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Roberto Carlos, Wanderléa e Erasmo Carlos. |
"A jovem guarda foi a materialização de tudo aquilo com que os pioneiros do rock brasileiro sonhavam. A música pop movida a guitarras provocando nas ruas cariocas, paulistas, gaúchas e pernambucanas a mesma revolução romântica que os adolescentes de londres ou da califórnia experimentavam. De repente, não havia mais “adultos em preparação” ou “crianças crescidas”. Havia jovens. E agora eles davam as cartas."
"Domingo, 22 de agosto de 1965. Faltam poucos minutos para as aguardadas 16h30, e garotas e garotos (todos evidentemente com menos de 20 anos) esperam excitados e ansiosos por seus ídolos na platéia do Teatro Record, na Rua da Consolação, em São Paulo. Quando finalmente as gravações se iniciam, quem está no comando é Roberto Carlos, que, logo de saída, anuncia o seu “amigo, Erasmo Carlos!” A malta delira com o andar do adorável grandalhão. Os dois cantores-compositores-parceiros mais a loirinha mineira Wanderléa, dona das pernas mais famosas do pop brasileiro da época, são o centro do programa e introduzem um desfile de convidados ilustres. Na edição de estréia, passaram pelo palco Os Incríveis (nova encarnação beat do The Clevers dos tempos de rock instrumental), Tony Campello, Rosemary, The Jet Black’s, Prini Lorez e Ronnie Cord.
O sucesso imediato do programa Jovem Guarda era fruto da percepção empresarial do dono da TV Record, Paulo Machado de Carvalho, mas também (e principalmente) resultado da ebulição cultural que conspirava em favor da juventude. A locomotiva de tudo era o monstruoso sucesso dos Beatles, que, depois de tomar de assalto os Estados Unidos um ano antes, consolidou a dominação mundial com o longa-metragem Os Reis do Ié, Ié, Ié! (A Hard Day’s Night), um dos filmes mais lucrativos da história do cinema.
No Brasil, Roberto Carlos já era um ídolo jovem bem antes de haver notícia sobre os cabeludos ingleses, graças a hits como “Splish Splash” e “Parei na Contramão” (1963), “É Proibido Fumar” e “O Calhambeque” (1964). Em paralelo, milhares de jovens – migrantes como Roberto Carlos – corriam para os grandes centros urbanos, na trilha da industrialização, em busca de emprego, ascensão social e espaço na sociedade moderna.
Além de responder à demanda por um novo espaço na televisão sintonizado com aquele momento cultural e social, a idéia do programa Jovem Guarda surgiu como uma alternativa para ocupar a grade de programação dominical da TV Record em lugar da transmissão dos jogos do Campeonato Paulista de Futebol, que havia sido proibida. Originalmente, o programa seria chamado de Festa de Arromba (hit de Erasmo Carlos), mas acabou sendo trocado por insistência dos próprios artistas, que achavam que o nome perderia força com a saída da música das paradas de sucesso. Por sugestão do publicitário (comunista) Carlito Maia, foi adotado o nome Jovem Guarda, retirado de uma expressão do líder revolucionário soviético Vladimir Lênin – “O futuro pertence à jovem guarda, porque a velha está ultrapassada”. Pertencia mesmo, a ponto de valer a mudança de Roberto Carlos para São Paulo, onde, segundo a imprensa da época, o cantor teria condição de “estourar” nacionalmente.
Além do nome do programa, também sua própria formatação original foi alterada. O projeto inicial previa Roberto e a estabelecidíssima rainha do rock brasileiro, Celly Campello. Mas Celly estava resoluta em sua nova vida doméstica e nenhuma proposta conseguiu demovê-la a voltar ao mundo artístico.
