quarta-feira, março 28, 2012

Juvenal: a história viva do Samba

Muito bem conservado para 72 anos, a maior parte da vida consagrada ao samba, Juvenal Lopes hoje presidente de honra da Estação Primeira de Mangueira, conta a dramática história das escolas de samba. Todo emoção, relembra a perseguição da Policia, os ardis usados pelos sambistas para despistá-la, o sofrimento e danos que a dedicação ao samba lhe causaram: a casa perdida, a falta de direito à aposentadoria, um coração doente. — Tudo para não deixar o samba morrer. E, depois, ver o fruto dessas lutas e canseiras virar mercadoria de comércio...

A casinha em Abolição, janelas verdes, parede rosa, Juvenal Lopes fala de sua história, que é também a história do samba carioca. Nascido em São Cristóvão, o pai «presidente do grupo dos prontos», como ele diz, para dar idéia de sua pobreza, contava uns nove anos quando foi morar na Mangueira.

— Papai morreu. Minha mãe não agüentava o aluguel e mudou-se para a Mangueira. Com ela, eu e meus dois irmãos. Passamos a maior parte da infância trancados dentro do barraco, pois mamãe, trabalhando fora (empregada doméstica), não tinha com quem nos deixar. E havia o medo de no soltar pelo morra. Não saíamos para nada. A porta da rua marcava a fim de nosso mundo.

— Lembro que ela chegava, una lata de dois quilos na cabeça, Ali vinha nossa comida, as sobras da casa de seu patrão. Ao encontrar-nos à sua espera, chorava de alivio. Não sei por que ela tinha tanto medo do lugar.

Mas para um menino levado, louco para se aventurar ai por fora, o excesso de cuidados da mãe correspondia ao cárcere. Assim, mais crescidinho, Juvenal resolveu rebelar-se. Tão logo ela, saía, pulava a janela, fugia para o Buraco Quente.

— Ia me juntar ao pessoal do samba. Foi assim que tomei gosto pelo negócio. Ficávamos numa birosca, batucando em caixas de fósforo. Ali conheci Zé da Lúcia, Homem Bom, Saturnino (pai de Neuma), Osmar e tanta gente boa, a maior parte falecida, que nem vale apena enumerar. Eles foram, praticamente, os desbravadores do samba na Guanabara.

No lugar dos poetas

— Mais tarde, rapazote, deixei o Buraco Quente. Passei a freqüentar o Baixo Meretrício, onde, nos botequins, cantando samba, havia chance de faturar uns trocados.

Nesse ambiente Juvenal começou a divulgar o samba. Um medo terrível das pessoas que ali se reuniam, principalmente das mulheres que, segundo ele, eram mesmo de briga, dados a rasteiras e navalhadas. Cedo ficou conhecido como o cantor de Mangueira, nome que na época se ligava apenas ao morro. E quando começou a ganhar um dinheirinho bom, coletado em pires depois de cada apresentação, o sambista largou sua antiga profissão: ajudante de pedreiro.

— Tinha então uns 17 anos. De manhã trabalhava em obras. À noite, se fazia calor, vendia sorvete. Se frio, vendia jornais nos bondes. Dava um duro danado e ganhava quase nada. Cantando, chegava a conseguir 12 mil réis por noitada, uma fortuna para mim. Mas acabou logo...

Dois anos passados (1920), fui levado para o Estácio, o lugar dos poetas, pelo falecido Nilton Bastos. As coisas pretas. Andava de tábua no pé (agora chamam tamanco, e é até chique usar). Minha calça, coitada! Toda remendada, eu não sabia nem qual sua cor. Assim era a vida, do pobre. Miséria era miséria de verdade.

No Estácio, Juvenal conheceu Ismael Silva, Rubens Barcelo (o príncipe do samba) Alcebíades, Brancura, Francelino e muitos outros, hoje apenas saudades. Ali também começaram Sílvio Caldas e Carmen Miranda. Mas Estácio era somente o nome do lugar. O que eles fundaram foi um bloco, o Deixa Falar, de onde mais tarde saiu a escola de samba.

— O nome foi por causa de um rancho que havia perto. Eles se diziam a elite. Espalhavam que sambista era malandro, vagabundo. Principalmente porque no carnaval, a gente se fantasiava de mulher. Cansei de sair de Maria Antonieta. O pessoal do rancho metia o malho. O Deixa Falar foi nossa resposta.

