Sem conhecer a Bahia, detestava o "grupo baiano", contituído, entre tantos, por Pixinguinha, China e Heitor. Mas tinha verdadeiro pavor por maus-olhados e por outros feitiços de origem africana. Mesmo assim fez várias músicas nesse tema e apadrinhado por Catulo da Paixão, fez versos rebuscados em canções sertanejas. É Sinhô, o rei do Samba!
A Bahia e suas tradições, suas lendas e crenças, seus dengues, suas comidas foram sempre motivo de encantamento de poetas e escritores, de artistas e seresteiros. Todos os brasileiros temos filial carinho pela velha Bahia, "berço da nacionalidade", terra de grandes homens, de figuras da dimensão de Rui e Castro Alves.
É curioso registrar que o nascimento do samba carioca ocorreu no Rio, mas em 'território baiano', isto é, no meio das baianas e babalaôs da praça Onze e adjacências. E nunca mais a Bahia se dissociaria da música popular, notadamente do bom samba carioca.
Antes, já a velha Província ou as baianas apareciam nas cantigas. Ernesto de Souza, dos primeiros compositores populares do Rio (carioca nato), fixou nas suas cançonetas o tipo da mulata da boa terra. "A Mulata da Bahia", uma das suas produções mais divulgadas, acabou sendo sucesso do Carnaval de 1904:
A mulata da Bahia
Não tem osso, é carne só
Sapateia noite e dia
Em qualquer forrobodó.
Sinhô, um dos pioneiros do samba e talvez o seu mais importante fixador, embora carioca legítimo, talvez pelo seu permanente contato com a baianada oriunda da autêntica, encontrou na Bahia, que não conhecia, e nos seus costumes motivação para muitas das suas composições. Quando começa a aparecer como pianista e compositor, nos últimos anos da primeira década do século XX, a música popular do Rio era representada pelas composições dançantes — polcas, valsas e maxixes — a maioria sem versos, e pelas modinhas seresteiras e cançonetas brejeiras.
Os meios que frequenta e onde já se destaca como músico são os das pequenas agremiações diversivas, de títulos curiosos ou extravagantes espalhadas pela cidade, notadamente no Centro, bairros modestos e alguns subúrbios. O forte dessas sociedades são empregadas domésticas e operários, com predomínio dos negros. A praça Onze, a Saúde, as ruas transversais à Central do Brasil (Estação Pedro II) eram no dizer de Heitor dos Prazeres "uma África em miniatura". As casas das tias e babalaôs, como já vimos, se tornaram redutos de sambas (danças) de ritos afro-brasileiros e hábitos da Bahia. Sinhô ali se familiariza e faz amigos.
Naturais seriam as impregnações a que não poderiam fugir as suas composições do ponto de vista melódico como temático. Ademais, o caboclo carioca era de sensibilidade aguda, voltada para o misticismo. Um crente no poder e nas forças dos ritos africanos para aqui transplantados.
Já na sua primeira composição conhecida, a marcha-rancho "Resposta à inveja" (1917), não editada e nem gravada com a forma inicial, (1) réplica do Grupo As Sabinas da Kananga, de que era diretor, à marcha "Inveja" do Bloco Quem Fala de Nós Tem Paixão, demonstra a sua convicção místico-religiosa e, consequentemente, o pendor para a Bahia ou para as baianas, que a partir do século XX foram sempre ponto alto no Carnaval carioca:
São as baianas
Que oferecem esta canção
De coração
Aos maus-olhados
Isto não ligamos
Pois com arruda
Facilmente lhe tiramos
E para a inveja
Temos uma figa
Feita na África
Com o bom guiné de riga.
Por aí se vê bem o temperamento do compositor que surgia enfrentando os maus-olhados com arruda e figa feita na África com guiné de Riga (2) e comprando briga ...
Não obstante a declaração — 'não ligamos aos maus-olhados', Sinhô tinha verdadeiro pavor dos olhos maus dos seus circunstantes. Em "Alivia estes olhos" (1920). 'samba médio', segundo a sua classificação, voltava ao motivo:
Alivia estes olhos pra lá
Que ainda ontem fui me rezar
Tenho medo deste olhar
Que procura-me a vida atrasar.