Indústria
Logo nas primeiras semanas, Jovem Guarda atingiu 90% de audiência, segundo o Ibope. Com um padrão de produção inexistente até então, além de música, o programa incrementou uma verdadeira indústria à sua volta, com venda de botas, calças, jaquetas, anéis, bonequinhos e outras quinquilharias. O passo seguinte, o cinema, começou a ser arquitetado no início de 1966. Sob direção de Luiz Sergio Person e produção da mesma agência Magaldi, Maia & Prósperi, que cuidava dos outros produtos licenciados, Roberto, Erasmo e Wanderléa começaram as filmagens de SSS contra a Jovem Guarda. Apesar do roteiro pronto e de diversas cenas rodadas, o longa foi interrompido logo que Roberto rompeu com a agência. Sua carreira cinematográfica só deslancharia em 1968, com Roberto Carlos em Ritmo de Aventura, de Roberto Faria.
Aparentemente ingênua, a poesia jovem-guardista falava para milhões de brasileiros com uma linguagem direta, nada intelectualizada e, no caso de Roberto Carlos, com uma particular e cativante doçura. No universo poético do iê-iê-iê cabiam a paixão por carros, a solidão das grandes metrópoles, os amores impossíveis, os tipos estranhos, como uma síntese saudosista dos anos 50 com a contemporaneidade pop dos super-heróis, das revistas em quadrinhos, dos seriados de TV. Se Chico Buarque de Hollanda foi o grande poeta da consciência nacional dos “anos de chumbo”, Roberto Carlos foi o poeta popular que confortou as almas jovens, dando-lhes esperança de, pelo menos, se apaixonarem sinceramente por alguém. Enquanto Erasmo encarnou o lado irreverente da jovem guarda, Roberto Carlos foi uma espécie de pós-James Dean suburbano, romântico e humilde.
O problema é que essa análise sociocultural e artística não existia em meados dos anos 60. Tão logo o programa entrou no ar, diversos expoentes da tradicional MPB e da intelectualidade oficial decidiram declarar “guerra” ao iê-iê-iê de Roberto Carlos e à jovem guarda . Num dos maiores micos da história da música brasileira, um grupo de artistas encabeçado por Elis Regina, Jair Rodrigues, Edu Lobo, Geraldo Vandré e MPB-4 (e com participação de um constrangido Gilberto Gil) foi às ruas em manifestação que ficou conhecida como a “Passeata contra as Guitarras Elétricas”. Mesmo apresentada como um protesto “contra a invasão da música estrangeira”, a mobilização não atraiu artistas mais abertos, como Caetano Veloso e Nara Leão (que se recusaram a participar) e Chico Buarque (que simplesmente não apareceu). Justiça seja feita: alguns anos depois, Elis Regina redimiu-se do equívoco gravando músicas de Roberto Carlos.
Se Roberto incomodava os conservadores, mais controvérsia ainda provocava Erasmo Carlos, o lado mais radical da jovem guarda, o mais jovem e mais rebelde da turma. Autor da clássica versão de “Splish Splash”, primeiro grande sucesso de Roberto, e co-autor da maior parte dos hits seguintes do “Brasa”, Erasmo só estrearia em disco no final de 1964. O Tremendão (que, naquela época, “já tinha umas idéias avançadas”, como diria o tecladista Lafayette muitos anos depois) antecipou diversas novidades, como o órgão Hammond B3 do próprio Lafayette, que se transformou em marca registrada do som jovem-guardista. Logo após a estréia do programa televisivo, Erasmo saiu à frente das discussões entre emepebistas e roqueiros, defendendo um tal de “samba jovem” – que, anos mais tarde, desembocaria no samba-rock tão cultuado hoje em dia.
Já a mineira Wanderléa, apesar da postura contida no palco da TV Record, simbolizou um grande avanço no perfil da cantora de rock nacional – quiçá internacional. Seu som por vezes agressivo (como em “Prova de Fogo”), aliado às roupas ousadas e modernas, em especial as calças justíssimas, fizeram dela um modelo comportamental para as jovens da época. Sua própria presença no programa entre dois homens (em vez do casal tradicional como Elis e Jair Rodrigues no Fino da Bossa ou Tony e Celly Campello no Crush em Hi-Fi) já sugeria um novo papel reservado às mulheres “pra frente”. Não à toa, sua carreira resistiu ao fim do iê-iê-iê, produzindo música interessante por muitos anos além.
