A centenária Casa da Cotia que se fez conhecidíssima na Av. Passos... |
Desse modo, desde seu início em 15 de agosto de 1853 (ou 52), na antiga Rua do Erário, mais tarde denominada do Sacramento e agora a atual Avenida Passos, a Casa da Cotia, que as picaretas estão botando abaixo, vinculou-se à principal festa do povo carioca. Firmou, igualmente, em sua existência de mais de um século, tradição sólida que não permite se assista desaparecer o velho estabelecimento sem recordar o quanto possível fatos de sua história no comércio da Sebastianópolis.
O armarinho do comendador
Ao tempo em que ainda tínhamos nas ruas os mascates envergados ao peso de maletas atufadas de fazendas e petrechos de costura, um português de sobrenome Cotia, portador de dignificante título de comendador, instalava modesto armarinho na Rua do Erário. Ali vendia ao menor preço possível e enfrentando a concorrência então bem agressiva, da qual dá expressiva mostra este excerto de um anúncio da Chapelaria Universal na Rua do Ouvidor nº 103, alardeando o motivo de sua barateza: “... para espancarem e desenferrujarem a língua os infamantes e invejosos e crapulosos”.
Maneiroso, ‘com jeito para a coisa’, via seu comércio crescer e as peças de fazenda iam desaparecendo das prateleiras através de vendagem, contínua, de côvados e a seguir da metragem hoje correntia. Tornou-se conseqüentemente popular a casa do Cotia, depois tornada a Casa da Cotia, tendo à porta, como símbolo até agora vigente, as figuras dos conhecidos roedores. Chegou, assim, até aos nossos dias passando da Monarquia para a República, somando anos e estabelecendo uma tradição que desaparece com o derrubar de suas paredes de sua fachada diante da qual cordões e ranchos desfilavam para receber os lauréis e prestar homenagem ao Comendador ou continuador da firma.
Vestindo e incentivando o Carnaval
Sem pretensões maiores do que arregimentar uma clientela numerosa capaz de lhe permitir prosperar, o comendador Cotia traçou uma diretriz seguida pelos seus sucessores até o momento de cerrar as portas para submeterem-se à demolição. Não adotou para sua casa nomes afrancesados como outras congêneres: “Bijou de La Moda”, “La Poupée”, “Maison Rouge”. Não se fazia anunciar também como magasin ou fornecedor da haute couture. Firmou-se, isto sim, como estabelecimento popular e marcou tal característica vendendo roupas de vestir, de cama e de mesa, mas dedicando-se principalmente a fornecer fantasias para o Carnaval: dominós, clowns, diabinhos, morcegos, caveiras etc., etc.
Ampliou em etapa natural do rumo de seu florescente comércio a participação da casa nos festejos carnavalescos, aprestando-se para confeccionar o vestuário dos zé-pereiras e dos cordões. E quando surgiram os ranchos, o próprio comendador e seus continuadores nas firmas que as foram formando para continuar a tradição da Casa da Cotia (ultimamente composta dos Srs. Mário José da Silva, Francisco Bastos Pinto e Leonel Campos Viegas) anunciavam em 1911 que tinham “oficina de pintura a cargo do hábil artista Charles Dun para executar qualquer estandarte”. Informava ao mesmo tempo a distribuição de cinco prêmios às agremiações que maiores compras fizessem.
Com préstito nas ruas
Ainda em 1911, quando contava com bom número de concorrentes dentre os quais A Bola de Ouro de Francisco Storina (fundada em 1879) e situada na Rua Sete de Setembro nº 164, e a Casa Fortuna, na Praça Onze de Junho, já tradicional estabelecimento dava participação efetiva ao Carnaval. No domingo, 12 de fevereiro, antecedendo-se ao desfile das três grandes sociedades e bem antes do tríduo de Momo, que foi de 26 a 28, o Grupo dos Prontos da Casa da Cotia comunicava a realização de “luxuosa e deslumbrante passeata com todo esmero e arte possíveis”. Apresentava em prosseguimento a descrição do préstito que teria dois carros alegóricos: Apoteose ao Reino Animal e Palanquim Oriental.
Iniciando o itinerário do cortejo na Avenida Passos, e levando-o até a Avenida Central com passagem pela Guarda Velha e Rua da Carioca, o referido Grupo tinha uma “comissão de frente rigorosamente trajada a rei da gafanha” precedendo “vibrante banda de clarins ricamente trajada de clowns trazendo no alto da sinagoga o vitorioso emblema da Casa da Cotia.” E do sucesso dessa passeata deu notícia no dia seguinte o Jornal do Brasil escrevendo: “... os tais prontos se apresentaram na avenida Central de ponto em branco, ricos e luzidios, arrancando do povo merecidos aplausos”.
Nênia também para a Cotia
Lamentando a morte por insolvência financeira de O Camiseiro, popularíssimo com suas ‘loucuras’ desde 1919 quando se fundou, o poeta Carlos Drummond de Andrade pediu uma nênia “à musa, da crônica”. Tem também merecimento a idêntico sentir a centenária Casa da Cotia, que se fez conhecidíssima na movimentada Avenida Passos e, ao chegar do Carnaval expondo em suas vitrines os estandartes do Jasmim de Ouro, da Papoula do Japão e de tantos outros ranchos coirmãos, alvoroçava a cidade para sua maior festa. Oferecia-lhe ao mesmo tempo fantasias as mais variadas, e isto às claras no proceder diverso de uma sua similar da rua dos Latoeiros nº 97 que, nos idos de 1854, declarava “aos patuscos de todas as nações” possuir “quarto para vestir e saída particular para não serem vistos do público”.
Entoem pois os carnavalescos da ‘velha guarda’ e mesmo os da geração atual, que ainda alcançaram a centenária Casa da Cotia exibindo máscaras, apregoando lustrosas fazendas para fantasias, igual nênia à que foi pedida pelo poeta em lamento do saudoso armarinho do comendador. Ele também merece ser pranteado pois, embora próspero, foi obrigado a entregar-se à insensível demolição já quase concluída pelas picaretas do progresso indiferentes à tradição e apenas a favor do urbanismo.
(O Jornal, 12/04/1964)
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Fonte: Figuras e Coisas do Carnaval Carioca / Jota Efegê: apresentação de Artur da Távola. —2. ed. — Rio de Janeiro: Funarte, 2007. 326p. :il.