quarta-feira, outubro 19, 2011

Nosso Sinhô do Samba - Parte 2

Caricatura de K.lixto: O rei do Samba.
Afastando-se do grupo da Tia Ciata, Sinhô tomou gosto pela composição e pelas brigas...

O pianeiro ansiava por se escapar dos limites do teclado para se projetar com maior amplitude além das sociedades recreativas, cenário onde era figura de prol. Se o Pelo telefone (1916-1917) não tivesse alcançado tão grande sucesso talvez a coisa serenasse e acabasse esquecida. Mas o êxito da composição de equipe refletindo-se apenas num dos seus componentes criou o clima para a dissensão e para a desforra. Sinhô, Donga, Pixinguinha, China, Hilário e João da Baiana não ficaram inimigos pessoais. Mas começaram a guerrear-se musicalmente, o que não deixava de ser proveitoso à nascente música popular carioca.

Ainda em 1917, pelo Carnaval, sendo diretor-geral do Grupo As Sabinas da Kananga, Sinhô compôs a marcha-rancho Resposta à inveja especialmente para o grupo e como réplica à marcha Inveja, lançada pelo Bloco Quem Fala de Nós Tem Paixão. Afora uma ou outra polca que não passara das salas em que tocava, parece ter sido essa a primeira composição de Sinhô. Não editada e nem gravada. Começava assim o futuro grande compositor do Rio aparando o pião na unha. Tanto a música como os versos eram do ‘inspirado maestro’, tal qual noticiou o Jornal do Brasil, de 14 de fevereiro. Eis os versos:

Coro geral
São as baianas
Que oferecem esta canção.

Coro só
De coração.

Diretor
Aos maus-olhados
Isto não ligamos 
Pois com arruda
Facilmente lhes tiramos.

Damas
E para a inveja
Temos urna figa
Feita na África
Com o bom guiné de riga.

Era o princípio e era bem o Sinhô que surgia topando paradas comprando briga e já afirmando as suas crendices e superstições. Essa marcha-rancho seria refundida e transformada no samba aparecido em fins de 1921, para o Carnaval de 1922 — Não posso me amofinar. Além da transformação rítmica Sinhô acrescentou uma estrofe talvez para justificar o título, coisa que não lhe importava muito, aliás:

Eva, qua, qua, qua
É preciso lhe explicar
Que a vida é curta
E eu no posso me amofinar.


No Carnaval de 1918, Sinhô receberia o batismo de fogo com o samba Quem são eles, sua primeira produção divulgada amplamente através de um bloco que organiza, com flauta, cavaquinho, violão, violino, trombone, pandeiro, reco-reco e ganzá. O grupo filiado ao Clube dos Fenianos tinha a mesma denominação do samba. Segundo pesquisa de Jota Efegê, foi o grupo que deu título à composição de Sinhô e não esta àquele. (1)

Sinhô quisera apenas homenagear o bloco filiado a um clube que bem o acolhia. Mas como na denominação essencialmente carnavalesca, bem ao jeito dos pufes e proclamações das três grandes sociedades, era evidente o desafio, a provocação, não somente os demais se sentiriam atingidos como também o grupo de compositores adversos, chefiado por Pixinguinha. Tanto mais que no texto do samba se falava na Bahia, ainda que com alusão às encrencas políticas da boa terra, com Rui de um lado e J. J. Seabra do outro. De qualquer forma, daí por diante se verificaria que grande parte das composições de Sinhô encerrava referências, veladas ou não, indiretas, quando não no miolo, pelo menos na cabeça, isto é, no título.

o samba Quem são eles fora antes cantarolado por Sinhô ao piano na Casa Beethoven. Possuidor de ritmo próprio e com um fraseado que o distinguia, embora nada soubesse de música, Sinhô encaixara a melodia a jeito nos versos pitorescos que em pouco tempo os presentes àquele estabelecimento cantavam gostosamente:

A Bahia é boa terra
Ela lá e eu aqui; Iaiá,
Ai, ai, ai
Não era assim que o meu bem chorava

Não precisa pedir que eu vou dar
Dinheiro não tenho mas vou sambar

Carreiro olha a canga do boi
Carreiro olha a canga do boi
Toma cuidado que o luarjá se foi
Ai! Olha a canga do boi!
Ai! Olha a canga do boi!

Na Casa Beethoven, Sinhô tinha como colega de trabalho a pianista Cecília, sua admiradora e mais tarde sua companheira. A moça instou para que o novo autor entregasse o samba para a casa editá-lo, o que conseguiu com algum trabalho. Cecília exerceu grande influência na carreira do compositor. O músico nato teve assim a ajuda valiosa de uma Cecília, que não era nenhuma santa, mas foi sua protetora por algum tempo.