Movimento
Ainda na carona do sucesso do programa, um ano depois de sua estréia, a TV Record organizou o Festival de Conjuntos da Jovem Guarda, com eliminatórias em diversas regiões do país que mobilizaram milhares de grupos e cantores. Na final, realizada em São Paulo, também sob o comando de Roberto Carlos, classificou-se em primeiro lugar o grupo paulista Loupha, de orientação psicodélica, com uma cover para “I Can’t Let Go”, dos Hollies. Em segundo lugar ficaram os gaúchos d’Os Cleans. Entre os intérpretes, o vencedor foi o mineiro Vic Barone. Oficialmente, Jovem Guarda deixava de ser um programa de TV para se transformar em um movimento, com enorme capacidade multiplicadora, fazendo brotar um novo grupo de guitarras em cada esquina do país. (Estrategicamente, Roberto assumiu a paternidade da coisa toda, lançando logo em 1965 o álbum Jovem Guarda, que trazia o megahit “Quero Que Vá Tudo pro Inferno”).
Os astros instantâneos e as carreiras meteóricas surgidas em volta do iê-iê-iê ajudaram a forjar uma identidade profunda e verdadeira para o rock produzido no Brasil. Apesar da sintonia comportamental com a beatlemania que grassava o planeta, o iê-iê-iê, na realidade, compartilhava influências com o som dos Beatles mais do que o reproduzia – na receita, rock americano primitivo, o “som da Motown”, surf rock e pop pré-fabricado internacional. Ainda que apolíticos, os astros da jovem guarda eram afinados cultural e esteticamente – algo que se estenderia, anos depois, para a tropicália, por exemplo.
Entre os principais “contribuintes” desse núcleo original do iê-iê-iê, destacaram-se cantores como Ronnie Von, Eduardo Araújo, Jerry Adriani, Sérgio Reis, Wanderley Cardoso, Bobby di Carlo (de “O Tijolinho”), Ed Wilson e cantoras como Meire Pavão, Valdirene, Cleide Alves, Rosemary, Silvinha e Vanusa. Ainda alcançaram grande projeção as duplas e os grupos vocais, como Os Vips, Deny e Dino, Golden Boys, Os Caçulas, Leno & Lilian e Os Iguais (que revelou Antônio Marcos), entre outros.
Ronnie Von, em particular, talvez tenha representado a maior ameaça ao reinado de Roberto Carlos. Arrebatadoramente belo, cabelos longos e lisos, filho da aristocracia carioca, Ronnie também era contratado da TV Record, mas O Pequeno Mundo de Ronnie Von era exibido nas noites de sábado. Depois do sucesso de uma versão de “Girl”, dos Beatles (transformada em “Meu Bem”, obviamente sem as referências à maconha da original), o cantor conquistou rapidamente o epíteto de “Príncipe” – claro que numa provocação velada da mídia em relação ao “rei” Roberto. Pelo Pequeno Mundo, passaram principalmente grupos de garagem de São Paulo, notadamente Os Mutantes, a quem ele deu o nome. Dali a pouco, insatisfeito com o rumo comercial de sua carreira, Ronnie partiria para uma série de trabalhos experimentais, voltados para a psicodelia e o pop barroco e outras vertentes tão radicais como seus “concorrentes” nem sonhavam.
Também Eduardo Araújo – a bordo de seu “carro vermelho, sem espelhos”, e com um programa próprio, O Bom – atingiu grande sucesso popular. Egresso da geração anterior, ele teve um relativo sucesso com a gravação de “Prima Daisy” em 1960. Com o estouro da jovem guarda, fez grande sucesso com a música-título de seu programa – e também como autor, junto com Carlos Imperial, de “Vem Quente Que Estou Fervendo”, lançada por Erasmo.
Entre as bandas, curiosamente, as principais eram egressas do rock instrumental e da surf music. Os Youngsters (que gravaram com Roberto Carlos o clássico álbum É Proibido Fumar, de 1964), eram The Angels no início dos anos 60. Os Incríveis, talvez a melhor reunião de bons músicos de todo o movimento, atendiam por The Clevers. É esse também o caso de um grupo que começou em 1960 com o esdrúxulo nome de Bacaninhas do Rock da Piedade e se transformou na principal formação jovem-guardista: Renato & Seus Blue Caps.