Esqueçamos a colocação do pronome do último verso, com sabor quinhentista, e nos detenhamos na do segundo verso, com a expressiva forma reflexiva do verbo rezar. O mesmo emprego pronominal desse verbo dentro do linguajar curandeiro aparece no samba "Já-já", de 1924.
Credo cruz
Vá se rezar
Para tirar
Este azar.
Já anteriormente, em 1920, no samba "Vou me benzer (As Criaturas)", o medo dos maus olhos é fixada no estribilho:
Vou me benzer
Para me livrar
Destes maus olhos
Que querem me botar.
Não há dúvida de que a atenção do compositor carioca aos temas baianos vinha muito das suas crenças. Sinhô gostava dos motivos afro-brasileiros e foi grande amigo de Assumano, a quem submetia previamente seus sambas e marchas, como se dele procurasse uma bênção para o sucesso. Em sua bagagem musical figuram composições de nítida inspiração africana ou baiana: "Ai ué dendê: Bofé Pamim Dge" (batuque africano); "Burucuntum"; "Macumba"; "Maitaca"; "Ojaré"; "Oju Burucu"; o citado "Vou me benzer" etc, etc.
Não era à toa que o sambista frequentava Assumano. Em "Oju Burucu" (1925), por ele designado como batucado (ou batucada), o poemeto é esquisito mas expressivo:
Quem eu quero bem
Me atira aos venenos
O mundo é assim
É assim mais ou menos.
Assu, Amadeu
Assu, Amadeu
Assu, Amadeu
Assu, Amadeu.
Cosi incantô
Ju Oju-Burucu
Cosi incantô
Ju Oju-Burucu.
O misticismo do sambista do Rio é patente ainda na letra simples de muitas outras produções, nas quais se mostra voltado para as crendices, rezas e exorcismos. Nem sempre são os deuses africanos os invocados pelo compositor, que mesmo nos instantes de enlevo amoroso, de paixão mal correspondida, está sempre a imprecar e a proferir nomes de santos em meio a votos e juras:
A malandragem eu não posso deixar
Juro por Deus e Nossa Senhora
É mais certo ela me abandonar
Meu Deus do Céu! Que maldita hora! ...
No samba "Macumba", quando lançou o termo Gegê, o compositor afirma ainda uma vez não ter medo de feitiço porque tem um bom santo. Esse samba teria sido composto logo após o rompimento do autor com Cecília.
Em 1928, com o samba "Tesourinha", voltaria Sinhô a referir-se ao seu guia:
É loucura procurares
Minha estrela derrubar
O guia que Deus me deu
Só ele me pode tirar.
Essa estrofe é repetição com pequena variante de frase do samba "Quem fala de mim tem paixão", etiquetado pelo autor como 'samba universal' ...
No samba-choro "A Medida do Senhor do Bomfim", novamente há referência a um guia sacrossanto, apresentado, aliás com certo pernosticismo, à Catulo:
Enquanto a verdade
No mundo existir
Será morta a falsidade
Ao sorrir destes invejosos
Que não cansam de fingir
Que gostam da gente
Sem terem maldade
Eis o prisma transcendente
Da real fatalidade
Que traduz a saudade.
Até parece que o sambista se transviou do roteiro, mas ele se encontra para falar no principal:
Mas eu tenho um guia sacrossanto
Que conduz-me à luz do Ser!
Tanto que ganhei na Bahia
Uma caixinha de marfim
Para me valer
Meu anjo de guarda
Com seu manto me ensina
Tudo quanto sei dizer
A pura medida bela e santa
Do Sagrado Coração do Senhor do Bonfim.
O sambista não tinha preferências nem era exclusivista em matéria de religião. Cria igualmente nos santos da Igreja Católica que invocaria de quando em vez. Como na canção brasileira "Confissão" (1927), de versos catulanos, nos quais mistura seus enlevos de apaixonado e súplicas aos céus:
Em esplendor
iluminando um sonhador
que sem cessar
pedindo vem ao Criador
rogando preces valiosas ao Senhor!
No santo templo junto à cruz
do Bom Jesus
pedindo só
por teu amor.
Repetidas são as suas invocações a santos, ao Santo Deus, `Santa Cruz, à Nossa Senhora, ao Redentor, inclusive numa de suas mais famosas produções -- o samba "Jura":
Jura, jura, jura
pelo Senhor
Jura pela imagem
da Santa Cruz do Redentor!