Muito interessante a edição da Casa Beethoven da parte musical de Quem são eles? O desenho é curioso (figura ao lado). Um sujeito encartolado, bem vestido, de luva, dentro de um barco solitário que vaga serenamente com a bandeira dos Fenianos no mastro. Perto um negro grita por socorro, como se estivesse a morrer afogado. O cartola nem como coisa. Tudo muito ingênuo.

Bem divulgado pelo bloco feniano, o samba alcança retumbante sucesso no Carnaval de 1918, estendendo-se por todo o Brasil. Era a vez de Sinhô.

A música buliçosa e os versos misturando sertão com política agradariam em cheio e seriam repetidos nos carnavais subseqüentes das províncias, onde chegavam ainda que retardados, levados por viajantes ou pelas chapas da Casa Edison, Rio de Janeiro. Além dos gramofones que martelavam o samba, correu vários Estados um filme musicado — Carnaval cantado — que reproduzia sambinhas, cateretês e marchas de sucesso na grande festa carioca de 1918: Quem são eles?, Vamo, Maruca, vamo, A Carta que te mandei, etc. Essas músicas eram geralmente transmitidas com o filme nos cinemas, ou executadas ao piano, nas sessões infantis. A criançada e a juventude presentes faziam coro ruidoso e mais se popularizavam as composições. (2)

E o já conhecido pianeiro das sociedades da Cidade Nova daí por diante figuraria em definitivo no cancioneiro popular do Brasil.

A denominação do samba parecera indireta (muito direta) à turma do Pixinguinha que topou a provocação. Donga replicou com outro samba — Fica calmo que aparece. Hilário também contraditou com o seu Não és tão falado assim. E finalmente Pixinguinha e China lhe deram mais agressiva resposta com o samba Já te digo:

Um sou eu
E o outro eu já sei quem é
Ele sofreu
Para usar colarinho em pé.

Vocês não sabem quem é ele
Mas eu lhes digo
Ele é um cabra feio
E fala sem receio
E sem medo ao perigo.

Ele é alto, magro e feio
E desdentado
Ele fala do mundo inteiro
No Rio de Janeiro.

No tempo em que tocava flauta
Que desespero
Hoje ele anda janota
A custa dos trouxas
Do Rio de Janeiro.

o retrato físico era cruel, mas não falso. Sinhô que trajava com certo esmero e usava chapéu Randal (tipo Gelot) era desdentado, o que não lhe causava maior vexame, embora lhe originasse o cacoete de levar instintivamente a mão à boca quando ria, para disfarçar um pouco a derrocada dentária. Sendo vaidoso e não desleixado, pode-se avaliar o pavor que lhe inspiravam os dentistas...

Compositor autenticamente carioca, Sinhô buscou na Bahia motivação para várias das suas composições, umas de exaltação outras de crítica, mas de qualquer forma destacando sempre a boa terra. Principalmente nos primeiros anos da sua atividade de compositor, quando no eram poucos no Rio os compositores baianos ou descendentes. Daí ciumadas e daí revides. Sinhô aparecera no seu primeiro samba repetindo ironicamente o dito:

A Bahia é boa terra
ela lá e eu aqui.

E mais tarde viria com Fala meu louro (1920), saborosa sátira ao grande Rui, uma das suas admirações:

A Bahia não dá mais coco
Para botar na tapioca
Pra fazer o bom mingau
Para embrulhar o carioca.

Papagaio louro
Do bico dourado
Tu falavas tanto
Qual a razão que vives calado

Não tenhas medo
Coco de respeito
Quem quer se fazer não pode
Quem é bom já nasce feito

Com muito espírito, o sambista carioca mexia com o senador baiano, mas a referência à Bahia iria esquentar novamente os ânimos. Os brios dos baianos autênticos ou folheados se julgaram ofendidos. Além do mais, o samba fora acusado de plágio. Hilário, baiano legítimo, chamado o bom Hilário, um dos maiorais da colônia e prestigioso carnavalesco, pôs a bondade de lado e espinafrou o sambista, acusando-o de plagiário e desafiando-o com um samba de versos bem feitos. Aquela indireta de a Bahia não dar mais coco não devia ser somente com o genial político mas principalmente com os sambistas da boa terra radicados no Rio. Assim era o poema-revide de Hilário no samba Entregue o samba a seus donos:

Entregue o samba a seus donos
É chegada a ocasião
Lá no Norte no fazemos
Do pandeiro profissão.

Falsos filhos da Bahia
que nunca pisaram lá,
que não comeram pimenta
na moqueca e vatapá,
mandioca mais se presta
muito mais que tapioca.

Na Bahia não tem mais coco
Ë plágio de um carioca.

