"Muito se há escrito e falado sobre a vida de Noel Rosa, o maior compositor de música popular brasileira de todos os tempos. Na ânsia incontida de falar daquele cujo nome ainda ressoa, através de seus bonitos sambas, mais poemas que sambas, pelos quatro cantos do Brasil, muita imprecisão tem sido cometida, muita coisa inventada, pondo à prova a fértil imaginação daqueles que se lançam a biografá-lo. E há até quem, falando de Noel, faça autobiografia completa.
Admiradores que somos, assim como todo o povo brasileiro, do autor de “Palpite Infeliz”, desejamos, em rápidas tintas, que a tanto nos permite o espaço a nós reservado nesta revista, contar a nossos leitores alguns fatos da vida do poeta da Vila. Para isto, procuramos o senhor Almirante que possui farto repositório de tudo o que se relaciona com o assunto que tínhamos em mira focalizar. Para nossa surpresa, porém, ele, sob a alegação de que se fornecesse dados para nosso trabalho, estaria prejudicando seus objetivos, negou-se, peremptoriamente a falar. Explicamos-lhe nosso objetivo, invocamos sua amizade a Noel e ele sugeriu:
— Faça a reportagem sobre o meu programa; assim eu concordo!
Sim, era uma ótima solução... para ele.
Desistindo, ficticiamente, de nosso desideratum, fomos bater a outra porta, onde não encontramos, felizmente, a má vontade do Sr. Almirante.
Fala Marília Batista
Se há algum que não devia ser procurada para falar sobre Noel, esse alguém é Manha Batista, porque hoje vive inteiramente devotada a seu marido e seus três irrequietos filhinhos e afastada das lides radiofônicas. Mas; como, depois da primeira tentativa fracassada, desejamos, já agora por questão de brio, mostrar ao Sr. Henrique Foreis que faríamos, de qualquer maneira, nosso registro, telefonamos a D. Marília Batista.
— D. Marília, aqui fala da “Revista da Semana”. Nós queríamos uma entrevista sobre Noel.
Através do fio, a resposta veio animadora:
— Estou às suas ordens.
"Entre eu e Noel Rosa, só existiu uma grande e desinteressada amizade" - disse-nos Marília |
Entramos logo no assunto:
— Em que circunstâncias a senhora conheceu Noel?
D. Marília recostou-se à poltrona, caminhou no espaço e no tempo e respondeu:
— Conheci-o no Grêmio Esportivo Onze de Junho. Eu ia cantar numa hora de arte naquele grêmio. Cheguei, acompanhada de meu pai, deixei meu violão a um canto e fui, com papai, fazer não me lembro o que. Quando voltei e procurei meu instrumento, ele não estava mais onde o havia deixado. Pensei que o tivessem roubado. Mas não! No palco, um rapaz cantando o “Gago apaixonado” dedilhava meu violão — era Noel...
— E depois disso...
Reclamei, e ele veio pedir-me desculpas. Fui ao palco e cantei algumas músicas de minha autoria. Ele ouviu e daí começou a me dar músicas suas para eu cantar.
Depois de nos contar este episódio, D. Marília recomendou:
— Tome nota direito, porque estas entrevistas geralmente saem deturpadas.
Explicamos que não aconteceria isto porque temos noção de responsabilidade e depois voltamos a perguntar:
— A senhora pode responder, precisamente, contra quem foi escrito o “Palpite Infeliz’?
— Não sei! Foram feitos contra um certo rapaz que atacara a Vila.
—... Wilson Batista, completamos.
— Isso eu ignoro. Só vim a conhecer Wilson Batista depois que Noel morreu porque, enquanto vivo, eu só tomava conhecimento daquelas respostas massacrantes, a alguém. Agora, que esse alguém seja esse que você citou não me consta.
— A senhora pode lembrar como surgiu o “Palpite Infeliz?”.
— Noel compôs o “Feitiço da Vila”:
“Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba”.
— Mais adiante, continua D. Marília, ele dizia que a Vila tinha “feitiço sem farofa”, “a lua nasce mais cedo”, falava na dança dos galhos do arvoredo. Pois bem, alguém escreveu um samba discordando de Noel e ele nos deu então: “Quem é você, que não o sabe o que diz Meu Deus do céu que palpite infeliz..”.
— A senhora quer dizer-nos outras respostas de Noel a Wilson Batista ou a quem seja, afinal.
Na Rua Teodoro da Silva, n. 392, ainda pode ser vista a casa onde nasceu e morreu o poeta da Vila. |
— A senhora sabia que Wilson foi parceiro de Noel?
— Não me consta que ele fizesse nenhum trabalho de parceria com Wilson Batista.
A implicância de Noel
A entrevista decorria animada, quando D. Marília perguntou:
— Você quer um caso interessante?
Claro que queríamos:
— Noel foi contra-regra da antiga Rádio Philips, no programa Casé; nessa época qualquer um era contra-regra, às vezes o próprio Casé. Um dia, exercendo suas funções, aproximou-se de uma cantora clássica e perguntou:
— Que você vai cantar?
— “Você” não, eu sou uma senhora casada, respondeu a mulher, irritada com o tratamento. E foi ao Casé fazer queixa do Noel.
— Qual a atitude do Casé, perguntamos.
— Nem queira saber, disse D. Marília arrancou da mão do Noel a papeleta que usava para anotações, humilhou-o passou-lhe uma lição incrível.
— E a cantora, quem era? Quisemos saber.
— Com todo “senhora” não sei quem é. Ofuscou-se completamente. Quanto a Noel, todos já sabemos, começou a subir... subir sempre.
— Quer dizer-nos alguma característica interessante de Noel?