— No Estácio fiz amizades, fiquei querido. De lá guardo boas recordações. Foi quando botei meu primeiro terno, aprendi a usar gravata e colarinho. Tudo de segunda mão, é claro! Umas roupas largas, que quando a gente experimentava, o vendedor, um gringo sabido, ficava puxando atrás, para dar a impressão de que estava certinho. E ainda falava, com a cara mais limpa, que ficou melhor do que se fossem feitas sob medida.

De time a escola de samba

O sambista fala da importância de se esclarecer a história do samba, sem deixar equívocos. Comenta a necessidade das escolas fazerem um trabalho escrito de suas origens, arquivando-o como documento histórico. E prossegue sua narrativa, contando como o bloco Deixa Falar se transformou na primeira escola de samba do país: a do Estácio.

— A princípio, o nome comum aos grupos que se dedicavam ao samba era time. Isso porque formávamos uma espécie de torcida organizada de determinado time de futebol. No Estácio, nossa paixão era o América. Dai as cores vermelho e branco.

A denominação de escola vai aparecer mais tarde, ali mesmo no Estácio, por uma única razão: a gente se reunia perto de uma escola normal. Como o samba era proibido, perseguido pela Polícia, quando se perguntava por algum sambista, para despistar, respondíamos que estava na escola, o ponto de referência. O negócio pegou a ponto da gente só entender o lugar como escola. Quando o Estácio cresceu, o time ficou conhecido como Escola de Samba do Estácio.

Para provar o que diz, Juvenal relembra alguns sambinhas da época. Um de sua autoria, em homenagem à vermelho e branco de então:

«Sempre vencemos, nunca perdemos.
O nosso time é do Estácio.
Vamos pra balança,
Não damos confiança...
Peso é peso, braço é braço... »

Outra de Cartola, feita para a Mangueira, onde aparece pela primeira vez a designação Estação Primeira, mais tarde incorporada ao nome oficial da Escola:

«Chega de demanda, chega.
Com esse time temos que ganhar.
Somos a Estação Primeira,
Salve o Morro da Mangueira. »

A perseguição policial

Apesar dos números blocos, o samba ainda era proibido. Consideravam-nos uma atividade marginal, malandros e vadios, da mesma forma que a capoeira.

— E nós, sambistas de coração, não podíamos deixá-lo morrer. Para isso, contávamos com o apoio dos umbandistas. Eles tiravam licença para instalar um centro de culto afro-brasileiro e deixavam a gente fazer samba lá dentro.

— Assim a gente confundia a polícia. Os Arengueiros, por exemplo, bloco que deu origem à Mangueira, surgiu do centro de Zé Espingueli, famoso pai-de-santo daquele morro.

— Foi o próprio Zé Espingueli quem organizou o primeiro concurso de samba de que se tem notícia. Só que era muito diferente do que se vê hoje. Ganhava aquele que tivesse sua música mais cantada. Afinal, o concurso era samba. Concorriam os Arengueiros, o Estácio, a Favela, os Unidos da Tijuca e o Osvaldo Cruz, mais tarde Portela.

— Mas era tudo clandestino. A Polícia perseguia mesmo. E quando pegava, batia de verdade. Lembro uma vez, numa festa de Xangô. Estávamos no barraco de Brasilino, pai-de-santo do morro do Urubu. Terminada a festa, um frio danado, a gente encolhidinha, pra espantar o sono e a fome improvisei um sambinha, quase um ponto de macumba:

Cruz Credo
Credo Cruz
Aí vem o delegado
Abelardo Luz

— Foi falar no Diabo e ele chegou mesmo. O samba o chamou. E o pior, é que ele gostou da música. Sujeito mau, fez a gente descer o morro debaixo de bengaladas e ir até Madureira, onde ficava seu distrito. Fomos cantando o samba, com harmonia. Se alguém desafinasse apanhava mais ainda.

— Naquela época, esse era o tratamento comum ao sambista. Depois, aos poucos, fomos nos organizando. Choramos muito, apanhamos, fomos presos diversas vezes. Esse foi o preço de manter o samba vivo: suor, lágrimas e sacrifício.

