Caricatura de K.lixto: O rei do Samba. |
O pianeiro ansiava por se escapar dos limites do teclado para se projetar com maior amplitude além das sociedades recreativas, cenário onde era figura de prol. Se o Pelo telefone (1916-1917) não tivesse alcançado tão grande sucesso talvez a coisa serenasse e acabasse esquecida. Mas o êxito da composição de equipe refletindo-se apenas num dos seus componentes criou o clima para a dissensão e para a desforra. Sinhô, Donga, Pixinguinha, China, Hilário e João da Baiana não ficaram inimigos pessoais. Mas começaram a guerrear-se musicalmente, o que não deixava de ser proveitoso à nascente música popular carioca.
Ainda em 1917, pelo Carnaval, sendo diretor-geral do Grupo As Sabinas da Kananga, Sinhô compôs a marcha-rancho Resposta à inveja especialmente para o grupo e como réplica à marcha Inveja, lançada pelo Bloco Quem Fala de Nós Tem Paixão. Afora uma ou outra polca que não passara das salas em que tocava, parece ter sido essa a primeira composição de Sinhô. Não editada e nem gravada. Começava assim o futuro grande compositor do Rio aparando o pião na unha. Tanto a música como os versos eram do ‘inspirado maestro’, tal qual noticiou o Jornal do Brasil, de 14 de fevereiro. Eis os versos:
Coro geral
São as baianas
Que oferecem esta canção.
Coro só
De coração.
Diretor
Aos maus-olhados
Isto não ligamos
Pois com arruda
Facilmente lhes tiramos.
Damas
E para a inveja
Temos urna figa
Feita na África
Com o bom guiné de riga.
Era o princípio e era bem o Sinhô que surgia topando paradas comprando briga e já afirmando as suas crendices e superstições. Essa marcha-rancho seria refundida e transformada no samba aparecido em fins de 1921, para o Carnaval de 1922 — Não posso me amofinar. Além da transformação rítmica Sinhô acrescentou uma estrofe talvez para justificar o título, coisa que não lhe importava muito, aliás:
Eva, qua, qua, qua
É preciso lhe explicar
Que a vida é curta
E eu no posso me amofinar.
No Carnaval de 1918, Sinhô receberia o batismo de fogo com o samba Quem são eles, sua primeira produção divulgada amplamente através de um bloco que organiza, com flauta, cavaquinho, violão, violino, trombone, pandeiro, reco-reco e ganzá. O grupo filiado ao Clube dos Fenianos tinha a mesma denominação do samba. Segundo pesquisa de Jota Efegê, foi o grupo que deu título à composição de Sinhô e não esta àquele. (1)
Sinhô quisera apenas homenagear o bloco filiado a um clube que bem o acolhia. Mas como na denominação essencialmente carnavalesca, bem ao jeito dos pufes e proclamações das três grandes sociedades, era evidente o desafio, a provocação, não somente os demais se sentiriam atingidos como também o grupo de compositores adversos, chefiado por Pixinguinha. Tanto mais que no texto do samba se falava na Bahia, ainda que com alusão às encrencas políticas da boa terra, com Rui de um lado e J. J. Seabra do outro. De qualquer forma, daí por diante se verificaria que grande parte das composições de Sinhô encerrava referências, veladas ou não, indiretas, quando não no miolo, pelo menos na cabeça, isto é, no título.
o samba Quem são eles fora antes cantarolado por Sinhô ao piano na Casa Beethoven. Possuidor de ritmo próprio e com um fraseado que o distinguia, embora nada soubesse de música, Sinhô encaixara a melodia a jeito nos versos pitorescos que em pouco tempo os presentes àquele estabelecimento cantavam gostosamente:
A Bahia é boa terra
Ela lá e eu aqui; Iaiá,
Ai, ai, ai
Não era assim que o meu bem chorava
Não precisa pedir que eu vou dar
Dinheiro não tenho mas vou sambar
Carreiro olha a canga do boi
Carreiro olha a canga do boi
Toma cuidado que o luarjá se foi
Ai! Olha a canga do boi!
Ai! Olha a canga do boi!
Na Casa Beethoven, Sinhô tinha como colega de trabalho a pianista Cecília, sua admiradora e mais tarde sua companheira. A moça instou para que o novo autor entregasse o samba para a casa editá-lo, o que conseguiu com algum trabalho. Cecília exerceu grande influência na carreira do compositor. O músico nato teve assim a ajuda valiosa de uma Cecília, que não era nenhuma santa, mas foi sua protetora por algum tempo.
