quinta-feira, julho 24, 2014

Nosso Sinhô do Samba - Parte 9

Sem conhecer a Bahia, detestava o "grupo baiano", contituído, entre tantos, por Pixinguinha, China e Heitor. Mas tinha verdadeiro pavor por maus-olhados e por outros feitiços de origem africana.  Mesmo assim fez várias músicas nesse tema e apadrinhado por Catulo da Paixão, fez versos rebuscados em canções sertanejas. É Sinhô, o rei do Samba!

A Bahia e suas tradições, suas lendas e crenças, seus dengues, suas comidas foram sempre motivo de encantamento de poetas e escritores, de artistas e seresteiros. Todos os brasileiros temos filial carinho pela velha Bahia, "berço da nacionalidade", terra de grandes homens, de figuras da dimensão de Rui e Castro Alves.

É curioso registrar que o nascimento do samba carioca ocorreu no Rio, mas em 'território baiano', isto é, no meio das baianas e babalaôs da praça Onze e adjacências. E nunca mais a Bahia se dissociaria da música popular, notadamente do bom samba carioca.

Antes, já a velha Província ou as baianas apareciam nas cantigas. Ernesto de Souza, dos primeiros compositores populares do Rio (carioca nato), fixou nas suas cançonetas o tipo da mulata da boa terra. "A Mulata da Bahia", uma das suas produções mais divulgadas, acabou sendo sucesso do Carnaval de 1904:

A mulata da Bahia
Não tem osso, é carne só
Sapateia noite e dia
Em qualquer forrobodó.

Sinhô, um dos pioneiros do samba e talvez o seu mais importante fixador, embora carioca legítimo, talvez pelo seu permanente contato com a baianada oriunda da autêntica, encontrou na Bahia, que não conhecia, e nos seus costumes motivação para muitas das suas composições. Quando começa a aparecer como pianista e compositor, nos últimos anos da primeira década do século XX, a música popular do Rio era representada pelas composições dançantes — polcas, valsas e maxixes — a maioria sem versos, e pelas modinhas seresteiras e cançonetas brejeiras.

Os meios que frequenta e onde já se destaca como músico são os das pequenas agremiações diversivas, de títulos curiosos ou extravagantes espalhadas pela cidade, notadamente no Centro, bairros modestos e alguns subúrbios. O forte dessas sociedades são empregadas domésticas e operários, com predomínio dos negros. A praça Onze, a Saúde, as ruas transversais à Central do Brasil (Estação Pedro II) eram no dizer de Heitor dos Prazeres "uma África em miniatura". As casas das tias e babalaôs, como já vimos, se tornaram redutos de sambas (danças) de ritos afro-brasileiros e hábitos da Bahia. Sinhô ali se familiariza e faz amigos.

Naturais seriam as impregnações a que não poderiam fugir as suas composições do ponto de vista melódico como temático. Ademais, o caboclo carioca era de sensibilidade aguda, voltada para o misticismo. Um crente no poder e nas forças dos ritos africanos para aqui transplantados.

Já na sua primeira composição conhecida, a marcha-rancho "Resposta à inveja" (1917), não editada e nem gravada com a forma inicial, (1) réplica do Grupo As Sabinas da Kananga, de que era diretor, à marcha "Inveja" do Bloco Quem Fala de Nós Tem Paixão, demonstra a sua convicção místico-religiosa e, consequentemente, o pendor para a Bahia ou para as baianas, que a partir do século XX foram sempre ponto alto no Carnaval carioca:

São as baianas
Que oferecem esta canção
De coração

Aos maus-olhados
Isto não ligamos
Pois com arruda
Facilmente lhe tiramos
E para a inveja
Temos uma figa
Feita na África
Com o bom guiné de riga.

Por aí se vê bem o temperamento do compositor que surgia enfrentando os maus-olhados com arruda e figa feita na África com guiné de Riga (2) e comprando briga ...

Não obstante a declaração — 'não ligamos aos maus-olhados', Sinhô tinha verdadeiro pavor dos olhos maus dos seus circunstantes. Em "Alivia estes olhos" (1920). 'samba médio', segundo a sua classificação, voltava ao motivo:

Alivia estes olhos pra lá
Que ainda ontem fui me rezar
Tenho medo deste olhar
Que procura-me a vida atrasar.

Esqueçamos a colocação do pronome do último verso, com sabor quinhentista, e nos detenhamos na do segundo verso, com a expressiva forma reflexiva do verbo rezar. O mesmo emprego pronominal desse verbo dentro do linguajar curandeiro aparece no samba "Já-já", de 1924.