Pedro Paulo, outro autor do tempo, também pulou na arena defendendo os baianos no samba Olé:

Todo mundo faz um samba
Eu também quero fazer
Mas dizer que é na Bahia,
Olé 

Não pode ser

A Bahia é boa terra
Já não dá mais coco!
Não! Quem quiser tudo saber erra,
Olé

É toleirão

Pelo saco tudo passa
Basta falar em iaiá
Mas um sambinha sem graça,
Olé 

Não vem de lá.

Sinhô não se atordoou com a grossa pancadaria, pois em 1921, no samba Sempre voando, etiquetado pelo autor como ‘puro samba’, afigura-se espantado de haver ‘pai-de-santo’ na Bahia:

Já descobri meu bem
Coisa que causa espanto
Na Bahia tem, tem
Gente que é pai-de-santo.

Se o sambista pagava alto pelo seu constante voltar-se para os motivos na Bahia, também não perderia jamais o ensejo de fazer sua provocaçãozinha. De quando em vez o fazia. Ainda em 1927, tanto tempo decorrido, o Correio da Manhã de 16 de janeiro publica uma versalhada de J. B. Silva sob o título Carioca, com dedicatória a Cícero de Almeida:

Não penses que eu vou fugir
Às quadras do teu sentir
Pois quero de novo rir!
Com teu modo de carpir
o teu sertão a zunir
A tua terra a tinir
A baianada a mentir
Pois quero de novo rir!

Do coco que está partido
Da cobra já sem perigo
Do chumbo derretido
Da cascavel sem abrigo
Do teu sertão a zunir
Da terra ouca (sic) a tinir
Da baianada a mentir
Pois quero de novo rir.

Rima em abundância e endereço certo...

Músico nato, Sinhô deu nítida preferência ao piano. Talvez porque na casa do avô houvesse um. Mas, afora o piano (que não podia ser removido), adorava o violão, seu companheiro de deambulações boêmias e ao qual demonstrava carinho enternecido. Certo é que o caboclo poderia tocar qualquer instrumento popular desde que se lhe dedicasse de alma e coração. Passou pela flauta, pelo flautim e pelo cavaquinho. Foi ao piano que conseguiu maior prestígio. Em 1910, já é pianista querido do Dragão Clube Universal (do Catumbi), que nos anúncios de bailes fazia constar: “O nosso pianista será o Sr. J. Silva (Sinhô), o conhecidíssimo chorão das molecas chorosas”.

o superlativo e a piada dizem bem da popularidade já conquistada pelo então simplesmente J. Silva. A citação do nome e apelido do pianista nos anúncios e convites era motivo de atração, daí não ser omitida.

Pianista será mais tarde do Grupo Dançante Carnavalesco Tome Abença a Vovô, do Grupo Dançante Carnavalesco Netinhos do Vovô, da Kananga do Japão etc. E é dedilhando um teclado que aparece na famosa caricatura de K.lixto, com a coroa de Rei do Samba, que tanto deveria pesar na cabeça dos outros. Caricatura que foi cenário de uma revista na Praça Tiradentes, depois da sua morte.

Na opinião dos que o tiveram de perto, Sinhô tinha o sentido da música embora de início quase nada conhecesse teoricamente. Tocava de ouvido mas o fazia com técnica especial. Tinha um fraseado bem seu e corria o teclado com entusiasmo, gingando, como fazem hoje os pianistas de jazz e bossa-nova.

Contemporâneos seus lhe testemunham a maneira pessoal de tocar com ritmo próprio que enfeitava com fraseados característicos. Já então não era ignorante da música, pois com o tempo procurou conhecer-lhe os rudimentos, graças ao permanente contato com Eduardo Souto, diretor de gravação da Casa Edison.

Augusto Vasseur — autoridade incontestável — sempre o julgou pianista interessantíssimo pela maneira peculiar de dedilhar o teclado. Executava um choro de sua autoria com técnica fora do comum, fazendo as fusas com a mão direita em toda a última parte, dando-lhe especial vivacidade. Não era pianístico, mas curioso, e Vasseur diz que nunca viu outro pianista fazer coisa igual. Quando morreu já escrevia suas composições, embora ainda precisasse de submetê-las ao amigo Vasseur para corrigir-lhe um ou outro senso.

Como cantava regularmente, pois se a voz não era grande coisa tinha muito ritmo, gostava de fazê-lo, acompanhando-se ao piano, quando não ao violão.

Em carta a Almirante, datada de 11 de agosto de 1946, o pianista Petit também se refere ao trabalho que lhe dava escrever as composições de Sinhô, “devido ao ritmo terrível desse pianista”.

Pianeiro de prestígio, Sinhô de quando em vez recebia homenagens expressivas como a que lhe prestou o seu grande amigo Alonso Guimarães, escrivão morador na Rua Araújo Lima (Aldeia Campista). Sinhô o visitava habitualmente, de violão em punho para ‘tirar’ seus sambas. Eram freqüentes as serenatas ali, a que compareciam Sinhô, Caninha (violão), Vítor (bandolim), Salvador ‘Barraca’ Correa (pandeirista e depois autor feliz da marcha Salve Jahu), Jorge da Silva Jardim e outros mais.