Enfim, Mangueira

Apesar de ter começado no Estácio, Juvenal nunca se afastou da Mangueira. Ali era seu lar. No Buraco Quente mantinha suas amizades. Conheceu todos os blocos que por lá passaram; Tia Tomásia, Tia Fé, Mestre Candinho e Arengueiros. Este último, segundo afirma, constituído por cinco famílias que se fantasiavam de baianas, no carnaval, deu origem à Estação Primeira em 1928. Anos passados, em 1962, o sambista assumiu a presidência da agremiação. Uma de suas primeiras providências foi incorporar Mangueira ao nome oficial da escola. Até então era somente Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira. Também deve-se a ele a quadra onde hoje é o Palácio do Samba, e o cordão das pastoras nos ensaios, entre outras coisas.

— Quando assumi a presidência, os ensaios ainda eram na cerâmica, sem espaço para nada. Eu sabia que precisávamos de uma quadra, pois o samba é o único divertimento do favelado. Após muita luta, muita insistência, consegui com o Governo da época um local. Deram-nos o brejo onde o Estado pretendia fazer sua garagem.

Para arrumar tudo, coloquei dinheiro do meu bolso ali dentro. Perdi noites na cozinha, a preparar lanches para convidados e autoridades. Empregados era um luxo do qual não podíamos desfrutar. E não reclamo, nem me arrependo. Meu ideal era aquele. A vida nada valeria sem isso.

Em 1969 Juvenal Lopes deixa o cargo. Motivo? Doença. O coração não resistiu a tanta pressão. Da Mangueira seguiu direto para o hospital. Três meses no Instituto de Cardiologia, onde volta até hoje. Só de remédios gasta 50 cruzeiros em cada dez dias. O que ficou de toda sua dedicação ao samba, ele assim resume:

— Perdi minha casa. Fui obrigado a vendê-la para comer. Meu dinheiro ia todo para as obras na Escola. Perdi minha barraca de feira, a profissão à qual me dediquei grande parte de minha vida. Ela me deu condições de criar meus filhos. Hoje,, nem direito à aposentadoria tenho. O teto que possuo, meu filho Pedro Paulo me deu.

— E o pior de tudo, perdi minha saúde. Mas nada disso tem importância. Vejo a Mangueira de agora, grande, forte, rica, inigualável. Este é meu consolo e ela virou o que é graças, não a mim, mas ao povo que sempre soube amá-la.

Ajudado por Deus

Profundamente religioso, dizendo-se ajudado por Deus, Juvenal é um fiel devoto de Nossa Senhora da Conceição. A ela deve muito favores, inclusive a cura de sua perna, que ele conta, emocionado:

— Lá por 1940, tive uma doença na perna. Deu micróbio no osso da coxa, cheguei a ser operado. Andava de muletas, padecia de dor. Sete anos depois voltei ao hospital. O médico me desenganou. Falou que não havia cura, que eu tinha os dias contados. Saí de lá desesperado. Pedi ajuda a Nossa Senhora da Conceição. Ela me ouviu. Hoje nem das muletas preciso, apesar de uma perna mais curta.

Conformado com sua sorte, aceitando sem reclamar os desígnios de Deus, Juvenal é também compositor. Sambas a perder de conta, muitos vendidos em sua juventude, conseguiu apenas gravar quatro. Sua chance, no entanto, parece que chegou. A cantora Bete de Carvalho está interessada em alguns trabalhos seus, o que, para ele, além de ser maravilhoso, é uma grande surpresa.

— O compositor de morro não tem vez, pois a maioria dos cantores não se interessa pela boa música, mas pelo dinheiro. E eu tive que me conformar em escutar minhas músicas somente na minha voz.

Juvenal tem outra mágoa:

— As escolas se formaram para defender o samba. Os compositores do passado sofreram um bocado, porém não deixaram ele morrer. Mas as escolas subiram tanto que hoje o samba foi relegado a segundo plano. Não se fala mais dele. Apenas das escolas.

— Hoje vejo o samba como uma espécie de comércio. Há gente que vive da escola e poucos os que vivem para ela. Nós deveríamos amá-la. Mas isso não acontece. O que se verifica é cada um tentando tirar proveito da melhor maneira.

E sobre a invasão do povo nas escolas, ele diz:

— Samba é um divertimento. É música. E música não tem pátria ou nacionalidade.

O samba também é a vida de Juvenal.

— Sem ele – confessa – não posso viver. E quero morrer cantando samba, num desfile, no meio da alegria. Não quero tristezas e lágrimas. Quero muito samba, muita folia...