Quanto à Bahia, depois da marcha-rancho inicial de sua carreira de compositor popular, teria sempre destaque na sua inspiração. Umas vezes exaltando, outras criticando ou pilheriando, mas de qualquer forma pondo em relevo a boa terra. No seu primeiro samba de sucesso — "Quem são eles?" — (1918), já a Bahia despontava; ainda que o sambista lhe fizesse a restrição pilhérica:
A Bahia é boa terra
ela lá e eu aqui.
Depois viria "Fala meu louro", saborosa sátira ao grande Rui que era uma das suas admirações, como de todo o Brasil:
A Bahia não dá mais coco
Para botar na tapioca
Pra fazer o bom mingau
Para embrulhar o carioca.
Também não são poucos os apelos de Sinhô aos motivos folclóricos ou campesinos. Gostava mesmo de misturá-los, como era hábito então dos compositores que se iam abeberar nas fontes populares notadamente do Norte brasileiro. No mencionado samba "Quem são eles?", a segunda parte é puramente folclórica:
Carreiro, olha a canga do boi
Carreiro, olha a canga do boi
Toma cuidado que o luar já se foi
Ai! Olha a canga do boi!
Ai! Olha a canga do boi!
Dessa fase inicial são várias as composições em linguajar caipira, sem maior importância como o samba "Disse me disse" (1919):
Capineiro marvado
Não capina capina aí
O capinzal é de meu bem
Onde canta a juriti
Juvená, Juvená
Arrebata esta faca
Juvená
Torna a rebatê
Juvená
Que isto não é má
Juvená.
Foclore adaptado é o poemeto de "Cada um por sua vez" (1920), lembrando "Casinha da bambuê, coberta de bambuá":
Casinha de sapê
Forrada do bambuá
Cercadinha de capim cheiroso (bis)
Para mim e meu bem morá
Ai ué, ai ué, ai ué, ai ué, ai ué, ai ué (bis)
Ai uá.
Samba meu bem
Que eu sambo também
Esta casa é tua
E mais ninguém.
Só tenho medinho
Do marruá
Que uma chifrada
Nos venha dá.
Porteira de imbaubá
Tramela da bambuí
O número é um ninho
Rodeado de bem-te-vi
Ai ué, ai ué, ai ué
Ai ué, ai ué, ai ué
Carioca da gema, nascido no centro da cidade, o sambista aqui e ali procurava o cenário do campo, do sertão. Em "Volta à palhoça" (3), samba de 1926, para o Carnaval de 1927, assim começa:
Ó Gegê
Tenho uma casa de palha
Quando tiveres saudade
Vá visitar a canalha.
Depois do convite bem carioca com aquele "canalha" significando graciosamente a família, os versos líricos:
Fica pertinho da grota
Dentro das matas sem falha
Esta vivenda amorosa
Onde o amor se agasalha.
Em cada canto da casa
Pendurei uma esperança
E os dizeres são estes:
Quem espera sempre alcança.
Sem nos determos nas extravagâncias gramaticais de Sinhô, que nunca lhe comprometeram as glórias de artista do povo, vale a pena observar a sua pretensão ou talvez ingenuidade: o seu beijo é 'beijinho', há uma 'linda flor' nos seus ais; suas preces ao Criador são 'valiosas'. Dedicando a canção-cateretê "Alegrias de caboclo" (1927) a Nair Moreira, usa a expressão "à minha feliz companheira". Essa composição tem versos bonitos, embora malcuidados:
Caboclo não tem tristeza
Ai! ai! meu bem
São traços da natureza
Ai! ai! meu bem.
Faz da manhã poesia
Do dia uma sinfonia
Da tarde rude harmonia
Da noite rica alegria.
Perdulário da rima nessa estrofe, o poeta continua mais sóbrio quanto à forma, ainda que eloquente na imagística:
Das folhas secas que caem
Faz a fogueira do amor
E do clarão que provém
Faz sua prece de dor.
Das suas mais belas composições é "Sabiá", de 1928:
Sabiá, sabiá cantou na mata
E anunciou chiu, chiu
No melhor da minha vida
Meu amor fugiu.
