quinta-feira, março 15, 2012

O público vaiava e Carmen chorava

Carmen Miranda em 1930
Não houve apenas uma vaia esparsa, sem densidade, partida de pequeno grupo. Foi, como registrou acreditado matutino: “pateada geral e partia tanto dos balcões como dos camarotes e da platéia, onde cavalheiros em altos brados exigiam que se respeitasse a família brasileira”. Coisa mesmo de causar pânico, de se temer um quebra-quebra ou a clássica chuva de ovos e tomates sobre o palco visando aos atores.

E Carmen Miranda, que naquela noite fazia sua estréia no teatro integrando um numeroso elenco juntamente com os mais afamados intérpretes de revistas, apavorada, trêmula, chorava copiosamente. Escondida nos bastidores, já que ali se postara por ordem do contra-regra para a entrada no quadro seguinte, não lhe acorreu a idéia de refugiar-se no seu camarim. Amedrontada, continuava no mesmo lugar, em pranto, como estátua.

Assim se conta a história

Anunciada para 11 de setembro (1930), só na noite seguinte verificou-se, às sete e três quartos, horário de praxe das sessões, a primeira representação da revista Vai dar o que falar, no Teatro João Caetano. Além de ter a autoria de Marques Pôrto e Luiz Peixoto, ases do gênero, seria “defendida” por um punhado de estrelas: Palitos, Eva Stachino, Olga Navarro, Sara Nobre, Sylvio Vieira, Tina de Jarque, Zaíra Cavalcante e outras. Como atração, pois era na época a “Rainha do Disco”, a empresa Antonio Neves & Cia. Ltda. incluíra também no conjunto Carmen Miranda.

Precedida de farta publicidade, destacando-se nos anúncios os nomes dos componentes do verdadeiro scratch de atores do teatro popular, a première (no francesismo usual) despertou grande interesse. Com ingressos que custavam, as frisas 35 mil réis e as galerias (torrinhas) 3 mil, a lotação fora vendida totalmente. Todos queriam assistir ao espetáculo que, afora tantos atrativos, teria “efeitos de luz como só se vê nas revistas de Paris, Nova Iorque e Londres”. A razão, porém, da rápida venda das localidades não se tinha dúvida que era, principalmente, o aparecimento da criadora da marchinha Tá i em um dos palcos da Praça Tiradentes.

Uma estréia “au grand complet”

Sempre no correntio galicismo então dominante nas colunas sociais da imprensa, a estréia da parceria Pôrto-Peixoto deu-se, de fato, au grand Complet. Quando o maestro Augusto Vasseur, regente da orquestra e autor, juntamente com Ary Barroso, da partitura, bateu com a vareta na estante convocando os professores à execução da ouverture toda a platéia estava em expectativa otimista. Vieram logo, ao final, palmas calorosas augurando um bom início para o espetáculo.

Os primeiros quadros, sketches cômicos, números cantados e de fantasia, lograram, igualmente, o mesmo êxito. Aplausos demorados, alguns pedidos de bis comandados pela galeria lá do alto do teatro animavam o curso da representação sem fazer prever o incidente que depois veio a se verificar. Carmen Miranda surgiu em cena para seu primeiro contato com o vultoso público e teve acolhida consagradora. Desenvolta, com seu hit que transportara ao vivo dos estúdios das gravadoras de discos para o palco, provocou ruidosa manifestação de agrado intercalada dos bravo! de entusiasmo.

A pateada faz parar o espetáculo

Depois de um primeiro ato feliz, concluído com a chamada dos autores, atores, regente e até mesmo do pessoal da maquinaria, não se poderia prever o incidente que iria ocorrer pouco depois. Carmen Miranda voltaria a aparecer na segunda parte da revista e deveria ter palmas tão expansivas quanto as que lhe já haviam sido dadas.

Consoante o roteiro dos quadros entraria depois de O Mangue, cena na qual os autores reproduziam o bas fond carioca com o meretrício nele existente. Era uma tentativa ousada de levar o realismo ao teatro sem artifícios ou moderações.