Credo cruz
Vá se rezar
Para tirar
Este azar.

Já anteriormente, em 1920, no samba "Vou me benzer (As Criaturas)", o medo dos maus olhos é fixada no estribilho:

Vou me benzer
Para me livrar
Destes maus olhos
Que querem me botar.

Não há dúvida de que a atenção do compositor carioca aos temas baianos vinha muito das suas crenças. Sinhô gostava dos motivos afro-brasileiros e foi grande amigo de Assumano, a quem submetia previamente seus sambas e marchas, como se dele procurasse uma bênção para o sucesso. Em sua bagagem musical figuram composições de nítida inspiração africana ou baiana: "Ai ué dendê: Bofé Pamim Dge" (batuque africano); "Burucuntum"; "Macumba"; "Maitaca"; "Ojaré"; "Oju Burucu"; o citado "Vou me benzer" etc, etc.

Não era à toa que o sambista frequentava Assumano. Em "Oju Burucu" (1925), por ele designado como batucado (ou batucada), o poemeto é esquisito mas expressivo:

Quem eu quero bem
Me atira aos venenos
O mundo é assim
É assim mais ou menos.

Assu, Amadeu
Assu, Amadeu
Assu, Amadeu
Assu, Amadeu.

Cosi incantô
Ju Oju-Burucu
Cosi incantô
Ju Oju-Burucu.

O misticismo do sambista do Rio é patente ainda na letra simples de muitas outras produções, nas quais se mostra voltado para as crendices, rezas e exorcismos. Nem sempre são os deuses africanos os invocados pelo compositor, que mesmo nos instantes de enlevo amoroso, de paixão mal correspondida, está sempre a imprecar e a proferir nomes de santos em meio a votos e juras:

A malandragem eu não posso deixar
Juro por Deus e Nossa Senhora
É mais certo ela me abandonar
Meu Deus do Céu! Que maldita hora! ...

No samba "Macumba", quando lançou o termo Gegê, o compositor afirma ainda uma vez não ter medo de feitiço porque tem um bom santo. Esse samba teria sido composto logo após o rompimento do autor com Cecília.

Em 1928, com o samba "Tesourinha", voltaria Sinhô a referir-se ao seu guia:

É loucura procurares
Minha estrela derrubar
O guia que Deus me deu
Só ele me pode tirar.

Essa estrofe é repetição com pequena variante de frase do samba "Quem fala de mim tem paixão", etiquetado pelo autor como 'samba universal' ...

No samba-choro "A Medida do Senhor do Bomfim", novamente há referência a um guia sacrossanto, apresentado, aliás com certo pernosticismo, à Catulo:

Enquanto a verdade
No mundo existir
Será morta a falsidade
Ao sorrir destes invejosos
Que não cansam de fingir
Que gostam da gente
Sem terem maldade
Eis o prisma transcendente
Da real fatalidade
Que traduz a saudade.

Até parece que o sambista se transviou do roteiro, mas ele se encontra para falar no principal:

Mas eu tenho um guia sacrossanto
Que conduz-me à luz do Ser!
Tanto que ganhei na Bahia
Uma caixinha de marfim
Para me valer
Meu anjo de guarda
Com seu manto me ensina
Tudo quanto sei dizer
A pura medida bela e santa
Do Sagrado Coração do Senhor do Bonfim.

O sambista não tinha preferências nem era exclusivista em matéria de religião. Cria igualmente nos santos da Igreja Católica que invocaria de quando em vez. Como na canção brasileira "Confissão" (1927), de versos catulanos, nos quais mistura seus enlevos de apaixonado e súplicas aos céus:

Em esplendor
iluminando um sonhador
que sem cessar
pedindo vem ao Criador
rogando preces valiosas ao Senhor!
No santo templo junto à cruz
do Bom Jesus
pedindo só
por teu amor.

Repetidas são as suas invocações a santos, ao Santo Deus, `Santa Cruz, à Nossa Senhora, ao Redentor, inclusive numa de suas mais famosas produções -- o samba "Jura":

Jura, jura, jura
pelo Senhor
Jura pela imagem
da Santa Cruz do Redentor!

Quanto à Bahia, depois da marcha-rancho inicial de sua carreira de compositor popular, teria sempre destaque na sua inspiração. Umas vezes exaltando, outras criticando ou pilheriando, mas de qualquer forma pondo em relevo a boa terra. No seu primeiro samba de sucesso — "Quem são eles?" — (1918), já a Bahia despontava; ainda que o sambista lhe fizesse a restrição pilhérica:

A Bahia é boa terra
ela lá e eu aqui.