Alonso, que adorava essas reuniões, a que presidia, certa vez faz uma grata surpresa a Sinhô, que ao chegar na sala do amigo encontra um piano aberto à sua espera. O dono da casa o comprara em segunda mão especialmente para que o sambista o utilizasse. (3)

Almirante também contou episódio idêntico. Certa vez, pelo Carnaval, numa batalha de confete do Catumbi, Sinhô foi especialmente convidado. Como todo carioca que se preza, era fo1ião e freqüentador das festas daquele bairro. Ao chegar à batalha foi recebido como rei, com honrarias e atenções especiais. A orquestra silenciou. Silenciaram cordões e blocos, e a multidão entusiasmada cercou o coreto onde Sinhô subiu e foi encontrar, posto à sua disposição, um piano. E por muitos instantes ficou o povo ouvindo o ‘Rei’ executar suas músicas num pitoresco bambolear de corpo.

Fato semelhante ocorreu numa pensão alegre da Avenida Mem de Sá. A dona da casa adquiriu um piano por causa de Augusto Vasseur e de Sinhô, seus assíduos freqüentadores. E à noite os surpreendeu, apresentando-lhes a nova atração (bem diferente) da casa. Os dois boêmios passaram a noitada tocando ao piano e bebericando. E as mulheres ouvindo e chorando...

Mas o piano traria também complicações a Sinhô. Foi ainda Almirante quem contou o acontecido. Era em Botafogo. Sinhô estava numa festa em casa de família distinta. Havia grande curiosidade em torno dele. Muitos o chamavam de maestro. E ele nesse tempo ainda não conhecia bem as notas, embora já fosse um bamba do teclado.

No decorrer do sarau, espevitada mocinha, vendo-o executar com desembaraço e personalidade várias composições populares, dele se aproximou com uma parte musical nas mãos e pediu-lhe que a executasse, a fim de que ela cantasse, pois a pianista sua acompanhante não viera por qualquer motivo. Sinhô empalideceu, mas não se deu por achado. Viu o título da música: Elégie, de Massenet. Pôs a parte na estante, fez menção de que ia executá-la, mas antes de ferir o teclado, olhou para a mocinha e lhe disse.

— Sinto muito, senhorita, mas não posso executar essa música. Não me dou com esse autor... (4)
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(1) Na verdade, Sinhô ao terminar o samba denominou-o A Bahia é boa terra. (2) Cantadas pelo trio Pepe-Oterito-Raul, o primeiro Francisco Pepe e o terceiro Raul Roulien, irmãos. (3) O Jornal, do Rio, 13 de dezembro de 1964. (4) O episódio é contado também na revista Weco n° 2, de dezembro de 1928 (ano I), por J. Iguassu, pseudônimo de Djalma de Vincenzi, que o dá como passado com o pianista M, bon vivant, “rapaz de boa educação e até nas horas vagas... humorista, e que sempre encontrou uma saída para tudo”. Despistamento do cronista, ou simples reprodução de invencionice? Mas, Augusto Vasseur admite a veracidade da história, da qual Sinhô teria sido de fato o protagonista. 

Fonte: "Nosso Sinhô do Samba" / Edigar de Alencar - Edição FUNARTE - Rio de Janeiro 1981.

Nosso Sinhô do Samba - Parte 1

Retrato de Sinhô, 1926.
Na era dos três oitos, ainda no Brasil monárquico, em pleno mês da primavera carioca, no dia 8 (1), numa casa modesta da rua do Riachuelo de n° 90, nasceu um menino que tomou o nome de José. Gente modesta os pais: Ernesto Barbosa da Silva, conhecido por Tené, pintor e decorador de paredes, e Graciliana Silva. Depois o menino ganhou um irmão, de nome Ernesto, apelidado Caboclo.

Pouco se sabe da infância do garoto José, que talvez a tenha vivido pelo menos até o fim do século naquela mesma rua. Em 1897, José Luís de Moraes, o Caninha (1883-1961), meninote, mais velho, com 14 anos, conheceu o menino ainda ali.

E Maria Barbosa da Silva, portuguesa, que casou com Francisco Barbosa da Silva, filho de criação do pintor Ernesto, também viu o rapazito pela primeira vez na Rua do Riachuelo. Almirante, nas suas incansáveis pesquisas pioneiras, apurou que a família de José em 1900 já residia na Rua Senador Pompeu, casa n° 114, quase esquina da Rua São Lourenço.