(Reportagem de Beatriz Santacruz)
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Fonte: A Notícia - 2. cad. - Rio de Janeiro - 18/07/1973

O Entrudo e o zé-pereira

Baile de fantasia no Cassino Fluminense com os figurões políticos em 1864 - "Semana Ilustrada"

A época do Carnaval varia de ano a ano porque está condicionada ao regime das festas móveis ou variáveis no tempo, estatuídas pela Igreja Católica Românica. A base de suas grandes solenidades rituais é a chamada Páscoa da Ressurreição, que jamais deve coincidir com a Páscoa dos judeus, na qual se deu, no mês de nizã ou março, a paixão de nosso senhor Jesus Cristo.

A fim de evitar essa coincidência em qualquer tempo, a Igreja, sabiamente, determinou celebrar a Páscoa da Ressurreição no 1º domingo posterior ao 14º dia da lua que vem após 21 de março. Se compreende isso desde que se tenha em vista que os hebreus se regiam por um calendário lunar e não pelo calendário solar adotado pelos povos cristãos. Assim, cronologicamente, a Páscoa da Ressurreição sempre cairá no 1º domingo seguinte à lua cheia imediatamente posterior ao equinócio da primavera, fixado no dia 21 de março.

Em virtude dessa determinação, se 21 de março for sábado e lua cheia, o dia 22 será o Domingo de Páscoa, caso em que este ocorre o mais cedo possível. Se a primeira lua cheia, isto é, o 14° dia lunar, após o equinócio, for 29 dias depois de 20 de março, por conseguinte, em 19 de abril e esse dia for domingo, o de Páscoa só poderá ser 25 de abril, caso em que ocorre o mais tarde possível. Daí se verifica que o Domingo de Páscoa ou Domingo da Ressurreição somente pode cair entre duas datas extremas: 22 de março e 25 de abril.

Ora, o Domingo de Carnaval, Domingo da Qüinquagésima ou Domingo Gordo cai sete domingos antes do da Ressurreição. Por isso, muitas vezes, se realiza o Carnaval em fevereiro e, noutras vezes, em março.

É o Carnaval festa de fundo pagão, com remotas raízes nos orgíacos festejos de Babilônia, denominados Sacae. Nele se dá liberdade ao instinto da carne: Carne Vale. Só a carne vale e se manifesta nessa comemoração dionisíaca. Ou o nome vem do carrus-navalis, carro naval de triunfo netuniano usado nesses festejos, que duraram em Flandres e na Alemanha até o século 13, relembrando as invasões dos normandos ou viquingues.

Mas, logo que seu tumulto se apaga, após três dias de intensa liberdade, a segunda e a terça-feira, a voz da Igreja, na Quarta-Feira de Cinza, lembra aos desvairados a fatalidade da morte: Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris (Te lembres, homem, que és pó e ao pó voltarás). Assim é a terça-feira de Carnaval espécie introdução às cerimônias litúrgicas que se iniciam na Quarta-Feira de Cinza. Se dizia, em latim, que era o dia do Introitus, isto é, daquela introdução. A palavra introitus se corrompeu a entrudo e, por extensão, se passou a denominar, antigamente, ao Carnaval, Entrudo e, como era inveterado costume, se usar, durante ele, brincadeira com água, hoje a palavra tomou a acepção restrita de Carnaval molhado.

Nos bons tempos de antanho se atirava água, às pessoas que passavam na rua, das janelas e balcões das casas, com jarro, balde, bacia. Havia foliões que punham à porta de sua moradia pipas e tonéis cheios, nos quais, ajudados por outros, mergulhavam os transeuntes desprevenidos. Em compensação, depois do banho, lhes serviam quitute e bebida. Devemos considerar isso reminiscência dos antigos banhos lustrais ou de purificação ritual pra se entrar em vida nova. Ainda aí a palavra introitus encontra significativa aplicação. Perdido o sentido primitivo, esses banhos se tornaram mera brincadeira, às vezes finalizando em conflito e grossa pancadaria, quando quem era molhado a força não estava disposto a suportar o brinquedo, o achando, apesar da tradição, de péssimo gosto.

Ilustr. de Momo - Rio de Janeiro, 1862
Com o tempo o costume se amenizou, os baldes e tinas foram abandonados, se passando ao uso menos bárbaro de limões e laranjinhas feitos de leve camada de cera, recheados de água perfumada ou colorida, atirados, de longe, às pessoas descuidadas. Mais tarde, com a aplicação da borracha de seringueira ao uso industrial, as laranjinhas de cera tiveram de ser substituídas por outras do mesmo formato, porém com fino invólucro elástico. As vítimas desse entrudo não se aborreciam tanto com as que os ensopavam com água-de-cheiro como com as que traziam colorantes, que manchavam chapéu e roupa. Isso provocava rixa e barulho, muitas e muitas vezes com gravidade.

