quinta-feira, maio 09, 2013

“Coração Materno” quase vira tragédia

Vicente Celestino
Em todas (pode-se afirmar com segurança, em todas) as canções de amor, sejam de concepção rebuscada ou popularesca, o coração aparece como figura simbólica e de grande efeito alegórico. Não o usam os poetas, os compositores, no prosaísmo gramatical, como simples substantivo comum masculino.

Muito menos — exceção talvez de Noel Rosa que assim procedeu — o apresentam laconicamente como “grande órgão propulsor, distribuidor do sangue venoso em arterial, tal qual está no “Samba anatômico” do poeta da Vila.

Os poetas, os compositores, mesmo os mais vulgares, que se valem da acentuação oxítona da palavra, aproveitando o punhado de rimas que ela oferece, jamais o deixam de dignificar no melhor simbolismo alegórico.

Assim sempre que o tema é amor, o coração implicitamente é focalizado com exaltação incontida. As vezes até raiando pelo absurdo, no desregramento a que têm direito os poetas em suas lucubrações fantasiosas. Jamais alguém pensou, ou quis se certificar, se existe coração de ouro, no sentido de seu portador ser bondoso ou se de fato as pessoas que se comovem facilmente têm coração mole.

Sabem todos, os que recitam os poetas, os que cantam suas canções, que o coração figura no desenvolvimento do tema, quer sendo objeto principal ou em alusão glorificante, tratando-se apenas de faz-de-conta. Nunca para valer, para ser aceito em termos positivos: no duro!

Vicente e o “Coração Materno”

Quando Vicente Celestino compôs o tango-canção Coração Materno, e com sua própria voz divulgou-o com grande sucesso em apresentações nas rádios e tevês, afora a vendagem de milhares de chapas fonográficas, por certo não esperava que a narrativa por ele feita musicalmente viesse a ser posta em termos reais.

O hipotético campônio que na canção se dispõe “a matar, a roubar”, se sua idolatrada o exigisse, era, apenas, um símbolo. Era a figura hipotética de um amante ingênuo, disposto a qualquer façanha, ainda que absurda, para demonstrar sua “louca paixão” à mulher amada. Nada mais que isso, como se depreende da versificação incapaz de impressionar, ou de pretender qualquer mérito.

Portanto, a "amada idolatrada", ao pôr em dúvida a paixão do campônio e ao dizer-lhe, “a brincar” (como Vicente esclarece na letra de seu tango-canção, que fosse buscar “de sua mãe, inteiro, o coração”, não o suportaria chegar ao realismo. 

Vicente fez uma canção despretensiosa, reconhecidamente de mau gosto e que, a despeito da vendagem de milhares de discos, os aplausos frenéticos dos seus fãs, não impressionou as pessoas de razoável discernimento intelectual. Isto sem se ir aos críticos que subestimaram, sem reservas, a história versejada e musicada de Coração Materno.

Um “campônio” vai ao realismo

Absurdo, estapafúrdio, coisa inconcebível a narrativa de Coração Materno, de Vicente Celestino, quase teve, no entanto, quem a levasse ao realismo, conforme relato encontrado nos jornais do dia 30 de novembro findo.

Procedente de Recife, a notícia conta que, na cidade pernambucana de Belo Jardim, o jovem Jesuíno Mourão, de 21 anos, foi surpreendido “amolando um punhal no quintal de sua casa”. Pretendia, como se veio a saber, atender ao pedido de sua namorada Carmelita que, por gracejo ou “a brincar” como está na letra de Coração Materno, queria que lhe provasse sua “louca paixão”,  como o fizera o campônio da canção.

Graças, porém, à suspeita de uma vizinha, a senhora Rosalina da Conceição, a mesma que flagrou Jesuíno afiando a arma com a qual se dispunha a tirar “do peito, sangrando, da velha mãezinha, o pobre coração”, a prova de amor exigida por Carmelita não foi atendida. A atenta vizinha, sempre vigiando o jovem que pretendia encarnar, ao real, o campônio, personagem do Coração Materno, no momento exato em que ele, à porta de uma capelinha existente no local, ia consumar a extravagante promessa, gritou alertando a quase-vítima.

O matricídio insuflado ou sugerido na canção que Vicente Celestino fizera e interpretava com a ênfase vocal de um tenor popularíssimo, não teve consumação.

Coração apenas no simbolismo

Há de parecer incrível, e até talvez seja tida como “coisa de jornal”, essa gorada façanha do moço Jesuíno Mourão, da cidade de Belo Jardim, no agreste de Pernambuco. Que sua namorada, a jovem Carmelita, como ela mesma declarou ao delegado local, houvesse feito tão absurdo pedido, brincando, imitando a “amada idolatrada” do Coração Materno, de Vicente Celestino, é fácil de compreender.

Gente humilde, na sua vida ingênua de uma cidade interiorana, a canção que a voz possante do intérprete ali tornara bem difundida, foi logo apreendida, popularizada e sugestionou quantos a ouviam. O campônio que não hesitou em “tirar do peito, sangrando, o coração da velha mãezinha”, provava assim, na vaidade de um nordestino humilde, que era, de fato, “home de palavra”, que era “cabra-macho”.

Para Jesuíno, o simbolismo, ainda que de mau gosto, pedia uma concepção real, exatamente como sua Carmelita queria para prova de grande amor. E assim Coração Materno, de Vicente Celestino, ia tendo, “no duro”, “pra valer”, um campônio de verdade, “ao vivo”, como protagonista.

O Globo, 11/12/1972


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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira - Volume 2 / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

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