segunda-feira, fevereiro 10, 2014

Bateria! Sentido!

Luciano Perrone, o rei dos bateristas - 1936
"Quando se fala numa orquestra, imediatamente vem à tona o nome do seu diretor e o elogio ou a crítica desfavorável ao seu valor. Sobre ele, as opiniões divergem. Dele decorre o mérito da orquestra.

Aos elementos que a compõem ninguém se refere. Ninguém lembra sequer que um conjunto musical nada mais é que o produto do esforço individual de cada um dos seus componentes. Uns, mais destacados, outros, mais humildes, todos porém, sob a direção do maestro, concorrendo para um mesmo fim — a execução perfeita de uma página musical.

Numa grande orquestra destinada à música inspirada dos compositores de renome mundial, ou num “jazz” de ritmo infernal e maluco, a bateria é hoje um dos instrumentos principais e, pela sua complexidade de objetos, dos mais difíceis de tocar. Dia para dia, ampliam-se em número os instrumentos que a compõem. Já estamos bem longe dos tempos em que um simples bombo e as caixas davam conta de toda esta parte da orquestra.

Hoje, há uma série de aparelhos complicados: Belo, campanas, xilofone, etc. Tão diversos são em sua essência estes instrumentos que, não raro, difícil se torna encontrar quem os saiba tocar a todos conjuntamente. No Rio, bem poucos poderão gabar-se de tal capacidade e entre estes está Luciano Perrone, o bateria da Rádio Nacional, que, além deste instrumento, toca piano e é profundo conhecedor de música, como o provou há pouco, com a orquestra que organizou para a “Parada das Maravilhas”, a inesquecível festa da Pequena Cruzada no Municipal — “clou” da “saison” elegante de 1936.

Luciano, que é carioca, nasceu em 1908. Desde criança revelou tendência para a música. Seu pai, Luiz Perrone, foi diretor de orquestra em quase todos os cinemas que em 1919 conhecia o Rio: o Avenida, Palácio, Odeon com as duas salas e outros. No Odeon, Luciano fez a sua estreia, substituindo, num dia, o músico efetivo, que havia adoecido.

Era então um garoto de pouco mais de quatorze anos, cheio de entusiasmo e desejo de triunfar. Depois, foi para o Cinema Parisiense, onde, pela primeira vez, foi apresentada a bateria americana, até então desconhecida entre nós. Fez parte de muitas orquestras no Rio de Janeiro e em São Paulo e, quando apareceu a Rádio Cajuti, fazia parte da orquestra. Dissolvida esta, Luciano foi para o Rádio Club e correu em seguida a Transmissora e a Cruzeiro, fazendo atualmente parte da PRE-8 (Rádio Nacional do Rio).

Luciano Perrone tem em sua vida duas gratas recordações: ter sido o primeiro a oferecer ao público um concerto de bateria, o que aconteceu na Rádio Cajuti, e ter sido o primeiro a gravar este instrumento em discos. A bateria até pouco era malquerida e afastada das gravações. Coube a ele reabilitá-la e provar que o instrumento não era pernicioso, como se pensava, a produção de bonito som nos discos.

Muito jovem, pertencendo à moderna geração da música brasileira, Luciano Perrone tem consigo um ideal — elevar a nossa música, a música brasileira.

Sonha com uma orquestra bem organizada e bem ensaiada que possa levar ao mundo, em, interpretações perfeitas, a magnitude da nossa melodia e a riqueza incomparável dos nosso ritmos ..."


Fonte: CARIOCA, de 31/10/1936 (texto atualizado).

Abigail Parecis, uma cantora de classe

Quando ela nasceu, recebeu o primeiro beijo do sol. Porque nas tabas dos índios o sol entra à vontade dentro das casas, como um senhor onipotente. 

No interior da oca humilde da tribo dos seus pais, ela confundiu os seus primeiros vagidos com o som desordenado do maracá.

Depois cresceu como “Iracema”. Aos 9 anos de idade era uma indiazinha de grandes olhos negros, dentes fortes e expressão ingênua. Mas já não estava mais nas selvas do Paraná.