Se deram novos e melhorados meios pro entrudo. Se adotaram as pequenas bisnagas de borracha com canudo de metal ou de metal flexível, de vários feitios e tamanhos, as quais, apertadas pelos dedos, esguichavam, quase como um vaporizador, líquidos perfumados aos que tomavam parte na lide carnavalesca. Isso esteve em grande voga na era de 1900. Mas apareceram malvados que carregavam as bisnagas com molho de pimenta ou ácido fênico, produzindo queimaduras e até cegueiras. A polícia, então, proibiu, terminantemente, o uso de tais objetos.

Todavia o velho Entrudo teimava em não morrer, reformando seus processos e rejuvenescendo anos afora. Às bisnagas sucederam, inicialmente, os tubos de cloretil e, afinal, os de vidro e metal dos chamados lança-perfumes, que são coisa de ontem. Houve anos em que se gastaram tantos milhões deles nos carnavais cariocas que suas fábricas de França enviaram representantes especiais pra estudar as admiráveis condições desse mercado no Brasil. Se fundaram, depois, fábricas nacionais que exploraram essa lucrativa indústria. Finalmente, os viciados começaram a procurar no éter contido nos tubos de lança-perfume a embriaguez, quer nas vias públicas, quer nos bailes em recintos fechados, de modo que as autoridades se viram forçadas a proibir o uso.

Morreu, assim, já em nossos dias, metalizado, perfumado e industrializado o velho Entrudo nascido nas bacias e tonéis de água de nossos avós. Nos últimos tempos de sua existência tivera a colaboração inocente do papel colorido sob a forma de confete e serpentina, e de espanador pra fazer cócega, denominado mamãe-sacode.

O emprego de laranjinhas e limões-de-cheiro ou de água-de-cheiro começou no Rio de Janeiro, na época da independência. Se atiravam esses projéteis carnavalescos até nos teatros. As crônicas do primeiro reinado registram um episódio interessante, que ocorreu no então real teatro de São Pedro de Alcântara, no Rossio, hoje substituído por um monstro moderno de alvenaria e crismado como João Caetano. Foi no Carnaval do ano da graça de 1825.

A atriz Estela Sezefredo, então famosa, trêfega, muito jovem e muito divertida, ousou lançar um desses limões na pessoa de sua majestade, o imperador dom Pedro I, sendo, incontinenti, presa e metida nas grades do antigo Aljube, ao pé do morro da Conceição, pra, no silêncio e na solidão, meditar um pouco sobre a estouvada brincadeira.

Estela Sezefredo era natural do Rio Grande do Sul e começou a carreira como dançarina daquele teatro, tendo pronunciado o discurso na festa oficial de reabertura, em 1 de dezembro de 1824, quando ali se representou Engano feliz, de Rossini. Tendo vindo de sua terra natal com 12 anos de idade, em 1822, pois nascera em 14 de janeiro de 1810, contava somente 15 anos ao praticar a pequena loucura carnavalesca que a levou à cadeia. Deixou de ser bailarina e estreou como atriz com 23 anos, em 1833, na comédia Camila. Alcançou êxito ruidoso, desde então, no palco. Se casou com o grande ator João Caetano dos Santos, passando a se chamar Estela Sezefredo dos Santos. Enviuvou em 1863 e pretendeu, embora já maior de 50 anos, voltar a ganhar a vida como atriz, não obtendo mais êxito. Faleceu na maior miséria, em Niterói, em 13 de março de 1874.

O infatigável e probo historiador da cidade do Rio de Janeiro, Vieira Fazenda, desenterrou, da poeira dos arquivos, alvarás, avisos e posturas municipais sobre o Entrudo carioca desde o século 17. O Entrudo continuou aqui no século 18 mas com proibição absoluta, de acordo com as próprias ordenações do reino, do uso de máscaras e embuçados, sob penas variadas: Prisão, multa, açoite e até degredo.

O Carnaval de rua, com préstitos alegóricos, como o conhecemos, parece datar, no Rio de Janeiro, de 1854, ano em que se fundaram as duas primeiras sociedades carnavalescas da cidade: Veneziana e Sumidades Carnavalescas. Os primeiros bailes à fantasia realizados em 1846.

