terça-feira, abril 10, 2012

Vassourinha e as Emílias


Mário Ramos, o Vassourinha
Garoto e humilde, Mário Ramos apresentou-se na administração da emissora para executar as tarefas no emprego que seus pais lhe haviam arranjado. Miudinho, estando entre 13 e 14 anos, ficaria longe dos estúdios e dos microfones. Seria utilizado como menino de recados. Pela manhã, faria a limpeza da sala dos diretores varrendo-a e espanando móveis. Na sua condição subalterna, mandado por muitos, assistia embevecido à movimentação reinante no escritório. Cruzava com os artistas que por ele passavam indiferentes ou jogando-lhe a despreocupada saudação de costume: “como vai vassourinha!”.

Invejava toda aquela gente famosa, de muitos fãs, e tinha um desejo incontido de estar no meio dela. Sabia cantar uns sambinhas buliçosos, de breque, e se lhe dessem oportunidade, veriam que tinha jeito prá coisa. De fato assim foi. No dia que o levaram para o canto da sala e ouviram o menino, desembaraçado, com muita bossa, dar uma pala de seu valor, abriram-lhe caminho para sua carreira, infelizmente bem curta.

No melhor de sua ascensão, quando o apelido "Vassourinha" popularizava um excelente intérprete de nossa música popular, fazendo esquecer o office boy que antes fora, ele desapareceu. Morreu sem gozar o sucesso que lhe deu a boa Emília, cujo mérito de “preparar o café” ele alardeava em ritmo e melodias gostosas.

Apenas um “vassourinha”

O que o Sr. Paulo de Almeida Ramos e sua esposa Tereza pretendiam para o filho Mário era um emprego qualquer, de menor, próprio para um garoto de 13 anos já feitos. Precisavam de uma ajuda nas despesas da casa e o dinheirinho que ele iria ganhar na Rádio Record, de São Paulo, em serviços de escritório seria bem útil. Além disso, o ambiente de uma emissora estava no agrado do menino que vivia cantando seus sambinhas, imitando os artistas mais em evidência. Mesmo sendo para levar recados, para fazer limpeza, ser vassourinha, o meio lhe agradaria. Poderia talvez (“quem sabe lá?”) ter oportunidade de entrar em algum programa, cantar qualquer coisa: uma musiquinha fácil de seu repertório doméstico e só conhecido dos familiares.

Aquilo que o garoto tinha como sonho irrealizável, no entanto aconteceu. Puseram-no diante de um microfone e com essa chance facilitavam o que ele ambicionava. "Vassourinha" era o apelido que ganhara varrendo e espanando o escritório da PRB-8 e com ele ia sendo guindado à fama através de interpretações não só no estúdio, mas também no cinema e no disco. Suas primeiras gravações, já que ele cantava no estilo do famoso Luiz Barbosa, foram Juraci e Seu Libório. Depois vieram outras: Ela vai à feira, Olga, Chik Chick bum, Apaga a vela, E o juiz apitou, etc., todas favorecendo seu modo de interpretar, a bossa que lhe era peculiar. Dentro em pouco estava vitorioso e tinha lugar de destaque nos programas da rádio e nas pesquisas de vendagem de discos.

Emília, a velha e a nova

Iniciando-se em 1935 e falecendo a 3 de agosto de 1942, pôde mesmo assim, em apenas sete anos de atuação artística, deixar uma não muito numerosa mas expressiva bagagem. Nela sobressai-se, porém, o samba Emília, de Haroldo Lobo e Wilson Baptista, um de seus últimos (ou, parece, o último) sucesso. Lançado para o Carnaval de 1942 e tendo como motivo a exaltação da “mulher que sabia lavar e cozinhar”, além de acordar o amante na exata “hora de trabalhar”, era uma canção alegre, graciosa. Tinha a característica de um lamento (“Papai do céu é quem sabe a falta que ela me faz”) formulado com música viva, isenta de tristeza, de choramingas. Reclamava a volta da amada, insistentemente sim, suplicante não: “Emília! Emília! Emília!”.

