração para o seu Linda Flor.

Tem-se assim que o nosso saudoso musicista (patrício apesar do sobrenome germânico trazido de seu genitor), não foi verde-amarelo puro, absoluto. Sua bagagem artística onde se encontra obras algo elevadas ao lado de outras bem populares, enfeixa muitas que teriam sido inspiradas pelos citados mestres. Compositor com escola, e não de caixas de fósforos ou de tamborilamento, talvez não sentisse tais sugestões. Mesmo indo à regência de orquestras e à partitura de operetas e burletas, tais como A Canção Brasileira, de Miguel Santos e Luiz iglezias, de grande sucesso no Teatro Recreio, é possível que sua erudição não lhe tolhesse as concessões ao popularesco. Veio, no entanto, a marcá-las com tonalidades trazidas de seus estudos e predileções.

Recordando Vogeler

Bom compositor, ainda que seu nome não tenha logrado a popularidade de tantos outros de menor valia, Henrique Vogeler deixou um bom punhado de músicas. Constantes todas, ou quase todas, do excelente fichário de Almirante, vão desde o samba buliçoso, de melodia fácil, passando por valsas, foxes, até a canção de muito sentimento brasileiro. Mas, afora essas, visto serem partes integrantes das peças a que ser- viram, deve haver outro igual punhado de concepção mais alta, pomposa. Citemos, para imediato exemplo, as que compôs para a peça fantástica A Passagem do Mar Vermelho, de Fonseca Moreira, e foi apresentada no Teatro Carlos Gomes em maio de 1921.

Não sendo apenas um produtor de músicas destinadas ao sucesso das ruas, já que quase sempre esteve integrado em companhias teatrais regendo suas orquestras, fazendo a partitura de peças, dele pouco se fala. Até mesmo a sua Linda Flor, depois tornada Iá-iá, que vem tendo gravações sucessivas (a mais recente na voz de Isaurinha Garcia), provoca apenas a citação de sua grande criadora: Aracy Côrtes. Tudo muito compreensível em se tratando de um compositor vindo de uma época de sobriedade publicitária e perdido em meio de centenas (talvez milhares) de colegas. Estes, ainda que muito atentos a auto-divulgação, não lhe conseguem roubar o valor.

“Iá-iá” substitui “Linda Flor”

A música mais popularizada de Henrique Vogeler é, sem dúvida, a Linda Flor que teve seus primeiros versos escritos pelo literato Cândido Costa. Bonitos inegavelmente, de apurada correção, cantavam: “Linda flor, tu não sabes, talvez, quanto é puro o amor que me inspiras. Não crês, nem sobre mim teu olhar veio um dia pousar.” E seguiam sempre ternos, no preciosismo do tratamento da segunda pessoa do singular, suplicando o interesse da mulher que era linda e era flor. Apesar do apuro da letra, de seu exato encaixe no ritmo e na melodia suave, lenta, ficou quase inédita sem repercutir como merecia.

Algum tempo depois, a habilidade de um famoso revistógrafo, Luiz Peixoto, que se permitia acumular ser também irreverente caricaturista e poeta com muito senso do gosto da gente comum, concebia e rimava um novo motivo. A boa terra, essa Bahia que vem inspirando tantos sambas, daria uma de suas filhas para ser a personagem da canção. Nasceu, então, na mesma música de Vogeler — essa que Elza Cameu apontou como sugerida pelo tema de La plus que lente, de Debussy — o poemeto: “Ai, iô-iô!, eu nasci pra sofrê, fui oiá pra você, meus óinho fechô.” Sem perder o caráter ingênuo, simplório, prosseguia: “... E, quando os óio abri, quis gritá, quis fugi..“. Tinha-se, agora, versos espontâneos, gostosos, destinados a êxito certo.

Aracy garante o sucesso

Com sua nova forma, a canção de Henrique Vogeler foi incluída na revista Miss Brasil com a qual a renomada parceria Luiz Peixoto-Marques Porto subia mais uma vez ao letreiro luminoso do velho Recreio Dramático. Estreando no elenco, Aracy Côrtes, a mulata, como a tratava a imensidão de seus admiradores, foi escolhida para cantar o número. Chamada a interpretar música e letra bem próprias ao seu feitio, ela que nessa época (dezembro de 1928) dominava o nosso teatro popular, fez toda a platéia delirar. Quando o regente J. Cristobal, atendendo à insistência de bis deu as clássicas batidas com a batuta na estante pensou que a repetição bastaria para satisfazer ao numeroso público, mas enganou-se. Teve que fazer o mesmo gesto ainda por mais duas vezes.