A essa época, Ernesto Silva queria que o filho, carinhosamente chamado Sinhô, aprendesse a tocar flauta, instrumento de prestígio que dera justa fama, entre outros, a Joaquim Antônio da Silva Calado, a Viriato Figueira da Silva e a Pattápio Silva, sem dúvida admirações do pintor. Mas o garoto não se entusiasmava e não afinava com a flauta, preferindo mil vezes empinar papagaios, brinquedo de grande animação nas ruas da Saúde. Quanto à música, a que não era infenso, apreciava bem mais o piano dos avós, no qual já exercitava. Ao tempo, o piano era presença obrigatória nas residências da classe média para cima e até mesmo em algumas de gente menos remediada. Fazia parte da mobília, tal como hoje o aparelho de televisão e era ainda sinal de distinção e prosperidade:

— É gente rica! Tem piano!

Medíocre soprador de flauta, por imposição do pai, não largara de todo o instrumento detestado quando Pixinguinha, ainda broto, o conheceu pelos fins da primeira década do novo século. Nessa altura, aos poucos, o rapaz contrariando a vontade paterna já buscava outros instrumentos. Primeiro o cavaquinho, que também trocou pelo violão, para dedicar-se com mais afinco ao piano, no qual já era notado.

Houve um tempo em que morou na casa do seu irmão de criação Francisco, que usava o mesmo sobrenome — Barbosa da Silva. Era este cabo do Corpo de Bombeiros, casado com a portuguesa Maria. Foi de Francisco que Sinhô recebeu lições de violão, pondo de lado a flauta e o flautim. Mas foi no piano, principalmente, que começou a se espalhar. Dos treinos de casa passou a aparecer em outras salas e daí em sociedades diversivas, onde foi ganhando fama, talvez um tanto pelo seu espírito boêmio e folgazão. Certo é que no fim da década inicial deste século, Sinhô já era disputado como pianista pelos modestos clubes dançantes do Centro e de alguns bairros do Rio.

Nos fins do século passado, o bairro da Saúde era reduto de costumes e usanças africanas transportadas da Bahia. Pequenas mas inúmeras famílias baianas ali se acumulavam, trazendo para o Rio hábitos da velha metrópole, com marcadas reminiscências do continente negro. Entre as quais cantigas e danças próprias, festas, comidas, ritos e crendices.

Havia nas cercanias babalaôs de fama que realizavam sambas (festas de dança) e candomblés. Eram todos conhecidos como ‘tios’ e ‘tias’. Donga relembra vários deles, entre os quais a tia Isabel, das mais respeitadas e mãe de um dos grandes raiadores do samba do partido alto — Oscar do 24 —, assim chamado por ter servido na campanha de Canudos, como integrante do 24° batalhão. Outros companheiros de Oscar eram Hilário Jovino Ferreira, o maioral, Dudu e João Câncio, todos conhecidos como reis do ‘partido alto’, raiadores afamados, isto é, cantadores da chula.

Os candomblés da casa de João Alabá, babalaô morador na Rua Barão de São Félix, eram dos mais freqüentados. Mas havia ainda os dos tios Obedê e Sami, o primeiro na Rua João Caetano, 69.

Essas reuniões, embora freqüentes, não contavam com as simpatias das autoridades, dada a confusão que, de quando em quando, geravam. Por vezes se realizavam na moita, clandestinamente, o que lhes dava talvez maior sabor e sedução.

Mais tarde, algumas dessas famílias se foram espalhando pelo Centro e pela zona chamada Cidade Nova. Na segunda década do século atual, até 1926, a Praça Onze era, no dizer de Heitor dos Prazeres, uma África em miniatura. Nas suas proximidades, na Rua Visconde de Itaúna, n° 117, morava a Tia Ciata (Hilária de Almeida), macumbeira, acatada, vinda da Rua da Alfândega para ali assentar sua tenda festiva e movimentada. (2)

Naquela rua e na Senador Eusébio, que lhe ficava paralela, e noutras adjacentes, funcionavam sociedades dançantes que mais tomavam rumoroso e festivo o local. Os sambas (danças) transbordavam dos casinholos para os quintais e ruas. Daí provavelmente surgir a Praça Onze como autêntico berço do samba (música e canto). E a casa da Tia Ciata viria a ser precisamente o local do nascimento do samba feito música. Composição melódica e não dança de grupo. Nascimento ruidoso, discutido, como sua importância exigia, pois marcaria o advento de nova e expressiva fase da música popular brasileira.

