Sem conhecer a Bahia, detestava o "grupo baiano", contituído, entre tantos, por Pixinguinha, China e Heitor. Mas tinha verdadeiro pavor por maus-olhados e por outros feitiços de origem africana. Mesmo assim fez várias músicas nesse tema e apadrinhado por Catulo da Paixão, fez versos rebuscados em canções sertanejas. É Sinhô, o rei do Samba!
A Bahia e suas tradições, suas lendas e crenças, seus dengues, suas comidas foram sempre motivo de encantamento de poetas e escritores, de artistas e seresteiros. Todos os brasileiros temos filial carinho pela velha Bahia, "berço da nacionalidade", terra de grandes homens, de figuras da dimensão de Rui e Castro Alves.
É curioso registrar que o nascimento do samba carioca ocorreu no Rio, mas em 'território baiano', isto é, no meio das baianas e babalaôs da praça Onze e adjacências. E nunca mais a Bahia se dissociaria da música popular, notadamente do bom samba carioca.
Antes, já a velha Província ou as baianas apareciam nas cantigas. Ernesto de Souza, dos primeiros compositores populares do Rio (carioca nato), fixou nas suas cançonetas o tipo da mulata da boa terra. "A Mulata da Bahia", uma das suas produções mais divulgadas, acabou sendo sucesso do Carnaval de 1904:
A mulata da Bahia
Não tem osso, é carne só
Sapateia noite e dia
Em qualquer forrobodó.
Sinhô, um dos pioneiros do samba e talvez o seu mais importante fixador, embora carioca legítimo, talvez pelo seu permanente contato com a baianada oriunda da autêntica, encontrou na Bahia, que não conhecia, e nos seus costumes motivação para muitas das suas composições. Quando começa a aparecer como pianista e compositor, nos últimos anos da primeira década do século XX, a música popular do Rio era representada pelas composições dançantes — polcas, valsas e maxixes — a maioria sem versos, e pelas modinhas seresteiras e cançonetas brejeiras.
Os meios que frequenta e onde já se destaca como músico são os das pequenas agremiações diversivas, de títulos curiosos ou extravagantes espalhadas pela cidade, notadamente no Centro, bairros modestos e alguns subúrbios. O forte dessas sociedades são empregadas domésticas e operários, com predomínio dos negros. A praça Onze, a Saúde, as ruas transversais à Central do Brasil (Estação Pedro II) eram no dizer de Heitor dos Prazeres "uma África em miniatura". As casas das tias e babalaôs, como já vimos, se tornaram redutos de sambas (danças) de ritos afro-brasileiros e hábitos da Bahia. Sinhô ali se familiariza e faz amigos.
Naturais seriam as impregnações a que não poderiam fugir as suas composições do ponto de vista melódico como temático. Ademais, o caboclo carioca era de sensibilidade aguda, voltada para o misticismo. Um crente no poder e nas forças dos ritos africanos para aqui transplantados.
Já na sua primeira composição conhecida, a marcha-rancho "Resposta à inveja" (1917), não editada e nem gravada com a forma inicial, (1) réplica do Grupo As Sabinas da Kananga, de que era diretor, à marcha "Inveja" do Bloco Quem Fala de Nós Tem Paixão, demonstra a sua convicção místico-religiosa e, consequentemente, o pendor para a Bahia ou para as baianas, que a partir do século XX foram sempre ponto alto no Carnaval carioca:
São as baianas
Que oferecem esta canção
De coração
Aos maus-olhados
Isto não ligamos
Pois com arruda
Facilmente lhe tiramos
E para a inveja
Temos uma figa
Feita na África
Com o bom guiné de riga.
Por aí se vê bem o temperamento do compositor que surgia enfrentando os maus-olhados com arruda e figa feita na África com guiné de Riga (2) e comprando briga ...
Não obstante a declaração — 'não ligamos aos maus-olhados', Sinhô tinha verdadeiro pavor dos olhos maus dos seus circunstantes. Em "Alivia estes olhos" (1920). 'samba médio', segundo a sua classificação, voltava ao motivo:
Alivia estes olhos pra lá
Que ainda ontem fui me rezar
Tenho medo deste olhar
Que procura-me a vida atrasar.