Procurei me aproximar
Do sabiá encantador
Que sentindo o meu pisar
Fez tal e qual o meu amor.
..........................
"Canção roceira" (1920), "Bem-te-vi" (1925), "Sonho de gaúcho" (1922) são outras composições nas quais Sinhô procurava intervalar os motivos do asfalto. Embora valham mais pela melodia, provam pelo menos a versatilidade do sambista carioca ...
(1) Depois editada com alterações, sob o título "Não posso me amofinar" (1921-1922); (2) Apesar do "r" minúsculo, parece se tratar de Riga, grande empório de madeiras de lei; (3) Na edição da parte musical a crase não aparece.
Fonte: "Nosso Sinhô do Samba" / Edigar de Alencar - Edição FUNARTE - Rio de Janeiro 1981.
quinta-feira, julho 24, 2014
terça-feira, julho 08, 2014
Ouvindo Alda Verona
"O ideal do cantor de rádio é perpetuar a sua voz no disco. A gravação encerra o desejo do público em tê-lo permanentemente a mão, sem depender da programação do rádio, das perturbações atmosféricas que nas longas distâncias dificultam a audição do astro e das mil e uma dificuldades consequentes da transitoriedade da irradiação.
A gravação, enfim é a consagração do artista, a meta da sua carreira e, quando ele não tem personalidade bastante para garantir o prestígio, o seu fim. O disco, ou populariza definitivamente ou mata o artista.
A cotação enorme de Francisco Alves, Carmen Miranda, Sílvio Caldas ou Almirante, foi produzida mais pelo disco do que pelo microfone. Entre os artistas brasileiros mais beneficiados pela gravação acha-se Alda Verona, elemento veterano do nosso rádio ao qual pertence desde os seus primórdios.
Interpretando um gênero altamente simpático, que é o da canção que não sendo totalmente popular também não é absolutamente pertencente à espécie fina, Alda Verona consegue, mercê da sua bela voz e de sua excelente dicção, tornar interessante qualquer melodia que interprete, por mais ingênua que seja a sua composição. A artista que aqui focalizamos hoje tem a inteligência de escolher para as suas gravações, não somente as páginas de música bonita mas também aquelas cujas palavras sejam de molde a produzirem no ouvinte um máximo de sugestão.
Suas gravações são notáveis de romantismo.
Voltando agora de Pernambuco, onde esteve pela segunda vez especialmente contratada para cantar na PRA-8, Alda Verona esteve em nossa redação.
— É sempre agradável rever o meu querido Rio de Janeiro, embora o Norte seja lindo e todo ele pitorescamente cheio de cor local. Mas o Rio é uma cidade única, insuperável. As paisagens cariocas têm o dom maravilhoso de não se tornarem vistas demais, mesmo por aqueles que a contemplam durante toda vida. Sempre morei à beira-mar, percorrendo diariamente a zona que liga Copacabana à cidade: descubro todos os dias um encanto novo, uma nova tonalidade luminosa nos aspectos panorâmicos que me maravilham há tanto tempo.
— Quais as suas impressões sobre Pernambuco artístico?
— Pernambuco como todo o Norte brasileiro, faz por te garantir no conceito que todo o país forma das suas possibilidades intelectuais. Por isso produz sempre, conseguindo o seu "desideratum".
— Musicalmente? ...
— Autores que escrevem para o gênero que interpreto são inúmeros no Norte, e todos interessantes. Mas é mister citar os dois de minha preferência, cujos nomes já estão sendo divulgados no Rio: os pernambucanos Nelson Ferreira e Waldemar de Oliveira; são dois artistas cuja inspiração é das mais ricas. Trago para o Rio, integrando o meu repertório, algumas produções desses pernambucanos inteligentes. Possivelmente gravarei essas lindas canções do Norte, proporcionando-lhes a divulgação que merecem.
— No Brasil quais os compositores que prefere?
— Joubert e Sivan.
— E fora do Brasil?
— Os compositores de opereta que é o gênero musical de minha preferência. A opereta a gente não sabe perfeitamente se é um espetáculo exclusivamente musical, ou teatral ou coreográfico. Porque reúne em si todas essas formas de arte da maneira mais evidente. Jamais trabalhei no teatro, mas se o fizesse seria cantando operetas.
— Como começou no rádio?