No começo da segunda década deste século, Sinhô já se tornara conhecido como músico profissional. Tocando de ouvido, figurava como pianista de modestas agremiações dançantes e carnavalescas, entre as quais o Dragão Clube Universal, do Largo do Catumbi, 6 (1910); o Grupo Dançante Carnavalesco Tome Abença a Vovó (1914), instalado na Rua Senador Eusébio, 146; o Grupo Dançante Carnavalesco Netinhos do Vovô (1915), com sede na Praça da República, 25 e depois na Praça Onze (Rua de Santana, 55) e a Sociedade D. Carnavalesca Kananga do Japão, sediada na Rua Senador Eusébio, 44. A esta última Sinhô estaria ligado afetivamente, pois o pai pertencera ao seu quadro associativo e fora o confeccionador de um dos seus estandartes.

Prova do prestígio e da popularidade do pianista são os anúncios e convites então estampados na imprensa. Havia sempre a menção do nome — Sinhô — como atração da festa. As vezes até de forma curiosa como na pub1icação do Jornal do Brasil, de 3 de julho de 1915, em que ao fim do convite-anúncio para o baile da noite na sociedade Fidalgos da Cidade Nova, com sede também na Rua Santana, 55, aparecia a informação chamariz: “Abrilhantará este o choro de cordas regido pelo exímio flautista Pexinguim e o valente cronista Sinhô Pianista.

Em 1916 e 1917, Sinhô não era só o pianista, o ‘inspirado maestro’ e o dirigente do choro que carregava seu apelido já popularizado, mas também o carnavalesco disputado e diretor geral do grupo As Sabinas da Kananga (ou Grupo das Sabinas), ala importante da Kananga do Japão.

Durante o dia, fazia ponto na Casa Beethoven, Rua do Ouvidor, n° 175. Ali acabaria igualmente ‘oficializado’ como pianista. Relacionando-se rapidamente, também de quando em vez conseguia vender um piano, defendendo a comissão. (3) No ponto estratégico, bem dentro do coração da cidade, recebia amigos e ‘clientes’ e contratava tocatas de festas e bailaricos.

Da Rua Senador Eusébio, sede da Kananga, se escapava para a casa da Tia Ciata, ou lá fazia hora para o batente noturno. Na acolhedora e movimentada casa da Rua Visconde de Itaúna havia sempre música e nas proximidades do Carnaval o reduto fervia. A dona da casa, doceira e quituteira de classe, era devotada carnavalesca, tanto quanto o marido, Henrique de Almeida, que trabalhava no Jornal do comércio.

Por ali passavam e paravam obrigatoriamente ranchos e grupos que buscavam na popularidade e no julgamento de Tia Ciata estímulos e aplausos. Tudo muito particular e muito sincero, sem programação prévia nem qualquer coisa de oficioso, pois o Carnaval até então era festa exclusivamente feita pelo povo.

Componentes diversos das festas da Saúde freqüentavam assiduamente a casa de Visconde de Itaúna, onde, na noite de 6 de agosto de 1916, foi ouvido, em meio a outras cantigas e ruídos, o refrão versejado de um improviso musical que aludia à enérgica perseguição ao jogo que então se anunciava na gestão de Aurelino Leal na chefatura de polícia. O estribilho era de João da Mata e fora composto no morro de Santo Antônio.

No samba do partido alto foram acrescentadas outras partes inclusive cantigas folclóricas como Olha a rolinha, que havia sido apresentada com sucesso no começo do ano na burleta O Marroeiro, de Catulo e Paulino Sacramento, estreada no São José a 30 de março. Essa cantiga tinha sido levada das ruas para o Clube dos Democráticos pelo Mirandela, figura destacada nas rodas do samba, e ali foi entoada e decorada pela maioria dos presentes. Na casa da Tia Ciata os versos e a melodia do Olha a rolinha juntaram-se ao improviso cantado a muitas vozes e logo batizado como Ronceiro, ou Roceiro. Os versos eram de Mauro de Almeida, repórter de A Rua e cronista carnavalesco mais conhecido pelo nome de guerra Peru dos Pés Frios.

A composição voltou a ser cantada em noites sucessivas, e, entusiasmado com o seu sucesso entre paredes, Donga, que também nela colaborara mais tarde, a registrou com o título Pelo telefone (4) e a designação de samba, feita, ao que parece, pela primeira vez. (5)

Bastante discutida a música editada e gravada pelo Baiano em disco da Casa Edison, Rio de Janeiro, obteve retumbante sucesso no Carnaval de 1917, correndo todo o Brasil:

O chefe da folia, / Pelo telefone,
Manda me avisar, / Que com alegria,
No se questione / Para se brincar.

Ai, ai, ai  / E deixa mágoas pra trás
ò rapaz,  / Ai, ai, ai
Fica triste se és capaz / E verás.
Tomara que tu apanhes
Pra não tornar a fazer isso;
Tirar amores dos outros
Depois fazer teu feitiço...

Ai, se a rolinha / sinhô, sinhô,
Se embaraçou, / sinhô, sinhô,
É que a avezinha, / sinhô, sinhô,
Nunca sambou, / sinhô, sinhô,
Porque este samba / sinhô, sinhô,
De arrepiar, / sinhô, sinhô,
Põe perna bamba, / sinhô, sinhô,
Mas faz gozar, / sinhô, sinhô.