Ao abrir-se a cortina, o simples cenário causou revolta, provocando vaia, apupo, que se generalizou em pateada geral fazendo parar a representação. De pé, indignados, alguns espectadores gritavam enquanto outros batendo com os pés fortemente no assoalho repudiavam o quadro que pretendiam lhes exibir. Já postada nos bastidores, aguardando sua entrada, Carmen Miranda, na emoção de uma estreante, embora confortada pelo sucesso da aparição no ato anterior, tomou-se de pavor. Os silvos agudos, a gritaria, o barulho ensurdecedor deixando clara a fúria reinante na platéia, encheu-a de pânico, de medo. Chorando, sentia-se presa ao chão, tremendo muito, temendo que toda aquela gente realizasse um massacre feroz, impiedoso.

Apesar de tudo, uma estréia brilhante

Encorajando-se, Pablo Palos, o Palitos, apelido pelo qual o conhecido ator argentino se popularizou em sua terra e no Brasil, apareceu no palco e pediu calma. Anunciou que o quadro não seria exibido e nos demais nada haveria capaz de chocar a assistência. Resultou feliz a intervenção, pois serenados os ânimos, refazendo-se do temor que a levara ao pranto, com os olhos ainda vermelhos, resistindo à maquilagem, Carmen Miranda pôde voltar para seu segundo número.

Novamente, conseguindo com sua graciosidade fazer esquecer o incidente, Carmen Miranda provocava os aplausos de toda a platéia, marcando auspiciosamente, a despeito de tudo, sua estréia no teatro. No dia seguinte, sem deixar de aludir à lamentável ocorrência, a crítica assinalava o êxito daquela que viria a ser “A Pequena Notável”. Fazia-o com francos encômios como bem atesta o registro de O Paiz aqui reproduzido: “...Miranda que triunfou na gravação de discos será em breve um dos mais brilhantes esteios de nosso teatro ligeiro.”

(O Jornal, 5/5/1963)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

O Visconde de Bicohyba

Quando José Luiz de Moraes, o Caninha Doce (ou simplesmente o Caninha), proclamava-se o “único sambista com diploma oficial”, em virtude de ter ganho um concurso patrocinado pela Prefeitura do Distrito Federal, cometia equívoco, praticava omissão. Não era ele o “único”. Seu parceiro, o Visconde de Bicohyba (Horácio Dantas) também desfrutava essa honraria, pois o É batucada, vitorioso no referido certame, era de autoria de ambos.

O então Interventor da cidade, doutor Pedro Ernesto Baptista, concedeu o dignificante documento aos que compuseram música e letra na produção vitoriosa e não apenas a ele Caninha o Visconde, principalmente carnavalesco, não convivendo assiduamente com a gente do samba, pois o seu habitat era o Clube dos Tenentes do Diabo e o Cordão da Bola Preta, embora pudesse também se proclamar “Sambista Oficial”, jamais deu importância ao diploma.

Antes, com Raul Malagutti, Aristides Prazeres, Jessé Menezes e outros, já havia feito marchinhas e sambas, que se não lograram triunfar em competições oficiais ou oficiosas tiveram grande divulgação nos fandangos das agremiações citadas bem como nos de suas coirmãs.

Vamos conhecer o Visconde

Nascido (né, diria o confrade Ibrahim Sued) Horácio Dantas, com esse nome foi aluno do Colégio Pedro II onde teve como colega, entre outros, o saudoso Virgílio de Mello Franco. Mais tarde, convidado por Humberto de Campos (o Conselheiro XX) para colaborar na revista A Maçã criou então o pseudônimo Visconde de Bicohyba com o qual veio a se popularizar nos redutos dos soldados de Momo. No grêmio dos Tenentes e dos Bolas ninguém o conhecia a não ser pela alcunha que criara para sua atividade literária. Era, apenas e intimamente, o Bicohyba.

Boêmio, dotado de esplêndido senso humorístico, ao qual aliava boa cultura geral, escolheram-no, na caverna (nome que tem a sede do Clube dos Tenentes do Diabo), para, juntamente com Marquezinho (Marques da Silva), ser o redator de O Baêta, jornal que se denominava “vibrante pasquim carnavalesco”. No Cordão da Bola Preta fizeram-no, igualmente, um dos principais colaboradores de O Rabo, órgão oficial desse famoso grêmio. Seus escritos, sempre maliciosos, ferinos, tornavam as duas publicações em leitura agradabilíssima e divertida como se constata até hoje nos raros exemplares guardados nos arquivos das entidades que as editavam.