Muito interessante a edição da Casa Beethoven da parte musical de Quem são eles? O desenho é curioso (figura ao lado). Um sujeito encartolado, bem vestido, de luva, dentro de um barco solitário que vaga serenamente com a bandeira dos Fenianos no mastro. Perto um negro grita por socorro, como se estivesse a morrer afogado. O cartola nem como coisa. Tudo muito ingênuo.
Bem divulgado pelo bloco feniano, o samba alcança retumbante sucesso no Carnaval de 1918, estendendo-se por todo o Brasil. Era a vez de Sinhô.
A música buliçosa e os versos misturando sertão com política agradariam em cheio e seriam repetidos nos carnavais subseqüentes das províncias, onde chegavam ainda que retardados, levados por viajantes ou pelas chapas da Casa Edison, Rio de Janeiro. Além dos gramofones que martelavam o samba, correu vários Estados um filme musicado — Carnaval cantado — que reproduzia sambinhas, cateretês e marchas de sucesso na grande festa carioca de 1918: Quem são eles?, Vamo, Maruca, vamo, A Carta que te mandei, etc. Essas músicas eram geralmente transmitidas com o filme nos cinemas, ou executadas ao piano, nas sessões infantis. A criançada e a juventude presentes faziam coro ruidoso e mais se popularizavam as composições. (2)
E o já conhecido pianeiro das sociedades da Cidade Nova daí por diante figuraria em definitivo no cancioneiro popular do Brasil.
A denominação do samba parecera indireta (muito direta) à turma do Pixinguinha que topou a provocação. Donga replicou com outro samba — Fica calmo que aparece. Hilário também contraditou com o seu Não és tão falado assim. E finalmente Pixinguinha e China lhe deram mais agressiva resposta com o samba Já te digo:
Um sou eu
E o outro eu já sei quem é
Ele sofreu
Para usar colarinho em pé.
Vocês não sabem quem é ele
Mas eu lhes digo
Ele é um cabra feio
E fala sem receio
E sem medo ao perigo.
Ele é alto, magro e feio
E desdentado
Ele fala do mundo inteiro
No Rio de Janeiro.
No tempo em que tocava flauta
Que desespero
Hoje ele anda janota
A custa dos trouxas
Do Rio de Janeiro.
o retrato físico era cruel, mas não falso. Sinhô que trajava com certo esmero e usava chapéu Randal (tipo Gelot) era desdentado, o que não lhe causava maior vexame, embora lhe originasse o cacoete de levar instintivamente a mão à boca quando ria, para disfarçar um pouco a derrocada dentária. Sendo vaidoso e não desleixado, pode-se avaliar o pavor que lhe inspiravam os dentistas...
Compositor autenticamente carioca, Sinhô buscou na Bahia motivação para várias das suas composições, umas de exaltação outras de crítica, mas de qualquer forma destacando sempre a boa terra. Principalmente nos primeiros anos da sua atividade de compositor, quando no eram poucos no Rio os compositores baianos ou descendentes. Daí ciumadas e daí revides. Sinhô aparecera no seu primeiro samba repetindo ironicamente o dito:
A Bahia é boa terra
ela lá e eu aqui.
E mais tarde viria com Fala meu louro (1920), saborosa sátira ao grande Rui, uma das suas admirações:
A Bahia não dá mais coco
Para botar na tapioca
Pra fazer o bom mingau
Para embrulhar o carioca.
Papagaio louro
Do bico dourado
Tu falavas tanto
Qual a razão que vives calado
Não tenhas medo
Coco de respeito
Quem quer se fazer não pode
Quem é bom já nasce feito
Com muito espírito, o sambista carioca mexia com o senador baiano, mas a referência à Bahia iria esquentar novamente os ânimos. Os brios dos baianos autênticos ou folheados se julgaram ofendidos. Além do mais, o samba fora acusado de plágio. Hilário, baiano legítimo, chamado o bom Hilário, um dos maiorais da colônia e prestigioso carnavalesco, pôs a bondade de lado e espinafrou o sambista, acusando-o de plagiário e desafiando-o com um samba de versos bem feitos. Aquela indireta de a Bahia não dar mais coco não devia ser somente com o genial político mas principalmente com os sambistas da boa terra radicados no Rio. Assim era o poema-revide de Hilário no samba Entregue o samba a seus donos:
Entregue o samba a seus donos
É chegada a ocasião
Lá no Norte no fazemos
Do pandeiro profissão.