Liderada pelos irmãos Paulo César e Renato Barros, a banda carioca estreou dividindo um LP com os cantores Reynaldo Rayol e Cleide Alves e chegou a ter Erasmo Carlos como vocalista. Seu primeiro sucesso nacional veio em janeiro de 1965, uma versão de “I Should Have Know Better”, dos Beatles, que se transformou em “Menina Linda”. Apesar de grande compositor (como atestam os hits “A Primeira Lágrima” e “Devolva-Me”), Renato Barros acabou célebre como versionista, principalmente de canções do repertório beatle, mas também de raridades dos Troggs, Yardbirds e Del Shannon. Renato também marcou época como instrumentista: ao lado do Hammond B3 de Lafayette, sua guitarra fuzz é das principais marcas da “sonoridade jovem guarda”.
O iê-iê-iê teve sua geração de grandes compositores (Getúlio Côrtes, Lílian Knapp, Helena dos Santos, Roberto e Erasmo etc.), mas, devido à rápida e massiva industrialização do movimento, os maiores sucessos vinham das mãos de versionistas. Em muitos casos, compositores trabalhando com tamanha competência que deram status de “original” para versões de pop italiano, “one hit wonders” e até mesmo obscuros “singles” de bandas de garagem. Os principais foram Fred Jorge e Rossini Pinto, hábeis em recriar canções estrangeiras, adaptando-as à realidade nacional. Especialmente na CBS, o berço da jovem guarda, a produção de versões funcionava como uma linha de montagem, sob a gerência de Evandro Ribeiro. Os singles chegavam da matriz, eram selecionados e direcionados aos artistas mais adequados e então repassados às mãos competentes de Rossini Pinto, especialmente.
Cafona?
A relação da jovem guarda com o rock vigente não era das melhores, com uma nítida separação entre os dois movimentos. Os roqueiros mais tradicionais, fiéis aos padrões externos em voga, recusavam-se a aceitar a linguagem jovem-guardista, classificada por eles como “cafona”. Essa separação só seria rompida pelo tropicalismo, que passou a incorporar em seu repertório canções de Roberto Carlos, especialmente nos primeiros discos “psicodélicos” de Gal Costa.
Nesse sentido, é célebre o artigo de 1972 de Jorge Mautner para o jornal Rolling Stone, em que o poeta-escritor-músico afirmava que “Roberto Carlos é puro instinto empírico e produto de uma sociedade de massas; o primeiro pan-americano da ‘mídia’ e do pop”. Segundo ele, “Celly introduziu o rock com batida de fox, mas não tornou isso um produto sincretizado (...). Roberto torna isso um produto complicado, sintetizando-o com uma alma e melodia brasileiras, fabricando um inconfundível produto pan-americano”. Talvez por tudo isso, o Rei tenha conseguido, melhor do que ninguém, atravessar as diferentes “ondas” a que o pop se submeteu a partir de 1967.
O peso da indústria fonográfica sustentado pela jovem guarda foi inclemente com a maioria dos que nutriam ambições artísticas verdadeiras. “Quando eu vi na televisão Jimi Hendrix e The Who vi quebrando guitarras, pensei: ‘Agora a gente dançou!’”, lembra Renato Barros. “A música mudou muito no final dos anos 60. Fazíamos muita coisa contra nossa vontade, só porque era a ‘fórmula do sucesso’. Trabalhávamos dentro das normas.”
Em junho de 1968, após o afastamento de Roberto Carlos, o programa Jovem Guarda chegou ao fim. Com ele, o movimento musical e comportamental que o sustentou. Ainda hoje desprezada por boa parte dos teóricos e historiadores, a jovem guarda, representou, nas palavras do Tremendão Erasmo Carlos, “a bandeira de todos os jovens do Brasil”. Assim foi, e assim deve ser compreendida."
Texto: Fernando Rosa.
Fonte: Revista Superinteressante - Outubro 1987.