Carnavalesco de “quatro costados”

Horácio, que se fez o “nobre” Visconde de Bicohyba (numa adaptação do nome científico da myristica officinalis: bicuíba) foi no seu tempo, de mil-novecentos-vinte-e-poucos a quarenta, um verdadeiro carnavalesco de “quatro costados”. Topava qualquer farra e dentre os participantes, todos da mesma fibra, era o mais animado. Quase sempre tinha a iniciativa das brincadeiras, como aquela de servir de defunto num enterro realizado em pleno Carnaval com caixão, coroa e todo o ritual fúnebre para ser levado em charola até o Bar Nacional, na Galeria Cruzeiro.

De outra feita, ainda no tríduo momesco, fantasiou-se de Gandhi, envolvido num lençol e conduzindo uma cabritinha. Depois de ingerir em demasia “umas e outras” acabou perdendo o animal que prometera trazer de volta para um lauto almoço na caverninha (casa onde morava com outros carnavalescos na Rua Carlos Sampaio, 22). Pernambucana, a cozinheira e administradora da alegre república bem como Polaca, Lascada, Gigante, Mazorato e outros que ali residiam viram frustrado o opíparo “bródio”, mas tudo correu à conta dos riscos possíveis embora não previstos.

Um Visconde que fazia sambas

Amigo da gente do samba (Pixinguinha, Donga, Patrício Teixeira, Benedicto Lacerda, etc.), já tendo composto com Raul Malagutti o Vi Baio-Baio, com Aristides Prazeres e Lascada o Eu sou baêta, com Jessé Menezes o Eu não quero mais, afora outros, Caninha o convidou para parceiro. Fizeram os dois o É Batucada, que alcançou o primeiro lugar no concurso realizado no Teatro João Caetano em 26 de janeiro de 1933 e teve o patrocínio da Prefeitura do então Distrito Federal. Além de abiscoitar o polpudo (naquele tempo era) prêmio de um conto de réis, a parceria Caninha e Bicohyba recebeu o diploma de que tanto se envaidecia o De Moraes.

Interpretada por Moreira da Silva, que vinha de obter grande sucesso como criador de Arrasta a sandália, a composição mereceu calorosos aplausos. Toda a assistência, empolgada cantou o coro: “Samba de morro? não é samba, é batucada./ É batucada! É batucada!”. E o júri, integrado, entre outros, por Herbert Moses, pelo cronista carnavalesco Picarêta (Romeu Arêde) e pelos maestros J . Octaviano e Rossini de Freitas, deu o seu justo veredictum classificando-a em primeiro lugar.

Um humorista busca a morte

Boêmio, carnavalesco de “quatro costados”, sambista com diploma oficial, Horácio Dantas que se fez o nobre Visconde de Bicohyba para escrever numa revista galhofeira e maliciosa, embora sua alegria comunicativa buscou ele mesmo a morte. Certo dia, em casa da irmã que residia em Botafogo, sem que ela e seu cunhado Fábio vissem, ingeriu forte dose de veneno morrendo quase que instantaneamente. Realizou o gesto trágico sem deixar informe algum e surpreendendo a todos que o supunham feliz, na plena satisfação de viver.

Desertando da vida aos quarenta e poucos anos, deixou uma lacuna sensível no Carnaval carioca que o tinha como seu grande animador no clube rubro-negro (Tenentes do Diabo), no Cordão da Bola Preta e em todas as manifestações de nossa principal festa. Mas como também no reinado de Momo a folia “não pode parar”, apesar de sentirem sua falta, as morenas a que ele e Caninha aludiram na sua composição vitoriosa, continuam indo “pro samba bonitinhas, de sandálias e de saiote de preguinhas”.

(O Jornal, 28/4/1963)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

Músicas das estranjas dominaram no Carnaval

Os Geraldos retornam da Europa, em 1909,
lançando a canção americana "Caraboo"
Apesar de sempre contarmos com um batalhão de musicistas populares, de compositores de canções simples, brejeiras, fáceis de ser aprendidas, o nosso Carnaval já foi dominado várias vezes por melodias alienígenas, das estranjas. Algumas através de adaptações, outras apenas com novos versos e ainda, fora desses dois grupos, as que poderíamos denominar de caricaturas de temas harmônicos eruditos ou preciosos. Tudo, no entanto, sem a essência intrínseca do brasileirismo e, principalmente, da bossa carioca.