Durante o segundo reinado surgiu no Rio, e se alastrou nas províncias, nova modalidade do Carnaval, a zabumbada ou zé-pereira, antepassado dos cordões e Ranchos, com uma cantiga, cujo estribilho andava na boca de toda gente:

Viva o zé-pereira
que a ninguém faz mal!
Viva a pagodeira
no dia do Carnaval!


O criador desse novo Carnaval existiu de verdade. Era o português José Nogueira de Oliveira Paredes, sapateiro na rua São José 22, antigo caceteiro miguelista em Portugal, que ali participara das famosas rebeldias populares: A Patuléia e a Maria da Fonte, vindo, fugido dos liberais vencedores com dom Pedro I, dar com os ossos no lado de cá do Atlântico. Mal se anunciava o Carnaval e reunia uma dúzia de patrícios que comiam e bebiam à boa maneira lusitana e saíam ruas afora, batucando tambor, tocando zabumba e cantando:

Viva o zé-pereira
que a ninguém faz mal!
Viva a bebedeira
no dia do Carnaval!


A zabumbada de Paredes e seus companheiros obedecia a ritmo tão certo e espalhafatoso que ninguém podia imitar. Sua passeata nas ruas públicas atraía verdadeira multidão de acompanhante. Muitos pretenderam imitar, capitaneando bando de tocadores de bombo e outros instrumentos de pancadaria, mas sem que lhe levassem as lampas na famosa toada.

Vieira Fazenda nos dá conta da origem do nome de zé-pereira prà batucada de José Nogueira de Oliveira Paredes assim: "Uns dizem que, em certas localidades de Portugal, é o bombo conhecido por zé-pereira. Outros querem, e é mais provável, que, na primeira noitada de bom sucesso, os companheiros de Paredes, na força do entusiasmo e influenciados pela vinhaça, trocaram o nome do chefe e davam vivas a Zé Pereira em vez de Zé Nogueira".

Como quer que seja, Zé Nogueira ou Zé Pereira presenciou seu triunfo na ribalta, quando a célebre companhia teatral Heller levou, no Rio, a cena uma paródia dos Pompiers de Nanterre sob o título sugestivo de O zé-pereira Carnavalesco, tendo Paredes comparecido ao espetáculo de cartola e sobrecasaca, e chorando em público, de alegria.

José Nogueira ou Zé Pereira, criador do verdadeiro Carnaval de rua do Rio de Janeiro, inventor do rancho ou cordão, iniciador da batucada, morreu dum ataque de apoplexia na véspera dum carnaval, depois de examinar cuidadosa e carinhosamente, em sua oficina de sapateiro, os bombos e tambores de seu bando folião, instrumentos de sua fama, cuja integridade zelava com amor paternal e aos quais chamava, emocionadamente, meus queridos amigos. Fora, em verdade, o rei da batucada.

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Fonte: O Entrudo e o zé-pereira, Gustavo Barroso - Revista O Cruzeiro, 18/2/1950.

O samba espancado e esnobado

Quando a roda do samba estava bem animada, todos os componentes entoando o coro, certinhos, numa boca só, a polícia aparecia resoluta, descendo o chanfalho, pondo a turma em fuga desordenada. Isto, porém não a intimidava. Na noite seguinte, às vezes poucas horas após, no mesmo local (Saúde, Morro da Favela, arraial da Penha) refazia-se o grupo. Martelando os tamborins, rufando os pandeiros, as cuícas gemendo, Insistiam no samba que os meganhas interromperam. Era assim a época heróica, valente, não se deixando intimidar. Sua gente espancada, mas persistindo sempre.

Depois, já poupado pelos agentes da lei, podendo entoar sua musiquinha fácil e seus versos primários, espontâneos, os sambistas tinham o desprezo da burguesia. Esnobavam seus cantares e glosavam-no maldosamente: “Samba de negro / Não se pode freqüentar. / Só tem cachaça / Pra gente se embriagar”.

O samba mesmo assim venceu. Formou suas escolas e deslumbrou patrícios e estrangeiros. Como se não bastasse, parecendo pouco o triunfo alcançado, o samba agora tem um dia que lhe é dedicado, e com chancela legal: o 2 de dezembro.