— No tempo da velha Rádio Sociedade. Minha professora Eloísa Mastrangiolli, costumava cantar periodicamente ao microfone daquela estação; não digo contratada, porque naquele tempo não eram pagos os artistas de rádio, pois as estações, incipientes, não tinham verba para tanto; os dias iniciais do nosso rádio foram feitos com o sacrifício de muitos. Mas devo contar como comecei no rádio. Eloísa Mastrangiolli, tendo fixado um programa à última hora, não pode executá-lo porque adoeceu subitamente. Solicitou-me o auxílio e eu cantei no seu lugar. Cantei e continuei cantando até hoje. No rádio fui, também, "speacker", me encarregando de diversos programas.
— Como começou a gravar?
— Minha voz, muito própria para o microfone, chamou a atenção dos técnicos que me convidaram para gravar. Venho de cantar para a fábrica Odeon uma série de discos que servirão especialmente para propagar a música brasileira no estrangeiro. E fico contente por saber que assim posso ser de utilidade para o Brasil.
E nós também, porque sabemos perfeitamente que a divulgação melhor de nosso país é feita mais pelos elementos artísticos que pelos diplomáticos. A diplomacia é convencional e a arte é humana."
Fonte: "Carioca" — revista semanal, de 28/8/1937.
A gravação, enfim é a consagração do artista, a meta da sua carreira e, quando ele não tem personalidade bastante para garantir o prestígio, o seu fim. O disco, ou populariza definitivamente ou mata o artista.
A cotação enorme de Francisco Alves, Carmen Miranda, Sílvio Caldas ou Almirante, foi produzida mais pelo disco do que pelo microfone. Entre os artistas brasileiros mais beneficiados pela gravação acha-se Alda Verona, elemento veterano do nosso rádio ao qual pertence desde os seus primórdios.
Interpretando um gênero altamente simpático, que é o da canção que não sendo totalmente popular também não é absolutamente pertencente à espécie fina, Alda Verona consegue, mercê da sua bela voz e de sua excelente dicção, tornar interessante qualquer melodia que interprete, por mais ingênua que seja a sua composição. A artista que aqui focalizamos hoje tem a inteligência de escolher para as suas gravações, não somente as páginas de música bonita mas também aquelas cujas palavras sejam de molde a produzirem no ouvinte um máximo de sugestão.
Suas gravações são notáveis de romantismo.
Voltando agora de Pernambuco, onde esteve pela segunda vez especialmente contratada para cantar na PRA-8, Alda Verona esteve em nossa redação.
— É sempre agradável rever o meu querido Rio de Janeiro, embora o Norte seja lindo e todo ele pitorescamente cheio de cor local. Mas o Rio é uma cidade única, insuperável. As paisagens cariocas têm o dom maravilhoso de não se tornarem vistas demais, mesmo por aqueles que a contemplam durante toda vida. Sempre morei à beira-mar, percorrendo diariamente a zona que liga Copacabana à cidade: descubro todos os dias um encanto novo, uma nova tonalidade luminosa nos aspectos panorâmicos que me maravilham há tanto tempo.
— Quais as suas impressões sobre Pernambuco artístico?
— Pernambuco como todo o Norte brasileiro, faz por te garantir no conceito que todo o país forma das suas possibilidades intelectuais. Por isso produz sempre, conseguindo o seu "desideratum".
— Musicalmente? ...
— Autores que escrevem para o gênero que interpreto são inúmeros no Norte, e todos interessantes. Mas é mister citar os dois de minha preferência, cujos nomes já estão sendo divulgados no Rio: os pernambucanos Nelson Ferreira e Waldemar de Oliveira; são dois artistas cuja inspiração é das mais ricas. Trago para o Rio, integrando o meu repertório, algumas produções desses pernambucanos inteligentes. Possivelmente gravarei essas lindas canções do Norte, proporcionando-lhes a divulgação que merecem.
— No Brasil quais os compositores que prefere?
— Joubert e Sivan.
— E fora do Brasil?
— Os compositores de opereta que é o gênero musical de minha preferência. A opereta a gente não sabe perfeitamente se é um espetáculo exclusivamente musical, ou teatral ou coreográfico. Porque reúne em si todas essas formas de arte da maneira mais evidente. Jamais trabalhei no teatro, mas se o fizesse seria cantando operetas.