Uma expedição civilizadora levou-a, junto com os seus pais, para longe dos tacapes e murucus, para longe do seu querido sol selvagem.

E só por isso ela deixou de ser Iracema.

Abigail, seu nome de batismo, servia agora para conduzir pela vida uma menina civilizada, que estudava vários idiomas, aprendia a saber-se portar na sociedade, dentro de todas as normas da boa educação.

Mas os traços do seu rosto falavam de uma heroína de romance que existiu outrora nas selvas do Brasil, dentro da fantasia de Alencar. “Iracema”, dona de cabelos tão negros como a asa da graúna e tão longos como o seu talhe de palmeira ...  Também ela concertava com “ará”, sua companheira e amiga, o canto agreste. “Iracema” também devia ter uma linda voz.

Mas Abigail, deixando de ser a índia mais linda da sua tribo, guardava outro destino mais glorioso. Um bondoso professor italiano, maestro Phillipo Alessio adotou-a como filha, notando logo, assim que a menina chegou aos doze anos, o timbre puro e encantador da sua voz.

Depois de estudos persistentes, apareceu a cantora. Estava morta a lenda. Surgiu Abigail Parecis.

A vida que parece um romance ...

Diante de Abigail Parecis a curiosidade — romancista inveterada — tem um interesse maior. Porque ela surge como uma evocação. Junto dela estão figuras lendárias, fragmentos de romances, restos de páginas lidas.

Insensivelmente vamos desejando sentir na sua vida um capítulo qualquer de fantasia.

Mas Abigail desfaz essas impressões com um sorriso claro e despreocupado.

— A minha vida parece um romance, inegavelmente, mas um romance que parou no meio ou mudou de rumo. Falta-me, principalmente, para parecer com a “Iracema”, o “Guerreiro branco” — não tenho guerreiros na vida ... — declarou, sorrindo.

Ela não se interessa pelo amor. Declarou-o com simplicidade, com os olhos negros, muito abertos, num desafio ás opiniões alheias. Pensa, principalmente, na sua arte.

— Quando comecei a cantar, adotando o gênero lírico, sonhei em realizar grandes viagens, já fui à América do Norte, país adorável onde consegui, com felicidade, agradar plenamente. Pretendo, muito em breve, ir a Itália, aperfeiçoar-me, afim de ter inteira segurança na carreira que estabeleci para o meu destino.

Ela não tem outros ideais. Conseguir a glória e dar uma boa situação aos seus velhos pais.

Abigail adora sua mãe, a qual, além de amiga e conselheira é uma lembrança viva e permanente da sua romanesca origem.

Hoje, que Abigail já não parece índia, sendo muito mais clara que qualquer garota moderna que frequenta as praias cariocas, se declara saudosa dos ambientes onde não viveu ...

Restos de lembranças ancestrais.

Como cantora lírica, Abigail é, presentemente um dos elementos de relevo do “cast” da Rádio Nacional, interpretando, com perfeição, todas as óperas célebres.

— “Madame Butterfly” e “La Bohéme”, são as minhas óperas prediletas. Cantei, quando me exibi no Teatro Municipal a “Traviata” mas não estabeleço comparações entre essas músicas. Gosto de todas. Também já filmei em Hollywood para a Paramount e sincronizei parte falada de “Noivado de ambição”, um filme exibido há pouco tempo.

Ela não é fanática pelo cinema. Gosta de esportes violentos, box, luta romana, etc. Mas também gosta de bordar e pintar.

Fala com perfeição o francês, o inglês, italiano e espanhol. Mas em nenhum desses idiomas é capaz de dizer — “eu te amo”!

— Estou casada com a minha arte e acho que os homens são muitas vezes criaturas que não desconfiam de nada.

Ela é alegre e atenciosa. Incapaz de uma indelicadeza, tem no entanto essa ojeriza pelo sentimento —- fato que poderá ser, talvez, a única fantasia da sua vida — uma vingança espiritual de “Iracema” contra todos os sofrimentos do amor.


Fonte: CARIOCA, de 31/10/1936 (texto atualizado).