Na época ainda nâo se falava em direito autoral e é possível que Donga se apressasse em registrar o Pelo telefone receoso de que acabasse perdido como talvez tenha ocorrido com outras improvisações do grupo. Mas não o fez sem provocar barulho. E o Jornal do Brasil, de 4 de fevereiro de 1917, estampava essa nota, depois fartamente divulgada por Almirante:

“Do Grêmio Fala Gente recebemos a seguinte nota:

Será cantado domingo, na Av. Rio Branco, o verdadeiro tango Pelo telefone, dos inspirados carnavalescos, o imortal João da Mata, o mestre Germano, a nossa velha amiguinha Ciata e o inesquecível bom Hilário; arranjo exclusivamente pelo bom e querido pianista J. Silva (Sinhô), dedicado ao bom e lembrado amigo Mauro, repórter de A Rua, em 6 de agosto de 1916, dando ele o nome de Roceiro:

Pelo telefone / A minha boa gente
Mandou me avisar / Que o meu bom arranjo
Era oferecido / Para se cantar.

Ai, ai, ai
Leve a mão à consciência / Meu bem.
Ai, ai, ai
Mas por que tanta presença / Meu bem?

Ò que caradura / De dizer nas rodas
Que este arranjo é teu! / É do bom Hilário
E da velha Ciata / Que o Sinhô escreveu.
Tomara que tu apanhes / Pra não tornar a fazer isso
Escrever o que é dos outros / Sem olhar o compromisso.


Como se vê não houve nenhum propósito do lançamento da composição como ‘samba’ na acepção nova de canto e música ou de coreografia diferente da que antes significava. E enquanto nos versos que acompanhavam a nota do Grêmio Fala Gente, feita bem ao jeitão de Sinhô, há referências a ‘arranjo’, no próprio texto da declaração aparece a palavra ‘tango’. E na letra registrada pelo Donga, a expressão ‘samba’ se refere nitidamente ao samba de roda que “põe perna bamba”.

Mas a sorte é quem decide. E o Pelo telefone ficou como marco de uma nova modalidade de composição musical e coreográfica que viria a ser a mais típica das músicas urbanas do país. Antes do surgimento de Pelo telefone, o rapazola Sinhô já compusera uma que outra polca que executava nas agremiações onde tocava. Uma delas se intitulou Kananga do Japão. (6) Não editadas nem gravadas, essas produções ficaram limitadas aos salões festivos onde surgiram.

Pelo telefone seria assim a primeira composição musical em que Sinhô colaborava fora das ruidosas fronteiras da Kananga, em cujo seio foi sempre figura importante, seguindo a tradição paterna.

O lançamento e o sucesso do primeiro samba carioca provocaram encrenca feia, gerando um dos casos mais discutidos no cenário da música no Brasil. Sinhô entrava na música brigando. E nunca mais deixaria de brigar. Embora, ressalte-se, tais brigas carecessem de maior importância como elemento negativo da personalidade do compositor.

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(1) Embora se tenha divulgado a data de 18 de setembro como do nascimento do sambista, seus parentes ainda vivos sustentam que o dia exato é 8 de setembro de 1888. (2) Falecida em 1925. (3) Informação verbal de Heitor dos Prazeres. (4) Registro n° 3.295, de 16 de dezembro de 1916. (5) Ary Vasconcelos e Mozart de Araújo afirmam que antes dc 1917 foram editadas músicas com a designação de ‘samba’. Samba roxo, p. ex. de Eduardo das Neves, traz a designação e é de 1915. (6) Muito mais tarde gravada por Altamiro Carrilho e sua Bandinha.

Fonte: "Nosso Sinhô do Samba" / Edigar de Alencar - Edição FUNARTE - Rio de Janeiro 1981.

Benício Barbosa

Benício Barbosa, cantor, iniciou a carreira artística em meados dos anos 1920. Atuou como crooner da Orquestra Típica Pixinguinha-Donga. Gravou seu primeiro disco pela Odeon em 1928, cantando o samba Vem meu bem, de Lauro dos Santos e, em dueto com H. Chaves, os sambas Teus ciúmes, de Pixinguinha e Seu Mané Luiz, de Donga, e a canção Bem-te-vi, de Casemiro Rocha.

No mesmo ano, lançou os sambas Corrente no pé, de Donga; Tu queres nota, de Francisco Rocha e Quem foi que disse, de Pixinguinha e, com H. Chaves, o jongo Sai Exu, de Donga.

