A pudicícia da “prefeita” fez surgir o pianista Zé Maria - E de fato foi isso. Se a esposa do prefeito não houvesse se recusado, terminantemente, a tocar durante a exibição do filme no qual os problemas do sexo eram tratados de maneira muito clara, inclusive de suas possíveis doenças, o Zé Maria de Abreu não teria aparecido como pianista. Embaraçado com a negativa da componente da orquestra que mantinha em seu modesto cinema, Vadozinho, o empresário, recorreu ao rapaz do pistão e ele, cordato, sentou-se ao velho Pleyel resolvendo a situação.
Desse dia em diante, ficou dedilhando nas teclas brancas e pretas valsinhas lânguidas, quando as fitas eram românticas, ou chorinhos buliçosos nas comédias de corre-corre com arremesso de pastelões. O trompete e o violino, Instrumentos que executava com certa mestria, foram relegados. O primeiro dando descanso definitivo aos seus lábios, o segundo fazendo seu braço direito perder a destreza necessária ao bom manejo do arco.
Filho de músico é igual ao de peixe
Embora o ditério popular aponte o peixinho como único exemplo, quase sempre, ampliando o conceito, os pais influem nas preferências dos filhos. Assim, o menino José Maria, nascido (1911) em ambiente de música, já que o seu genitor era professor dessa arte, em Jacareí, no Estado de São Paulo, foi atraído para o estudo da pauta e dos sinais pendurados em suas cinco linhas. O “velho” Juvenal Roberto Abreu, mesmo contrariando o garoto, fê-lo segurar o violino e manejar o arco para tirar das cordas, observando nos compêndios, as primeiras lições.
A seguir, querendo dar versatilidade ao rebento, vencido na resistência demonstrada a princípio e recebendo com agrado os ensinamentos, iniciou-o no pistão e no piano. Dessa maneira, quando a família mudou-se para Botucatu e matriculou-o num colégio de padres, o menino Zé Maria foi aproveitado na banda tocando qualquer dos instrumentos que o mestre determinasse. Sobressaía-se também nas aulas de teoria, graças aos bons conhecimentos que lhe foram transmitidos pelo seu primeiro professor, o papai Juvenal.
Uma pianista pudica pede substituição
Em 1925, aos quatorze anos de idade, estudante em Itapetininga, sempre no Estado de São Paulo, conseguiu um emprego no Cinema Iris, onde o empresário Salvador, chamado por todos Vadozinho, incluiu-o na orquestra. Os filmes mudos eram acompanhados por pequenos conjuntos musicais onde era imprescindível o pianista, sua figura principal. Zé Maria, no cineminha em referência, tocava pistão e violino, revezando esses instrumentos conforme a ação da fita projetada e o fundo musical que lhe queriam dar.
Dando prosseguimento à programação anunciada com alguns dias de antecedência, deveria ser exibida a película Flagelo da Humanidade, na qual, advertindo à mocidade, eram mostrados, com bastante clareza, assuntos de natureza sexual. A esposa do prefeito local, que era a pianista da orquestra, ao ser informada do realismo do filme recusou-se a tocar durante sua exibição: “esse negócio é muito indecente”. Atrapalhado, mas aceitando a pudicícia da prefeita a quem não convinha contrariar por motivos óbvios, Vadozinho apelou para o Zé Maria. Desde então, o Cinema Íris, de Itapetininga, teve um pianista que, mais tarde, seria o famoso autor de um punhado de valsas de grande sucesso.
“Rei das Valsas”, mas sem mimeógrafo.
Compositor popular dos de maior produção, principalmente valsas, dentre as quais deve-se destacar a Boa noite, amor, popularizada pelo saudoso Francisco Alves, deram-lhe o título de Rei nesse gênero de música. Depois, em vista do número sempre crescente, somando um total superior a trezentos (cálculo feito por ele próprio) um de nossos humoristas, que se presume tenha sido o Jorge Murad, o Paulo Medeiros ou o Nestor de Holanda, disse; “o Zé Maria tem um mimeógrafo onde faz as suas valsas.” A piada, aceita esportivamente, glosava a quantidade, mas reconhecia a qualidade melódica de todas as valsas de José Maria de Abreu.
Rindo, contesta possuir tal máquina e prova sua fácil inspiração através da variedade de um grande repertório onde se contam, igualmente, bonitos sambas e canções. A citação precisa dos trabalhos musicais de tão fértil compositor, quanto exímio pianista, tomaria enorme espaço e é mesmo dispensável por serem os mesmos bastante conhecidos. Gravações inúmeras, feitas por Francisco Alves, Sylvio Caldas, João Dias, Carlos Galhardo, Linda e Dircinha Baptista, Dick Farney, Maria da Graça e tantos outros de nossos melhores cantores, atestam o êxito de todas as músicas do consagrado Rei Zé Maria.
Eternidade das valsas
Autor de centenas de valsas, José Maria de Abreu vê com ceticismo o surgimento de novos ritmos que após rápida voga são esquecidos enquanto as suas bonitas melodias, tais como as dos grandes mestres vienenses, continuam eternas. Não crê também na vitória da bossa nova, a despeito de sua intensa propaganda, por achá-la um simples artifício musical dentro da cadência positiva do samba. Músico autêntico e de boa formação teórica, zela igualmente pela qualidade das letras de suas produções buscando, quando ele mesmo não as faz, parceiros categorizados: Alberto Ribeiro, Oswaldo Santiago, Luiz Peixoto, Jair Amorim e outros do mesmo quilate.
A Canção de Aniversário, réplica brasileira ao Birthday to you que compôs em parceria com Alberto Ribeiro, embora apareça com constante grande vendagem através dos direitos autorais que recebe na UBC, da qual é fundador, dá-lhe, é exato, boa recompensa financeira. Artisticamente, no entanto, tem predileção por todas as suas valsas, pois foram elas, algumas ternas, suaves, outras alegres, festivas, que glorificaram o seu nome trazido humilde e desconhecido de um cineminha de Itapetininga onde a pudicícia de uma prefeita pianista botou-o diante de um teclado que hoje dedilha com virtuosismo.
(O Jornal, 19/5/1963)
______________________________________________________________________Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.