Falsos filhos da Bahia
que nunca pisaram lá,
que não comeram pimenta
na moqueca e vatapá,
mandioca mais se presta
muito mais que tapioca.
Na Bahia não tem mais coco
Ë plágio de um carioca.
Pedro Paulo, outro autor do tempo, também pulou na arena defendendo os baianos no samba Olé:
Todo mundo faz um samba
Eu também quero fazer
Mas dizer que é na Bahia,
Olé
Não pode ser
A Bahia é boa terra
Já não dá mais coco!
Não! Quem quiser tudo saber erra,
Olé
É toleirão
Pelo saco tudo passa
Basta falar em iaiá
Mas um sambinha sem graça,
Olé
Não vem de lá.
Sinhô não se atordoou com a grossa pancadaria, pois em 1921, no samba Sempre voando, etiquetado pelo autor como ‘puro samba’, afigura-se espantado de haver ‘pai-de-santo’ na Bahia:
Já descobri meu bem
Coisa que causa espanto
Na Bahia tem, tem
Gente que é pai-de-santo.
Se o sambista pagava alto pelo seu constante voltar-se para os motivos na Bahia, também não perderia jamais o ensejo de fazer sua provocaçãozinha. De quando em vez o fazia. Ainda em 1927, tanto tempo decorrido, o Correio da Manhã de 16 de janeiro publica uma versalhada de J. B. Silva sob o título Carioca, com dedicatória a Cícero de Almeida:
Não penses que eu vou fugir
Às quadras do teu sentir
Pois quero de novo rir!
Com teu modo de carpir
o teu sertão a zunir
A tua terra a tinir
A baianada a mentir
Pois quero de novo rir!
Do coco que está partido
Da cobra já sem perigo
Do chumbo derretido
Da cascavel sem abrigo
Do teu sertão a zunir
Da terra ouca (sic) a tinir
Da baianada a mentir
Pois quero de novo rir.
Rima em abundância e endereço certo...
Músico nato, Sinhô deu nítida preferência ao piano. Talvez porque na casa do avô houvesse um. Mas, afora o piano (que não podia ser removido), adorava o violão, seu companheiro de deambulações boêmias e ao qual demonstrava carinho enternecido. Certo é que o caboclo poderia tocar qualquer instrumento popular desde que se lhe dedicasse de alma e coração. Passou pela flauta, pelo flautim e pelo cavaquinho. Foi ao piano que conseguiu maior prestígio. Em 1910, já é pianista querido do Dragão Clube Universal (do Catumbi), que nos anúncios de bailes fazia constar: “O nosso pianista será o Sr. J. Silva (Sinhô), o conhecidíssimo chorão das molecas chorosas”.
o superlativo e a piada dizem bem da popularidade já conquistada pelo então simplesmente J. Silva. A citação do nome e apelido do pianista nos anúncios e convites era motivo de atração, daí não ser omitida.
Pianista será mais tarde do Grupo Dançante Carnavalesco Tome Abença a Vovô, do Grupo Dançante Carnavalesco Netinhos do Vovô, da Kananga do Japão etc. E é dedilhando um teclado que aparece na famosa caricatura de K.lixto, com a coroa de Rei do Samba, que tanto deveria pesar na cabeça dos outros. Caricatura que foi cenário de uma revista na Praça Tiradentes, depois da sua morte.
Na opinião dos que o tiveram de perto, Sinhô tinha o sentido da música embora de início quase nada conhecesse teoricamente. Tocava de ouvido mas o fazia com técnica especial. Tinha um fraseado bem seu e corria o teclado com entusiasmo, gingando, como fazem hoje os pianistas de jazz e bossa-nova.
Contemporâneos seus lhe testemunham a maneira pessoal de tocar com ritmo próprio que enfeitava com fraseados característicos. Já então não era ignorante da música, pois com o tempo procurou conhecer-lhe os rudimentos, graças ao permanente contato com Eduardo Souto, diretor de gravação da Casa Edison.
Augusto Vasseur — autoridade incontestável — sempre o julgou pianista interessantíssimo pela maneira peculiar de dedilhar o teclado. Executava um choro de sua autoria com técnica fora do comum, fazendo as fusas com a mão direita em toda a última parte, dando-lhe especial vivacidade. Não era pianístico, mas curioso, e Vasseur diz que nunca viu outro pianista fazer coisa igual. Quando morreu já escrevia suas composições, embora ainda precisasse de submetê-las ao amigo Vasseur para corrigir-lhe um ou outro senso.