Longe de isso pretender, usando embora personagem de igual nome, o sambista evocava uma velha heroína de saudosa modinha que, nos fins do século passado e princípios deste, era a preferida dos seresteiros. De origem presumidamente portuguesa, teve como seu mais conhecido intérprete o sempre lembrado Eduardo das Neves. Empunhando o violão aparecia no picadeiro e os aplausos do público que lotava toda a arquibancada do circo o saudavam. Feria as cordas e cantava: "Perdão Emília, se roubei-te a vida./ Se fui impuro, fui cruel, ousado./ Perdão, Emília, se manchei teus lábios./ Perdão, Emília, para um desgraçado.”

Depois numa descrição macabra, sofrida, tendo como cenário um cemitério, os versos relatavam um amor infeliz, o diálogo entre a Emília morta e o amante infiel arrependido. A antiga Emília, vítima lamuriada em música e letra, proporcionou ao Das Neves e a todos que cantaram a desdita, grande êxito de interpretação. A nova, aquela cuja ausência não permitia ao amante “viver em paz”, ao invés de provocar lágrimas, dava ao humilde Vassourinha também sucesso e fama.

Pouco, mas o bastante

Da carreira artística do office boy Mário Ramos, o menino que embora subindo jamais perdeu o apelido ganho na sua humilde origem de vassorinha de uma emissora de rádio, pode-se dizer ter sido ela rápida, porém vitoriosa. Os sete anos em que se exibiu nos estúdios, palcos e telas — pois afora os programas internos, participou de festivais e de filmes (Fazendo fita, em 1936, foi um deles) — bastaram para que deixasse patente sua qualidade de magnífico intérprete. Tal valor ainda mais se evidencia nos vários discos que gravou e nos quais ainda se tem a grata satisfação de ouvi-lo com sua bossa própria e muito apreciada.

Assim, duas Emílias, mulheres diversas, mas de igual nome, bem distantes uma da outra, serviram de pretexto para que se recordasse o garoto vitorioso tão prematuramente desaparecido. A Emília de agora, de nossos dias, que Vassourinha num alegre apelo queria tê-la fazendo o gostoso café e “não desfazendo nas outras”, era mulher amiga e carinhosa, levou-o à fama e popularidade. Não pôde, infelizmente, o Vassourinha desfrutar o sucesso que a boa Emília lhe deu e que se refletia na procura constante dos discos onde ele a chamava: “Emília!, Emília!, Emília!, eu não posso mais.”

(O Jornal, 18/7/1965)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

Negros e macumba inspiraram Ary


Os sambistas antigos, os chamados da velha guarda, ligados aos africanos ou a seus descendentes quase todos baianos e de cor preta ou mulata — freqüentavam macumbas, candomblés e tinham seus terreiros preferidos. Daí encontrar-se em muitas de suas produções referências a meu pai de santo, meu orixá, afora o recurso de buscar rimas fáceis em termos africanísticos ou pseudo-africanísticos: Ôcu-babá gê-lê, saravá, etc. Característica que se tem comprovação abundante relembrando-se os sambas de Donga, Getúlio Marinho, Hilário Jovino e até mesmo do popularíssimo Sinhô.

Quando os musicistas brancos, já despegados das raízes negras que influenciavam o samba autêntico, relegaram a modinha e a cançoneta, criando o samba citadino (dos morros, do asfalto e das mesas dos cafés), tomaram novo rumo os motivos passaram a ser outros: o barracão, a pobreza do Com que roupa?, a crítica do Aí, Filomena, amores infelizes e glosas momentâneas. O africanismo deixou de surgir nas letras, embora o melódico e o rítmico ainda repousassem nele. Assim, ao se ver, um compositor de música popular, já aureolado pelo sucesso de suas produções — Ary Barroso — num terreiro de macumba era de se esperar que aquela sua incursão não fosse apenas curiosidade. E não foi. Trouxe do ritual que viu e ouviu, sugestões, temas que usou.

Uma macumba para Josephine

Em 1939, estando a famosa colored Josephine Baker no Rio, onde se exibiu em nossos principais centros noturnos, a revista O Cruzeiro e o vespertino Diário da Noite resolveram mostrar-lhe uma macumba. Da organização desse espetáculo ficaram incumbidos Heitor dos Prazeres, O professor Carlos Cavalcanti, Paulo da Portela, José Espinguela e mais alguns entendidos em samba e na prática dos ofícios das religiões negras. Não seria, a rigor, a realização do ritual, mas apenas o demonstrativo em que se juntaria uma exibição mista de sentido folclórico, o entoar de pontos e de sambas. Tudo com baianas e pastoras, gingando na coreografia propiciada pelo ritmo.