Desenvolta, consagrada pelos aplausos entusiásticos, calorosos, Aracy não se fazia rogada e cantava: “Ai, iô-iô!, eu nasci pra sofrê, fui oiá pra você, meus Óinho fechô...“. E se a atriz se deixava empolgar pelo sucesso que alcançava, também Vogeler via projetar-se triunfante a sua música. Já não era mais a Linda Flor orgulhosa de quem se suplicava um olhar, era a Iá-iá. Renascia a música de Vogeler, graças aos versos de Luiz Peixoto e ao charme de quem os cantava, para popularizar o seu nome em toda a cidade. Consolidava esse triunfo a crítica, como o fez o saudoso Abadie Faria Rosa no Diário Carioca: “... A Sra. Aracy Côrtes que estreava como estrela do Recreio, emprestou a vários números aquele seu cunho de atriz bem nossa, cantando um lindo samba do maestro Vogeler com um sabor verdadeiramente acariciante.

Influência, sugestão, assimilação

Em música, como em qualquer outra arte, é sempre possível que as predileções, a retenção inconsciente de frases melódicas, de trechos, ou mesmo de acordes venham a se refletir na obra produzida. São, portanto, válidas e merecem acatamento as observações de Vasco Mariz e Elza Cameu quanto às influências de Chopin e Debussy nas composições de Henrique Vogeler. Um ou outro repontando no ritmo, na tessitura melódica e talvez no todo de algumas obras — tendo-se em conta que ambos provocaram escolas pianísticas e Vogeler foi exímio executante desse instrumento — não afetaram a brasilidade de sua música.

O reparo, a apreensão feita de vestígios, de influências chopiniana e debussiniana nas obras de Henrique Vogeler têm procedência porque se referem a um compositor enfronhado na escrita da pauta. Fosse ele um maestro caixa de fósforos, que os temos muitos e fazendo música verdadeiramente bonita por simples inspiração, falar-se-ia em assimilação inconsciente.

O certo, o inegável, é que a Linda Flor, ou a Iá-iá na concepção através da qual ganhou popularidade, tenha ou não a influência de Frederico (Chopin) ou de Cláudio (Debussy) resultou bem brasileira e ao nosso gosto.

(O Jornal, 5/7/1964)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

Elizeth, campeã de “charleston”

Elizeth Cardoso
A famosa Kananga do Japão, sociedade recreativa e carnavalesca até hoje é relembrada, como o foi por Lamartine Babo na sua marcha-rancho Seja lá o que Deus quiser. Ali se disputavam quase sempre renhidos campeonatos de valsas e de maxixe figurado, pois era familiar. Ao ritmo, às vezes lento, outras vivo, vertiginoso, buliçoso, conduzido por Masson, Manoel-da-Harmonia, Bulhões, mais alguns pianistas dos melhores da época, os pares competiam em disputa de medalhas, taças ou diplomas. E incentivando os participantes havia sempre numerosa assistência aplaudindo, torcendo por seus favoritos.

Mas, naquela domingueira dançante levada a efeito no salão da desaparecida Rua Senador Euzébio, onde no número 44 a Kananga tinha sede, promoveu-se um concurso infantil de charleston. A dança norte- americana com sua coreografia exótica, agitada, estava em grande voga nos clubes e na cidade. Foi fácil, portanto, reunir um punhado de meninos e meninas para o torneio idealizado. Ao final, depois de uma exibição que empolgou a comissão julgadora e sob palmas de entusiasmo, foi proclamada vencedora a garota Elizeth, sobrinha do Juca (conhecido como Juca da Kananga), um dos dirigentes da agremiação.

A Kananga e sua fama

Adotando como denominação o nome que os dicionários de botânica informam ser o de uma árvore aromática da Ásia e pertencer à família das zingiberáceas, a Kananga do Japão passou logo a dominar entre suas co-irmãs. Surgiu como grêmio carnavalesco e desde seu início, quando na Rua Barão de São Felix, 189, arregimentou os mais denodados foilões. Um deles, o João Machado Guedes (João da Baiana), que em 1911 era o diretor de harmonia. Já os seus bailes naquele tempo atraíam vultosa concorrência e quando nos dias do reinado de Momo fazia as costumeiras passeatas, ou ia à lapinha no Largo de São Domingos, o povo não lhe regateava aplausos.