O samba e seus “catretas”

Trazido da Bahia pelos filhos da boa terra que vieram se radicar no Rio de Janeiro, o samba foi logo por eles transmitido a seus descendentes em todas as modalidades que lhe são peculiares. Os pioneiros, em cujo número estavam Hilário Jovino Ferreira, Tia Sadata, Tia Bebiana, Cleto, João Câncio e muitos outros com foros de catretas (corruptela de catedrático) ensinavam, criavam continuadores. Em pouco tempo baianas e cariocas que os seguiam igualavam-se no samba, corrido ou chulado, mostravam-se exímios no partido alto que é, como intuitivamente se deduz, o samba requintado, o fino.

Sambistas autênticos, iniciados como o foram pelas próprias genitoras, ainda temos o Donga (Ernesto dos Santos) filho de Tia Amélia, e o João da Baiana (João Machado Guedes) filho de Tia Presciliana.

A despeito de seus já vencidos setenta anos, das inovações e das bossas que procuravam desvincular o samba de suas exatas origens, tentando mesmo distorções do ritmo e da melodia, ambos resistem. Permanecem fiéis ao samba puro, castiço, escoimado de artifícios de música e de cadência, como representativos da Velha Guarda onde também avulta o nome de Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna Júnior).

Escolas põem o samba em desfile

Cessada a repressão violenta sob espancamento, já permitida sua existência nos terreiros dos morros, dos arrabaldes, nos desvãos da cidade, os intelectualizados foram ao encontro do samba. A imprensa se permitiu incluir em suas colunas o noticioso a ele referente e que alguns de seus repórteres (Vagalume, Orestes Barbosa, Enfiado, Marrom e poucos mais) o iam colher na fonte, no local. Vinham, a seguir, os livros com narrativas e informes: Na Roda do Samba, de Francisco Guimarães (o citado Vagalume) e Samba, de Orestes Barbosa. Tinha-se em letra de forma subsídios, um pouco da história do samba transmitida a quem O quisesse estudar ou simplesmente conhecê-lo.

Sempre em crescendo, o samba ia consolidando sua vitória. Os esnobes aceitavam-no, mostravam-se interessados pela música que já ouviam em casa na transmissão de seus fonógrafos, (mais tarde substituídos por fidelíssimas vitrolas) e depois nas emissões das rádios. Não bastava isso. As rodas denominaram-se pretensamente escolas e, com seus professores e alunos saíram em desfile com bateria e baianas. Fizeram a primeira exibição na Praça Onze de Junho, em pleno Carnaval, firmando tradição no logradouro.

Avançavam depois para o asfalto da Avenida Rio Branco juntando à exuberância rítmica de seus cânticos uma orgia de roupagens, de cores e de luz. O samba saía dos terreiros, descia dos morros e entrava avassalante, pomposo, rotulado de escola, na maior festa da terra carioca.

Do Congresso sai a “carta” e o dia

Longe o tempo em que vivia espúrio, esbordoado, e a indiferença da grã-finagem mantendo-o distante, o samba consciente de seu triunfo ousou a realização de um congresso. Levou-o a efeito no Palácio Pedro Ernesto (Assembléia Legislativa) de 28 de novembro a 2 de dezembro de 1962. Deu-lhe patrocínio não só a Confederação Brasileira das Escolas de Samba, mas também a Associação das Escolas de Samba e a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Desse conclave resultou a Carta do Samba, redigida pelo folclorista Edison A. Carneiro onde além de se firmar “a preservação das características do samba” permitia-se seu progresso desde que não ferisse a tradição. Sugeria-se, por fim, tivesse o samba o seu dia.

Antecipando-se às resoluções do Congresso, o deputado Frota Aguiar, logo no início de novembro, apresentava a seus pares o projeto de lei n.° 681 instituindo “o dia 2 de dezembro como data consagrada ao samba”. Percorridos os trâmites da praxe a proposição subia ao governador do Estado para tornar-se dispositivo legal. A esperada sanção, no entanto, não foi obtida. Num despacho onde dizia “não há razão para considerar outro Dia do Samba, além dos três já dedicados à nossa festa popular”, o chefe do Executivo da Guanabara apunha o seu veto duro a formal.

Mas os sambistas, de rija têmpera, antes esbordoados e esnobados, viram triunfar, dias depois, o seu desejo com a rejeição da negativa. Derrubado o veto pela Assembléia Legislativa, tinha-se a conseqüente promulgação da Lei n.° 554 que desde então dava ao samba uma data, um dia.

(O Jornal, 29/11/1964) 
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.