Para os conhecedores ou iniciados, os que freqüentaram os terreiros ou festas de santo dos famosos alufás ou orixás, talvez a reunião, além de profanar os mitos das crenças negras, deixasse a desejar. Tratava-se, porém, de proporcionar a uma leiga, embora precariamente, com os recursos possíveis para uma realização imediata, o conhecimento da macumba que ela sabia ter cultores não só na Bahia, mas também no Rio.

Heitor dos Prazeres que pela sua tradição no meio e convivência com tias, mães, e pais de santo foi investido como principal organizador da sessão, procurou desobrigar-se do melhor modo. Josephine assistiria a uma macumba, não legítima, verdadeira, mas capaz de empolgá-la.

No terreiro de Mãe Adedé

À falta de um local autêntico, Heitor e seus companheiros improvisaram no quintal da casa de Adedé, sua amiga residente na Rua Major Rego, no subúrbio leopoldinense de Ramos, o terreiro para a macumba. Foi para lá que na noite de 30 de junho de 1939 se dirigiu numerosa comitiva acompanhando Josephine Baker e integrada, entre outros, por Jorge Fernandes, Dircinha Baptista e Ary Barroso. Este último, embora tivesse a missão específica de irradiar pela Rádio Tupy as ocorrências do espetáculo afro de música e religião que ali seria apresentado, iria captar a musicalidade reinante.

Casando à função jornalística do momento a sensibilidade artística inata que já o marcava como um de nossos melhores compositores de música popular, Ary ouvia atentamente os pontos e aprendia sua linha melódica. Sentia, como agora ficou em moda dizer-se, a negritude dos cânticos e de seus versos onde se falava de divindades estranhas aos brancos, sempre ao jeito de lamento, numa réplica dos spirituals, mas igualmente conduzindo preces.

Viu, sem se impressionar muito, os cavalos receberem pretos velhos que baixavam saudando os presentes (“saravá meuze fio!”) e pediam pito e marafa. Fixava, no entanto, sua atenção, de modo especial, na expressividade do ambiente impregnado de música rústica marcada pelo bater constante do atabaque. O compositor branco recolhia do espetáculo sugestões, temas que viria a explorar.

Negros e macumba inspiram Ary

O que acima se articulou como possível resultante da visita de Ary Barroso ao terreiro de Mãe Adedé, de fato, aconteceu. O compositor, cuja ida à estação de Ramos seria, apenas, para fazer cobertura radiofônica da macumba que Heitor dos Prazeres e Carlos Cavalcanti proporcionaram a Josephine Baker, trouxe de lá inspiração e sugestões. E elas repontaram pouco depois. Em 1942 (segundo discografia de Almirante e de Mariusa, filha do saudoso musicista) Ary lançava um samba onde dizia: “eu vô fazê um despacho para arranjá outro amo...“. Logo a seguir, em 1943, surgia o Terra Seca, de grande sucesso, com o refrão: “trabaia, trabaia, nego”. E, sem muita demora, em meio da produção farta que o seu estro lhe permitia, um outro samba intitulado Xangô tinha a marca afro, mostrava as sugestões do terreiro de Mãe Adedé.

Claro está que Ary Barroso, versátil, de numerosa bagagem musical, não condicionou, após a ida a uma macumba, todas as suas composições aos pretos véios que viu incorporarem-se no terreiro de Ramos. Seus sambas e marchas conduzindo motivos vários, tiveram aspectos que subiram do primarismo musical, como o Dá nela, dá nela, visando ao sucesso carnavalesco, até o alegórico do Aquarela do Brasil. Não se negará, porém, que o despacho ou ebó como recurso para arranjar outro amor, assim como o negro moiado de suó ou Xangô (santo estranho a brancos), possivelmente, lhe foram sugeridos no terreiro de Mãe Adedé.

(O  Jornal, 30/5/1965)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.