Na verdade, tais aproveitamentos, contrafações, ou mesmo plágios, se preferirem o rigor desta última classificação, acabaram ficando com bastante sabor de coisa nossa e, no caso, caracteristicamente carnavalescas. Assim aconteceu com o trecho de I1 Guarany (grafado propositadamente deste modo para lhe dar maior imponência artística) que toda a cidade cantou em ritmo das ruas: “Mandei fazer um terno de jaquetão, prá ver Carleto e Roca na Detenção”. Glosa referente a dois criminosos célebres e que, embora seu objetivo, terminou dominando no tríduo da folia.

A “Caraboo” do Norte vem para o Carnaval do Sul

Numa época em que o Carnaval não tinha como hoje um cancioneiro a ele destinado e, fugindo das grosseiras práticas do entrudo, começava uma nova fase verdadeiramente recreativa, o povo entoava apenas simples copias ou refrãos. Do “Dengo, dengo, dengo, ò maninha”, até o Corta jaca ou o Abre alas qu’eu quero passá, pouca coisa se fez de certa expressão autenticamente artístico-popular. Ao findar, porém, do primeiro decênio do presente século, com o maxixe imperando nos clubes carnavalescos, Os Geraldos duelistas brasileiros que regressavam de uma temporada na Europa, traziam uma novidade para os cariocas: a Caraboo.

Incluídos como atração na revista Fandangussu, estreada no Teatro São Pedro de Alcântara (hoje João Caetano) em janeiro de 1913, obtinham grande êxito cantando: “Ò minha Carabu dou-te meu coração, és a minha paixão, para mim só tu, minha Carabu.” Era esta a versão, com rimas infantis da letra original: “Suret little Caraboo/ I am in love with you/ My heart is aching/ While you am waiting,/ Suret little Caraboo.” Música simples, letra primária, tal cançoneta norte-americana de autoria de Sam Marshall, lançada nas proximidades dos festejos de Momo, tornou-se popularíssima e nos bailes, na Avenida Central, todos a cantaram. Inspirou até a formação do Grupo do Carabus, cujo estandarte foi feito por Alekso Fanzeres.

Da “Jenny” francesa saiu o “Pé de Anjo” carioca

Alguns anos depois do triunfo da Caraboo, cujo poema contava “com singeleza o amor que um guerreiro tinha por uma princesa”, o Carnaval carioca já tinha foros de parada musical. Em 1920, quando se ouvia os precários fonógrafos gritar o clássico “Casa Edson, Rio de Janeiro”, com uma turma de bons compositores produzindo sambinhas gostosos (Donga, Pixinguinha, Caninha, etc.) Sinhô, titulando-se ou intitulado Rei, era popularíssimo. Nesse ano, abundando em inspiração, soltou o Papagaio Louro, ironizando a Bahia que não dava “mais coco pra embrulhar os cariocas” e, como se fosse pouco, fez também o Pé de Anjo.

Querendo provocar o China, irmão do Alfredo Vianna (Pixinguinha), que tinha “o pé tão grande capaz de pisar Nosso Senhor”, não vacilou em aproveitar o tema melódico de uma cançoneta francesa. Ouvindo-a na Casa Beethoven (segundo depoimento de Fileto Moura, gerente do estabelecimento) veio-lhe a idéia de uma adaptação algo camuflada para não denunciar a origem. O estribilho: “Oh!, oh!, oh!/ oh!, c’est pas difficile,/ il n’y a que chanter/ oh!, oh!, oh!, oh!, oh!”, levemente alterada sua harmonização, prestou-se ao conhecidíssimo: “Ó pé de anjo, Ó pé de anjo, és rezador, és rezador, tens o pé tão grande que és capaz de pisar Senhor!”.