Ainda em 1928, gravou uma série de discos na Parlophon com a Orquestra Típica Pixinguinha-Donga interpretando os sambas Mulher boêmia, de Pixinguinha e Lamartine Babo; Não te quero mal; Não te quero mais e Candomblé, de Dario Ferreira; Promessa, de Pixinguinha e Ranchinho desfeito, de Donga; a toada O boiadeiro e o samba Vem meu bem, de Paulo F. dos Santos e o cateretê O ema...o ema, de Dario Ferreira.

Em 1929, gravou na Odeon os sambas Não sou mais trouxa, de Pedro Cabral, e Esta nega qué casá, de José Napolitano Moringa. Nesse ano, gravou na Parlophon com a Simão Nacional Orquestra a marcha Sou da fuzarca, de Vantuil de Carvalho, e com a Orquestra Típica Pixinguinha-Donga a marcha Onde está o meu benzinho, de Ary Kerner e Jurema, de Donga e os sambas Por causa dela, de Carlos de Medeiros; Teus olhos, de Francisco da Rocha; Mulher interesseira, de Raul Silva e Abandono, de Heitor dos Prazeres. Gravou ainda a toada Zeca Ivo, homenagem de Lamartine Babo ao compositor gaúcho Zeca Ivo e o samba Por teus carinhos, de Paulo F. dos Santos, sendo acompanhando pela Hotel Itajubá Orquestra.

Gravou com aconpanhamento da Simão Nacional Orquestra em 1930, na Parlophon, os sambas Eu quero uma coisa de você, de Américo de Carvalho; Fui culpado, de Alcebíades Barcelos, e Foi na Penha, de Edgard Wanderley e as marchas Zé Bocó, de J. Fonseca Costa; Corina, de Marques da Gama e Serei feliz, de Lolô Uerba. No ano seguinte, gravou com o violonista A . F. Conceição o fado Canção transmontana, de A . F. Conceição.

Em 1932, gravou na Columbia com acompanhamento de Conjunto Típico a rancheira Nhá Ritinha, de Henrique Vogeler, e a canção Jura de cabocla, de Cândido das Neves. Gravou vinte discos pelas gravadoras Odeon e Parlophon. Teve em 2000 sua interpretação do samba Teus olhos, de Francisco Antônio da Rocha relançado pelo selo Revivendo no CD "Músicas brasileiras - volume 6".

Discografia

(1928) Teus ciúmes / Seu Mané Luiz • Odeon • 78
(1928) Vem meu bem / Bem-te-vi • Odeon • 78
(1928) Corrente no pé / Sai Exu • Odeon • 78
(1928) Tu queres nota / Quem foi que disse • Odeon • 78
(1928) Mulher boêmia / Não te quero mal • Parlophon • 78
(1928) Promessa / Não te quero mais • Parlophon • 78
(1928) O boiadeiro / Candomblé • Parlophon • 78
(1928) Ranchinho desfeito / O ema...o ema • Parlophon • 78
(1928) Veja meu bem • Parlophon • 78
(1929) Sou da fuzarca • Parlophon • 78
(1929) Onde está o meu benzinho / Por causa dela • Parlophon • 78
(1929) Teus olhos / Abandono • Parlophon • 78
(1929) Jurema / Mulher interesseira • Parlophon • 78
(1929) Zeca Ivo / Por teus carinhos • Parlophon • 78
(1929) Não sou mais trouxa / Esta nega qué casá • Odeon • 78
(1930) Eu quero uma coisa de você / Fui culpado • Parlophon • 78
(1930) Foi na Penha / Zé Bocó • Parlophon • 78
(1930) Corina / Serei feliz • Parlophon • 78
(1931) Canção transmontana • Parlophon • 78
(1932) Nhá Ritinha / Jura de cabocla • Columbia • 78

Playlist




Candomblé (1928), Carinhoso (1928), Corrente no pé (1928), Mexeriqueiro (1928), Mulher boêmia (1928), Não diga não (1928), Não te quero mais (1928), Não te quero mal (1928), O boiadeiro (1928), O ema... o ema (1928), Promessa (1928), Quem foi que disse (1928), Ranchinho desfeito (1928), Sai Exú (1928), Seu Mané Luiz (1928), Teus ciúmes (1928), Tu queres nota (1928), Vem meu bem (1928), Bem te vi (1928), Abandono (1929), Esta nega qué casá (1929), Jurema (1929), Mulher interesseira (1929), Não sou mais trouxa (1929), Onde está o meu benzinho (1929), Por causa dela (1929), Sou da fuzarca (1929), Teus olhos (1929), Foi na Penha (1930), Zé Bocó (1930), Jura de cabocla (1932), Nhá Ritinha (1932).

Bibliografia Crítica

AZEVEDO, M. A . de (NIREZ) et al. Discografia brasileira em 78 rpm. Rio de Janeiro: Funarte, 1982.

Fonte: Dicionário Cravo Albin da MPB.