— Era muito implicante. Casé foi uma de suas maiores vítimas. Certa vez, evoca D. Marília, chegou ao programa depois de o mesmo começado. Casé estava irritadíssimo e quis saber o motivo. Calmamente ele respondeu:
— O bonde furou o pneu, Casé...
Outra vez, prossegue nossa, entrevistada, explicou em idênticas circunstâncias:
— Esqueci onde era a Rádio Philips, Casé...
— Mais alguma coisa D. Marília?
— Sim, quando Noel lançou “Conversa de Botequim” o samba fez um sucesso absoluto: os pedidos choviam para que introduzisse sempre a música em seu programa.
— Como Noel sempre repetia o mesmo número, Casé proibiu-o de cantar o samba.
— Mas, um dia, já na Rádio Sociedade, sendo Casé o contra-regra e perguntando a Noel o que ele iria cantar, chegou o dia da vingança:
Marília divide a atenção entre seus filhos e a entrevista que nos presta. |
— Alguma outra implicância com o Casé?
— Assim de pronto não me lembro; sei que ele costumava imitá-lo falando com a esposa ao telefone. Mas há uma outra implicância digna de registro: voltando de uma hora de arte, vínhamos eu e papai, Noel e Djalma Ferreira, no carro do Djalma. Quando passávamos por uns garis, Noel que sempre mexia com os mesmos, gritou:
— A galinha comeu...
— Interessante..., aventuramos.
— Não, o interessante veio depois, quando, o carro enguiçou mais adiante e os garis sairam correndo atrás do veículo com suas vassouras. Que susto!
— Outra implicância D. Marília.
— Lembro-me da última: já doente, poucos dias antes de morrer, pediu a sua mãe que o levasse até a janela. Feita a vontade, gritou ao jardineiro, com quem implicava desde criança:
— Tesoura! Tesoura!
— Por que fazia isto, perguntamos.
— Só para ouvi-lo xingar...
A morte do poeta
Já se fazia tarde e não queríamos continuar tomando tempo daquela que tão gentilmente nos ajudara a compor nosso modesto trabalho: por isto fizemos a última pergunta:
— Como foi a morte de Noel?
— Foi um episódio tristíssimo. A vila inteira compareceu para chorar o passamento de seu poeta. Meu pai que estava presente, diz nunca haver assistido a coisa mais comovedora.
— A senhora se lembra de algumas de suas últimas palavras?
— Guardo como o maior elogio à minha carreira artística, uma de suas últimas frases. Na hora da morte chamou meu irmão Henrique e disse:
— Seu amigo, Henrique, agora, "nunca mais".
— Nunca mais, respondeu Henrique, é o nosso samba, meu e da Marília.
— Sim, respondeu Noel, o mais simples e o mais bonito.
— Mais alguma coisa D. Marília?
— Sim, quero que você apele para esta gente para que respeite o ritmo, a melodia e a arte de Noel e... que cuide da sua sepultura.
O repórter na Vila
Depois da entrevista que tivemos com D. Marília, fomos à vila ouvir os velhos moradores; uma vizinha de Noel, de nome Dorica, íntima da família acrescentou alguns subsídios ao nosso trabalho:
— Um dia dei uma festa aqui em casa, época de São João, e Noel era convidado obrigatório. Eu estava lá dentro arrumando umas coisas quando ele entrou e disse:
— Dorica, dê-me papel e lápis.
— Estranhei, mas fiz-lhe a vontade. Daí há pouco, ouvi acordes de um violão e a sua voz que cantava: "Nosso amor que eu não esqueço e que teve seu começo numa noite de S. João...' Compreendi, então, para o que pedira o lápis e o papel.
Dona Dorica foi pessoa íntima da família de Noel e sabia de muitas coisas interessantes sobre o poeta da Vila. Solicitada por nós, continou contando:
Marília posa com sua sobrinha após entrevista com a Revista da Semana. |
— Lembra-se de mais alguma coisa D. Dorica?
— Muita coisa poderia contar ainda. Lembro-me de que ele penetrava em casa de gatinhas ao passar pela janela do quarto de D. Marta para não acordá-la; dos jogos de botões, as serenatas que costumava fazer até altas horas, uma série de coisas que lhe contaria, se tivesse tempo para isto.
De repente, nossa entrevista nos chamou a dar uma volta pela Vila. Consultamos os antigos moradores: um lhe aconselhava sempre a ir embora mais cedo, outro farreara com ele, mas não se lembrava de mais nada. De positivo mesmo, nada.
De casa em casa, D. Dorica nos levou à residência de uma senhora cujo nome, a seu pedido, omitimos e que foi noiva de Noel, antes de ele casar-se:
— Os retratos que eu tinha destruí quando me casei, declarou-nos, a única recordação que tenho é que ele passava por mim, já meu noivo, com outras moças.
— E a senhora não brigava com ele?
— Reclamava, mas ele sempre dizia:"Isso é brincadeira, minha filha, eu só caso com você". E casou com outra...
Deixando aquela senhora, D. Dorica nos levou a um dos velhos habitantes que nos contou:
— Lembro-me quando o "queixinho" surgiu, aí por volta de 1919 ou 1920. Cantou, num clube local, uma embolada de sua autoria, de improviso. O garoto tinha bossa e passou a ser assunto obrigatório da Vila.
— Lembra-se de mais alguma coisa?
— Recordo-me de que, em toda a casa onde havia festa, Noel e os componentes do antigo Vila Izabel F. C. usavam de um expediente interessante para comer toda a ceia dos festejadores. Noel cantava uma seresta e enquanto os moradores cativados por aquela voz desviavam sua atenção para a música, seus colegas faziam a limpeza..."
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Fonte: Reportagem de Jorge Lyra - Revista da Semana, de 21/07/1951.