A Maria Rosa da opereta e o “cielito” do México

Na década dos 30, quando um grupo de novos compositores com Ary Barroso, Lamartine Babo, João de Barro, Alberto Ribeiro, J. Freitas, Haroldo Lobo e tantos outros entrava na competição musical que acontecia em janeiro, o nacionalismo imperou. Dezenas ou mesmo centenas de sambas e marchinhas de autoria dessa turma eram difundidas pelas rádios em seus programas e chegavam ao Carnaval com toda a cidade conhecendo-as e definindo suas preferências. Foi então que o caricaturista Antônio Nássara, sozinho, sem o seu constante parceiro Erastótenes Frazão resolveu fazer na música uma charge similar às do seu lápis. Ao invés da Rose Marie, fez outra de nome transposto.

Decalcou a melodia da opereta trazida ao Rio por uma companhia francesa que inaugurou o Teatro João Caetano em junho de 1930 e, em 1932, perguntava: “Cadê Maria Rosa, tipo acabado de mulher fatal?..”.

Ninguém lhe informou sobre a moça da “cicatriz” porque dez anos após, Henricão e Felisberto avisavam: Está chegando a hora. Tinha-se desta feita a importação clara de uma canção mexicana, a Cielito Lindo, de A. Sedas e F. Tudela, com versos singelos: “Ai, ai, ai, ai/ está chegando a hora/ o dia já vem raiando,/ eu tenho que ir embora.” Traslado no qual ficou evidente a matriz: “Ay, ay, ay, ay!/ canta y no llores,/ porque cantando se alegran,/ cielito lindo,/ los corazones.

E não ficou dito tudo

Assim como o pastor achava curta a vida para um longo amor, não foi possível nas limitações dadas a este assunto exemplificar todos, ou quase todos, os momentos em que a música estrangeira dominou no Carnaval carioca. O sempre prestimoso Almirante a cujos arquivos precisos recorreu-se para recolher partitura e letras das canções aqui focalizadas apontou muitos outros. Ficou-se tão-somente nos mais expressivos, aqueles cuja voga no período carnavalesco deram-lhe absoluta característica de sucesso marcante. Poder-se-ia, no entanto, acrescentar à exposição feita a conhecidíssima valsa Os Patinadores, Caminito e alguns mais.

Simples digressão, sem pretender a substância de um ensaio ou estudo, ela conseguiu, não há dúvida, atender ao enunciado em sua epígrafe. A despeito do absolutismo da música popular carioca em nosso Carnaval, houve e pode haver influências estranhas. Assim como as melodias de outros Estados têm conseguido aceitação ou mesmo predomínio na festa máxima da Sebastianópolis (Cabôca de Caxangá, Teu cabelo não nega), as de outros não lograram igualmente triunfar. Procede, pois, o título acima: “Músicas das estranjas dominaram no Carnaval carioca”.

(O Jornal, 21/4/1963) 
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

Getúlio grava pontos da macumba

Getúlio Marinho
Embora Villa-Lobos (segundo informa Vasco Mariz em seu livro A Canção Brasileira) tenha citado J. B. de Carvalho “pelo seu ambiente de macumba tão bem representado No terreiro de Alibibi, Getúlio Marinho, o Amor (hoje com 72 anos) além de precedê-lo no gênero foi muito mais expressivo. Convivendo com os africanos praticantes das religiões e ritos do continente negro e com os baianos a eles ligados, tais como João Alabá (famoso pai-de-santo) e Hilário Jovino Ferreira (iniciador dos ranchos carnavalescos no Carnaval carioca), os pontos de macumba que levou para o disco tiveram, ambos, perfeita autenticidade melódica e interpretativa.

Gravados por Eloy Anthero Dias, um veterano das rodas de samba, hoje paredro da Escola Império Serrano, tiveram, afora o êxito comercial decorrente de seu inusitismo, o interesse de estudiosos e de folcloristas pela excelente mostra que faziam. Foi, pois, como se poderá constatar, Getúlio Marinho o pioneiro e quem com maior fidelidade transportou para as chapas fonográficas os cânticos da macumba.

“Amor”, apelido que veio da Bahia

Filho de Antônio Marinho da Silva (conhecido como Marinho-Que-Toca) e de Paulina Thereza de Jesus, Getúlio ganhou o apelido de Amor desde menino, na Bahia, onde nasceu na Rua de Baixo. Vindo para o Rio integrou-se logo entre os sambistas e carnavalescos e aos cinco anos já era um dos componentes do Rancho Dois de Ouro no qual figurou como “porta-machado”. Pouco depois se iniciava com Hilário Jovino Ferreira no aprendizado da coreografia dos mestres-sala e chegou a ser um dos mais exímios até hoje reconhecido como tal.

