quinta-feira, junho 26, 2014

Muraro: o tango e o foxtrote


Considerações sobre o tango e o fox a propósito do espírito nacional — Eriberto Muraro fala ao semanário "Carioca" de julho de 1937.

"No Brasil o tango argentino e o foxtrote gozam de um prestígio imenso e permitem classificar duas psicologias opostas: a sentimental e a dinâmica. Menina olheirenta e com predisposições suicidas é, seguramente, fã de Carlos Gardel e dos mais narradores de tragédias em gíria portenha posta em clave de sol.

O tango contém pessimismo bastante para deliciar qualquer cidadão que julgue ter um inferno no peito; e cavalheiro metido à triste por força há de sussurrar ou não, seu "Portero suba e digale", com inflexões que de sombrias farão inveja a um cipreste.

No Rio o tango é música iminentemente suburbana porque o subúrbio tem um vida mais trágica, ditada pela pobreza da sua população; o calor suburbano também será uma das razões do prestígio dessa música de ritmo arrastado e dolente, perfeitamente realizável sob 40 graus à sombra; a limitação urbana da zona interior da cidade e suas feiuras que somente Lima Barreto conseguiria tornar pitorescas, são coisas que obrigam as moças presas no largo do Meyer ou nos passeios de Cascadura a uma evasão para os terrenos da fantasia que a temperatura torna mórbida.

O foxtrote, por sua vez, é a canção predileta dos mais favorecidos pela vida; dos que habitam as praias cuja esportividade não permite ideias soturnas; o banho de sol, tônico maravilhoso, realiza o milagre do "mens sana in corpore sano", o fox é saudável e vigoroso, mais concorde, portanto, com a esportividade marítima; é dançado por gente vestida apenas de maiô, em terraços ensolarados, ao som de uma vitrola portátil standard.

Já o tango só é concebível se bailado com longos e fatais vestidos negros, sob meias-luzes sugestivas. Senhoritas de Copacabana que cantem tangos destoa no seu meio, assim como menina de Cascadura que tente seu "inglesinho" fílmico será olhada como sirigaita pelas suas cerebrais companheiras de subúrbio.

É lógico, pois, que com tamanha influência sobre o público, essas duas danças estrangeiras criassem em nosso meio radiofônico, que é o meio mais eficiente de divulgação, grande número de executores, uns autênticos pela nacionalidade, outros indígenas, mas tão fieis como os primeiros.

No Brasil a maior autoridade em música típica argentina é Muraro, músico inteligente e trabalhador, que se acha radicado em nossa terra.

CARIOCA o procurou, cônscia de interessar os seus leitores com as palavras do chefe da "muchachada" da Mayrink Veiga.

Muraro fala com o sotaque castelhano e diz "blagues" estupendas ao mesmo tempo que revela uma cultura geral incomum nos músicos, gente que em matéria de preparo é unilateral. Eis suas palavras:

— Nasci na Argentina e quando criança apanhei sovas memoráveis. Meus pais, indignados contra a aversão que eu demonstrei pela música, a carreira que me destinavam. Positivamente a chinelada é um argumento poderoso porque hoje não deixarei a música nem o pão ... Estudo várias horas por dia e o piano é a minha vida.

— Como veio para o Brasil?

— Dedicando-me a harmonização de temas folclóricos de todo o mundo, principalmente da América do Norte. Aqui chegando, há quatro anos, fui absorvido pela imensa riqueza da música brasileira, que hoje é uma das coisas que mais merecem a minha atenção. Os motivos melódicos deste populário são de uma universalidade incomum na produção musical de outros países. Juntou à graciosidade da melodia um ritmo que atrai notavelmente; um movimento novo como a terra do qual é filho.

As possibilidades da música brasileira — continua Muraro — só podem ser devidamente apreciadas por quem, como eu, se dedica ao desenvolvimento orquestral de pequenos temas. Perco-me, às vezes, dentro da riqueza enorme desses motivos, ofuscado pelas suas exuberâncias. Porque eu sou visceralmente músico e porque o Brasil é principalmente um país musical (mais que agrícola) ... Eu amo esta terra como se ela fosse a minha; quando sair daqui levarei a intenção de propagar as suas riquezas no Exterior e de voltar tão pronto quanto for possível. A propósito: tenho em mira a realizar brevemente uma excursão artística pela América do Norte, onde farei executar uma série de composições brasileiras, o que me faz prever um grande sucesso. As músicas brasileiras do sul e do norte são irmãs extraviadas; da sua fusão resultará algo gigantesco e digno desta maravilhosa América.

E Eriberto Muraro, que dá uns ares de Bing Crosby, se despediu levando consigo a inteligência e o bom-humor, qualidades que são suas inseparáveis companheiras."


Fonte: Revista semanal Carioca, edição 92, de 24/7/1937.