Depois viria "Fala meu louro", saborosa sátira ao grande Rui que era uma das suas admirações, como de todo o Brasil:

A Bahia não dá mais coco
Para botar na tapioca
Pra fazer o bom mingau
Para embrulhar o carioca.

Também não são poucos os apelos de Sinhô aos motivos folclóricos ou campesinos. Gostava mesmo de misturá-los, como era hábito então dos compositores que se iam abeberar nas fontes populares notadamente do Norte brasileiro. No mencionado samba "Quem são eles?", a segunda parte é puramente folclórica:

Carreiro, olha a canga do boi
Carreiro, olha a canga do boi
Toma cuidado que o luar já se foi
Ai! Olha a canga do boi!
Ai! Olha a canga do boi!

Dessa fase inicial são várias as composições em linguajar caipira, sem maior importância como o samba "Disse me disse" (1919):

Capineiro marvado
Não capina capina aí
O capinzal é de meu bem
Onde canta a juriti

Juvená, Juvená
Arrebata esta faca
Juvená
Torna a rebatê
Juvená
Que isto não é má
Juvená.

Foclore adaptado é o poemeto de "Cada um por sua vez" (1920), lembrando "Casinha da bambuê, coberta de bambuá":

Casinha de sapê
Forrada do bambuá
Cercadinha de capim cheiroso (bis)
Para mim e meu bem morá
Ai ué, ai ué, ai ué, ai ué, ai ué, ai ué (bis)
Ai uá.

Samba meu bem
Que eu sambo também
Esta casa é tua
E mais ninguém.

Só tenho medinho
Do marruá
Que uma chifrada
Nos venha dá.

Porteira de imbaubá
Tramela da bambuí
O número é um ninho
Rodeado de bem-te-vi
Ai ué, ai ué, ai ué
Ai ué, ai ué, ai ué

Carioca da gema, nascido no centro da cidade, o sambista aqui e ali procurava o cenário do campo, do sertão. Em "Volta à palhoça" (3), samba de 1926, para o Carnaval de 1927, assim começa:

Ó Gegê
Tenho uma casa de palha
Quando tiveres saudade
Vá visitar a canalha.

Depois do convite bem carioca com aquele "canalha" significando graciosamente a família, os versos líricos:

Fica pertinho da grota
Dentro das matas sem falha
Esta vivenda amorosa
Onde o amor se agasalha.

Em cada canto da casa
Pendurei uma esperança
E os dizeres são estes:
Quem espera sempre alcança.

Sem nos determos nas extravagâncias gramaticais de Sinhô, que nunca lhe comprometeram as glórias de artista do povo, vale a pena observar a sua pretensão ou talvez ingenuidade: o seu beijo é 'beijinho', há uma 'linda flor' nos seus ais; suas preces ao Criador são 'valiosas'. Dedicando a canção-cateretê "Alegrias de caboclo" (1927) a Nair Moreira, usa a expressão "à minha feliz companheira". Essa composição tem versos bonitos, embora malcuidados:

Caboclo não tem tristeza
Ai! ai! meu bem
São traços da natureza
Ai! ai! meu bem.

Faz da manhã poesia
Do dia uma sinfonia
Da tarde rude harmonia
Da noite rica alegria.

Perdulário da rima nessa estrofe, o poeta continua mais sóbrio quanto à forma, ainda que eloquente na imagística:

Das folhas secas que caem
Faz a fogueira do amor
E do clarão que provém
Faz sua prece de dor.

Das suas mais belas composições é "Sabiá", de 1928:

Sabiá, sabiá cantou na mata
E anunciou chiu, chiu
No melhor da minha vida
Meu amor fugiu.

Procurei me aproximar
Do sabiá encantador
Que sentindo o meu pisar
Fez tal e qual o meu amor.
..........................

"Canção roceira" (1920), "Bem-te-vi" (1925), "Sonho de gaúcho" (1922) são outras composições nas quais Sinhô procurava intervalar os motivos do asfalto. Embora valham mais pela melodia, provam pelo menos a versatilidade do sambista carioca ...

(1) Depois editada com alterações, sob o título "Não posso me amofinar" (1921-1922); (2) Apesar do "r" minúsculo, parece se tratar de Riga, grande empório de madeiras de lei; (3) Na edição da parte musical a crase não aparece.


Fonte: "Nosso Sinhô do Samba" / Edigar de Alencar - Edição FUNARTE - Rio de Janeiro 1981.