Dançando com mestria, exuberante de garbo e destreza, passou então a ser disputado e assim fez parte, entre outros grêmios, do Rei de Ouros, do As Jardineiras, do Flor do Abacate, do Reinado de Siva. Seus concorrentes, Zinho, Aniceto de Menezes e alguns poucos mais, temiam-no reconhecendo sua superioridade. E, sem esconder o receio de com ele se defrontarem nas competições, diziam: “com o Getúlio, o Amor, vai ser difícil. O homem dança muito...“. Graças ao seu virtuosismo foi convidado para tomar parte na revista Dança de Velho, encenada em 1916 no Teatro São José, na qual se exibiu com fartos aplausos.

Os “pontos” da macumba vão para o disco

Freqüentador de vários terreiros, conhecendo bem o ritual e os cânticos ali entoados cm louvor dos santos que baixavam, Getúlio Marinho resolveu levar para o disco alguns dos pontos ouvidos. Foi buscar então EIoy Anthero Dias, capaz de entoá-los na característica melódica própria, e teve-se em excelente gravação o Ponto de Ogum (São Jorge) assim interpretado: “Oia gente capitã de aiê./ Oia gente cumandante uaiá./ Quem mi chama capitã do aiê./  eu sô capitã do uaiá.

Na outra face da chapa, com idêntica fidelidade, estava o Ponto de Inhassã (Santa Bárbara) cujo refrão simples: “Macumbembê, macumbê, girá./ Macumbembê, macumbê, girá”, transmitia, igualmente, com exata expressão melódica muito do fervor e do exotismo da música e letra. A apresentação, a primeira que se fazia no gênero, logrou, como era esperado, grande sucesso de vendagem graças à difusão fartamente feita pelas vitrolas das casas do comércio de discos.

“Tenha calma, Gegê”, ditado que ficou

Apesar de ser Pula a fogueira, canção que fez para os festejos juninos, em 1934, a sua composição de maior rendimento, até hoje, em direitos autorais, Tenha calma, Gegê, lançada no mesmo ano, e que se atribui focalizar o presidente Getúlio Vargas, representa na bagagem musical de Getúlio Marinho o sucesso mais expressivo. O refrão: “Tenha calma, Gegê/ Vou ver se faço alguma coisa por você” passou a ser ditado correntio que se ouve comumente no sentido irônico da marchinha onde se originou.

Igual popularidade, não tão intensa quanto a citada, obteve também Apanhando papel, na voz de Francisco Alves, cujos versos: “Não queira saber/ como a vida do homem é cruel,! se ele é fraco de idéia/ acaba apanhando papel”, tinham o jeito de advertência galhofeira muito ao sabor carioca. Este samba, não sobrepujando em popularidade o Tenha calma, Gegê, do qual foi parceiro Eduardo Souto, acompanhou-o, no entanto, (sem incluírem-se os referidos pontos de macumba) na preferência do público. São reconhecidamente produções de destaque, dentre as muitas, de autoria de Getúlio Marinho, o Amor.

Getúlio “baixa” ao hospital

A terminologia dos quartéis usa o verbo baixar para designar a ida ou permanência na enfermaria. A gíria também o adota e, assim, Getúlio ao se internar no Hospital dos Servidores do Estado da Guanabara preferiu-o ao invés de outro termo qualquer. O autor de tantas músicas que caíram no domínio das ruas, o aplaudido mestre-sala das evoluções fidalgas e bizarras, o apresentador dos pontos de macumba em disco lá está num leito tendo a seu lado, dedicada e amiga, sua companheira de quase vinte anos de vida pobre, difícil, Placinéia Sampaio Pereira.

Calmo, tal como recomendara ao Gegê de sua marchinha carnavalesca, submete-se ao tratamento que lhe ministram médicos e enfermeiras, quase todos conhecedores de seus êxitos musicais. Confiante no Deus das religiões dos brancos e nos santos dos pretos seus irmãos de cor, reafirma a fé no seu orixá, que, como cantou no seu aludido samba (Apanhando papel) o fará restabelecer-se, “não há de deixar” de ampará-lo.

(O Jornal, 7/4/1963)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.