Sua fama, porém, que a tornou conhecida e fez sua tradição chegar ainda vigorosa ao presente 1964, mesmo depois de desaparecida há mais de vinte anos, vem, não há dúvida, do tempo da Rua Senador Euzébio, 44. Naquele modesto sobrado de salão amplo, tendo a dirigir suas festividades o Juca, o Paiva e o Julio Simões; 101 que verdadeiramente teve seu nome propalado tanto na zona norte como na sul da cidade. Por isso, os bailes que realizava, animados por pianistas exímios, inclusive o popularíssimo Sinhô, estendiam-se até 5 e 6 horas da manhã com a casa apinhada e em franca animação até o clássico galope final.

No baile com o titio

Morava em frente à Kananga onde o seu tio Juca era o maioral, a menina Elizeth. Já que — conforme declarou em recente entrevista — sempre foi “muito saliente”, pedia, e muitas vezes ia aos bailes, principalmente aos das tardes de domingos. Seu encantamento pela música, seu desembaraço mostravam, desde então, que ela poderia vir a ser, como aconteceu, uma das grandes intérpretes de nosso cancioneiro. Dançava com outras crianças e seu garbo, a correção dos passos, provocava elogios: “essa menina vai longe!”.

Às vezes, para mostrar a precocidade da sobrinha, Juca no intervalo das danças dessas domingueiras fazia-a cantar e Elizeth, sem acanhamento, exibia-se num recital cujo agrado chegava aos pedidos de bis. Cresceu, assim, no ambiente de música dos bailes da Kananga do Japão. Quando Jacob (do bandolim) a conheceu numa festa em casa de sua tia Ivone, na Rua do Resende, e a levou para a Rádio Guanabara, na Rua Primeiro de Março, 123, ela já tinha o aprendizado do salão da Rua Senador Euzébio.

Campeã de “charleston”

Originário da cidade da qual trouxe o nome, o charleston chegou ao Brasil e se adaptou como dança ao ritmo de nossas marchinhas brejeiras e carnavalescas. Na época em que a Kananga do Japão realizou o aludido campeonato infantil, José Francisco de Freitas já havia lançado a Zizinha. Foi pois, com essa música executada ao piano por Tojeiro, que a gurizada entrou em competição procurando cada qual executar com maior requinte os passos e espalhafatosos movimentos coreográficos Ao mesmo tempo que agitavam braços e pernas as crianças cantavam em conjunto: “Zizinha, Zizinha!, ò vem comigo, vem, minha santinha”.

Como em toda disputa deve haver um júri, comissão julgadora ou algo que se assemelhe na que se travou para ver qual a menina ou menino melhor dançarino de charleston isso não foi esquecido. Um grupo de adultos acompanhava atento a competição e proclamou vencedora a garota Elizeth, embora dona Délia, comadre do Juca, pretendesse ver vitoriosa sua filha Zaíra. O triunfo era incontestável e houve mesmo quem apontasse Elizeth como imitadora perfeita de Josephine Baker em todos os seus trejeitos da dança inventada pelos coloreds da Carolina do Sul.

Constância da Kananga

A menina que foi campeã de charleston é hoje um nome glorificado em nossa música popular sendo ora qualificada como a Divina, ora como a Magnífica. Elizeth Cardoso (que um jornalista disse “está para o samba como Ella Fitzgerald para o jazz, no grau de divindade, de monstro sagrado”), no entanto jamais esqueceu a famosa Kananga do Japão. A tradicional sociedade recreativa e carnavalesca onde foi campeã de charleston e foi madrinha de São Jorge — que entronizado no alto da escada, era o padroeiro da agremiação — traz-lhe sempre ternas recordações.

Quando um dia Lamartine Babo compôs essa bonita marcha-rancho intitulada Seja lá o que Deus quiser, Elizeth quis, com bastante interesse, incluí-la em seu repertório. Assim como a Canção do Amor tem lugar destacado entre as várias dezenas de suas interpretações primorosas, a do saudoso Lalá, falando das pastoras da Kananga do Japão, transporta-a ao salão da Rua Senador Euzébio.

Revive então, emocionada, a tarde de domingo em que com seu vestidinho curto, graciosa cantava: “Zizinha, Zizinha!, ò vem comigo, vem, minha santinha...”. E vencia um campeonato de charleston.

(O Jornal, 17/5/1964)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.