— Como começou no rádio?
— No tempo da velha Rádio Sociedade. Minha professora Eloísa Mastrangiolli, costumava cantar periodicamente ao microfone daquela estação; não digo contratada, porque naquele tempo não eram pagos os artistas de rádio, pois as estações, incipientes, não tinham verba para tanto; os dias iniciais do nosso rádio foram feitos com o sacrifício de muitos. Mas devo contar como comecei no rádio. Eloísa Mastrangiolli, tendo fixado um programa à última hora, não pode executá-lo porque adoeceu subitamente. Solicitou-me o auxílio e eu cantei no seu lugar. Cantei e continuei cantando até hoje. No rádio fui, também, "speacker", me encarregando de diversos programas.
— Como começou a gravar?
— Minha voz, muito própria para o microfone, chamou a atenção dos técnicos que me convidaram para gravar. Venho de cantar para a fábrica Odeon uma série de discos que servirão especialmente para propagar a música brasileira no estrangeiro. E fico contente por saber que assim posso ser de utilidade para o Brasil.
E nós também, porque sabemos perfeitamente que a divulgação melhor de nosso país é feita mais pelos elementos artísticos que pelos diplomáticos. A diplomacia é convencional e a arte é humana."
Fonte: "Carioca" — revista semanal, de 28/8/1937.
sábado, julho 05, 2014
O novo Hekel Tavares
"Hekel chegou ao Rio, vindo do Norte, na mais extrema falta de recursos. Aqui o vemos, numa foto raríssima, feita nos dias duros: costurando seu único par de meias ..." (Carioca, 7/8/1937) |
Hekel (1) Tavares, embora possuindo um nome exótico, incompatível com a sua personalidade eminentemente bugra, conseguiu esse máximo de cotação que é o não ter a lhe preceder o nome um sisudo "senhor", um prosaico "seu", um pedante "Dr." ou um conspícuo "maestro".
E a nossa gente foi tão longe com ele, nesse particular, que esqueceu-lhe até o sobrenome Tavares, numa simbólica manifestação de camaradagem; títulos e sobrenome, na opinião popular brasileira, são coisas convencionais; por isso a gente toda, numa solução genial, trata o notável compositor simplesmente por Hekel. De que, é o "Banzo"? Ora, é do Hekel ... Era só o que faltava que o "Banzo" fosse do senhor maestro Hekel Tavares ...
Um senhor maestro só produz ruidosos “operões” que o povo esquece. Afinal, quanto nome esquecido, de gente que no Brasil, como no estrangeiro, produziu massudas e arquivadas partituras cheias de "dós" incrivelmente agudíssimos e "fás" absurdamente graves? São nomes que a gente só encontra nos dicionários, devidamente acompanhados de títulos pomposos. Mas ninguém sabe se Mozart era nobre ou se Bach era doutor. Já ouviram falar em maestro Mozart ou maestro Bach? Nunca. Apenas e colossalmente em Mozart e Bach. Esta simplificação é tudo, esse desrespeito é a adoração.
Pois é do Hekel que nos ocuparemos hoje. Do Hekel herói. Desse Hekel que teve valor bastante para abdicar de uma situação excepcional no cenário artístico de nosso país, enveredando por uma trilha bem diversa daquela que ele seguia cheio de celebridade e das vantagens materiais que a celebridade produz. Há dois anos que o autor de "Sussuarana" não lançava nenhuma novidade. Não fosse a popularidade imensa alcançada pelas suas produções anteriores, cujas tiragens foram a alguns milhares e esses dois anos de reclusão teriam sido a morte do Hekel compositor.
Teria ele desistido da música?
Não se explicava de outra maneira o su silêncio, porque a sua inspiração sempre foi proverbial pela perenidade; seus cento e três trabalhos impressos atestam um labor constante.