Como cantava regularmente, pois se a voz não era grande coisa tinha muito ritmo, gostava de fazê-lo, acompanhando-se ao piano, quando não ao violão.
Em carta a Almirante, datada de 11 de agosto de 1946, o pianista Petit também se refere ao trabalho que lhe dava escrever as composições de Sinhô, “devido ao ritmo terrível desse pianista”.
Pianeiro de prestígio, Sinhô de quando em vez recebia homenagens expressivas como a que lhe prestou o seu grande amigo Alonso Guimarães, escrivão morador na Rua Araújo Lima (Aldeia Campista). Sinhô o visitava habitualmente, de violão em punho para ‘tirar’ seus sambas. Eram freqüentes as serenatas ali, a que compareciam Sinhô, Caninha (violão), Vítor (bandolim), Salvador ‘Barraca’ Correa (pandeirista e depois autor feliz da marcha Salve Jahu), Jorge da Silva Jardim e outros mais.
Alonso, que adorava essas reuniões, a que presidia, certa vez faz uma grata surpresa a Sinhô, que ao chegar na sala do amigo encontra um piano aberto à sua espera. O dono da casa o comprara em segunda mão especialmente para que o sambista o utilizasse. (3)
Almirante também contou episódio idêntico. Certa vez, pelo Carnaval, numa batalha de confete do Catumbi, Sinhô foi especialmente convidado. Como todo carioca que se preza, era fo1ião e freqüentador das festas daquele bairro. Ao chegar à batalha foi recebido como rei, com honrarias e atenções especiais. A orquestra silenciou. Silenciaram cordões e blocos, e a multidão entusiasmada cercou o coreto onde Sinhô subiu e foi encontrar, posto à sua disposição, um piano. E por muitos instantes ficou o povo ouvindo o ‘Rei’ executar suas músicas num pitoresco bambolear de corpo.
Fato semelhante ocorreu numa pensão alegre da Avenida Mem de Sá. A dona da casa adquiriu um piano por causa de Augusto Vasseur e de Sinhô, seus assíduos freqüentadores. E à noite os surpreendeu, apresentando-lhes a nova atração (bem diferente) da casa. Os dois boêmios passaram a noitada tocando ao piano e bebericando. E as mulheres ouvindo e chorando...
Mas o piano traria também complicações a Sinhô. Foi ainda Almirante quem contou o acontecido. Era em Botafogo. Sinhô estava numa festa em casa de família distinta. Havia grande curiosidade em torno dele. Muitos o chamavam de maestro. E ele nesse tempo ainda não conhecia bem as notas, embora já fosse um bamba do teclado.
No decorrer do sarau, espevitada mocinha, vendo-o executar com desembaraço e personalidade várias composições populares, dele se aproximou com uma parte musical nas mãos e pediu-lhe que a executasse, a fim de que ela cantasse, pois a pianista sua acompanhante não viera por qualquer motivo. Sinhô empalideceu, mas não se deu por achado. Viu o título da música: Elégie, de Massenet. Pôs a parte na estante, fez menção de que ia executá-la, mas antes de ferir o teclado, olhou para a mocinha e lhe disse.
— Sinto muito, senhorita, mas não posso executar essa música. Não me dou com esse autor... (4)
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(1) Na verdade, Sinhô ao terminar o samba denominou-o A Bahia é boa terra. (2) Cantadas pelo trio Pepe-Oterito-Raul, o primeiro Francisco Pepe e o terceiro Raul Roulien, irmãos. (3) O Jornal, do Rio, 13 de dezembro de 1964. (4) O episódio é contado também na revista Weco n° 2, de dezembro de 1928 (ano I), por J. Iguassu, pseudônimo de Djalma de Vincenzi, que o dá como passado com o pianista M, bon vivant, “rapaz de boa educação e até nas horas vagas... humorista, e que sempre encontrou uma saída para tudo”. Despistamento do cronista, ou simples reprodução de invencionice? Mas, Augusto Vasseur admite a veracidade da história, da qual Sinhô teria sido de fato o protagonista.
Fonte: "Nosso Sinhô do Samba" / Edigar de Alencar - Edição FUNARTE - Rio de Janeiro 1981.