Mas ele não desistira da música; apenas e simplesmente ele se dedicara todo à música, àquela cuja fatura demanda sacrifício mas produz coisas colossais como a cultura popular e a formação da nacionalidade. Hekel, que vinha apresentando ao público do Brasil os diamantes brutos das nossas melodias cuidou durante esses dois anos, de burilá-los, apresentando-os de maneira definitiva e tendente a torná-los conhecidos em todo o mundo. O seu trabalho de vinte e quatro meses redundou nesse sucesso estrondoso que foi "André de Leão e o Demônio de Cabelo Encarnado", suíte sinfônica baseada em poema de Cassiano Ricardo. Essa partitura, que foi gravada por iniciativa do autor, está sendo muito ouvida na Europa; na Alemanha já cogitam de editá-la em língua nacional e jornais de toda a Europa referem-se elogiosamente à música, colocando o seu autor entre os grandes músicos sul-americanos.
Desejoso de tornar conhecido dos nossos leitores o novo Hekel, procuramo-lo em sua residência, onde ele estava imerso nos preparativos para o lançamento de uma novidade sensacional: um livro para a iniciação musical das crianças! Nesse livro Hekel expõe da maneira mais simples e concreta os mesmos elementos formadores da enfadonha "artinha", que é o espantalho de todos os garotos destinados à aprendizagem da arte dos sons. Exemplos pitorescos incutem nas mentes infantis as normas da teoria musical, nesse curioso trabalho cujos direitos autorais acabam de serem registrados nos países europeus e na América do Norte.
Uma das páginas do livro representa a construção do pentagrama e os tangarás que simbolizam as sete notas musicais. |
— O sucesso do método está no resultado que se pode obter tendo como objetivo a memória visual da criança.
Cenas de colorido forte — continua Hekel — ilustram uma pequena historieta através da qual, sem que a criança a aperceba, lhe são ministrados conhecimentos básicos de teoria musical.
Nos vários testes que fiz com crianças de idades diversas, pude observar a facilidade de assimilação.
Inicialmente, Zilo, o pretinho sabido, forma com o auxílio das linhas telegráficas um pentagrama no espaço, e os tangarás passam a ter os nomes das notas que vão sendo colocadas nos lugares respectivos.
Explicado os nomes das sete notas, o negrinho, que é o pivô da pequena novela, apresenta o "General Sol" e a sua função no pentagrama.
Note que apesar de se tratar da figurinha de um general, a clave de Sol está perfeitamente desenhada. Assim, dentro de um argumento pitoresco, a criança fica conhecendo os sinais e o que eles representam.
Depois que os lugares das notas estão bem fixados, os pássaros e o general desaparecem para dar lugar a um pentagrama normal com a clave e as semibreves, cujo valor é explicado no capítulo de divisão.
Contudo, como se trata de distrair a criança o mais possível, os nomes das notas são lembrados com um objeto que comece com a mesma sílaba. Veja que o "fá", na 5a. linha tem, ao lado, uma faca, o "sol", tem um soldado, e assim por diante.
Na divisão do compasso de 4 tempos, cujo número inteiro é uma semibreve, está representada por uma laranja. Não divido uma semibreve, divido uma laranja!
Nos diversos testes que fiz os resultados foram sempre coroados de êxito — finaliza Hekel.
— Quem é o editor?
— Eu mesmo. A percentagem dos editores elevaria por demais o preço do exemplar. Por isso resolvi fazer eu mesmo a impressão, a fim de torná-la acessível a bolsos humildes.
— Diga-nos algo sobre os seus atuais trabalhos de composição.
— Atualmente trabalho uma rapsódia nordestina, que apresentarei brevemente com coreografia a cargo do célebre bailarino Francis. Este meu trabalho terá, como complemento orquestral, a colaboração de vozes humanas sem palavras. Fixa diversos aspectos da vida nordestina e desenvolve sobre temas regionais interessantíssimos. Será uma afirmação bem categórica de nossa riqueza musical. Além dessa rapsódia tenho planejados diversos trabalhos que obedecerão às normas que estabeleci. A nossa riqueza folclórica impõe-se ao compositor a obrigação de divulgá-la universalmente, o que importa num trabalho muito sério que nem sempre é aceito pelo povo, mas que é o único que influi sobre o seu progresso mental, forçando-o à compreensão das manifestações de arte verdadeira.
Despedimo-nos de Hekel, criatura rara, que acima de seus interesses pessoais coloca os interesses populares e os da arte."
Nota: (1) Na revista, escrito "Heckel".
Fonte: Revista semanal "Carioca", de 7/8/1937 (artigo atualizado para o nosso português) — Foto e figura extraídas dessa edição.