Esqueçamos a colocação do pronome do último verso, com sabor quinhentista, e nos detenhamos na do segundo verso, com a expressiva forma reflexiva do verbo rezar. O mesmo emprego pronominal desse verbo dentro do linguajar curandeiro aparece no samba "Já-já", de 1924.
Credo cruz
Vá se rezar
Para tirar
Este azar.
Já anteriormente, em 1920, no samba "Vou me benzer (As Criaturas)", o medo dos maus olhos é fixada no estribilho:
Vou me benzer
Para me livrar
Destes maus olhos
Que querem me botar.
Não há dúvida de que a atenção do compositor carioca aos temas baianos vinha muito das suas crenças. Sinhô gostava dos motivos afro-brasileiros e foi grande amigo de Assumano, a quem submetia previamente seus sambas e marchas, como se dele procurasse uma bênção para o sucesso. Em sua bagagem musical figuram composições de nítida inspiração africana ou baiana: "Ai ué dendê: Bofé Pamim Dge" (batuque africano); "Burucuntum"; "Macumba"; "Maitaca"; "Ojaré"; "Oju Burucu"; o citado "Vou me benzer" etc, etc.
Não era à toa que o sambista frequentava Assumano. Em "Oju Burucu" (1925), por ele designado como batucado (ou batucada), o poemeto é esquisito mas expressivo:
Quem eu quero bem
Me atira aos venenos
O mundo é assim
É assim mais ou menos.
Assu, Amadeu
Assu, Amadeu
Assu, Amadeu
Assu, Amadeu.
Cosi incantô
Ju Oju-Burucu
Cosi incantô
Ju Oju-Burucu.
O misticismo do sambista do Rio é patente ainda na letra simples de muitas outras produções, nas quais se mostra voltado para as crendices, rezas e exorcismos. Nem sempre são os deuses africanos os invocados pelo compositor, que mesmo nos instantes de enlevo amoroso, de paixão mal correspondida, está sempre a imprecar e a proferir nomes de santos em meio a votos e juras:
A malandragem eu não posso deixar
Juro por Deus e Nossa Senhora
É mais certo ela me abandonar
Meu Deus do Céu! Que maldita hora! ...
No samba "Macumba", quando lançou o termo Gegê, o compositor afirma ainda uma vez não ter medo de feitiço porque tem um bom santo. Esse samba teria sido composto logo após o rompimento do autor com Cecília.
Em 1928, com o samba "Tesourinha", voltaria Sinhô a referir-se ao seu guia:
É loucura procurares
Minha estrela derrubar
O guia que Deus me deu
Só ele me pode tirar.
Essa estrofe é repetição com pequena variante de frase do samba "Quem fala de mim tem paixão", etiquetado pelo autor como 'samba universal' ...
No samba-choro "A Medida do Senhor do Bomfim", novamente há referência a um guia sacrossanto, apresentado, aliás com certo pernosticismo, à Catulo:
Enquanto a verdade
No mundo existir
Será morta a falsidade
Ao sorrir destes invejosos
Que não cansam de fingir
Que gostam da gente
Sem terem maldade
Eis o prisma transcendente
Da real fatalidade
Que traduz a saudade.
Até parece que o sambista se transviou do roteiro, mas ele se encontra para falar no principal:
Mas eu tenho um guia sacrossanto
Que conduz-me à luz do Ser!
Tanto que ganhei na Bahia
Uma caixinha de marfim
Para me valer
Meu anjo de guarda
Com seu manto me ensina
Tudo quanto sei dizer
A pura medida bela e santa
Do Sagrado Coração do Senhor do Bonfim.
O sambista não tinha preferências nem era exclusivista em matéria de religião. Cria igualmente nos santos da Igreja Católica que invocaria de quando em vez. Como na canção brasileira "Confissão" (1927), de versos catulanos, nos quais mistura seus enlevos de apaixonado e súplicas aos céus:
Em esplendor
iluminando um sonhador
que sem cessar
pedindo vem ao Criador
rogando preces valiosas ao Senhor!
No santo templo junto à cruz
do Bom Jesus
pedindo só
por teu amor.
Repetidas são as suas invocações a santos, ao Santo Deus, `Santa Cruz, à Nossa Senhora, ao Redentor, inclusive numa de suas mais famosas produções -- o samba "Jura":
Jura, jura, jura
pelo Senhor
Jura pela imagem
da Santa Cruz do Redentor!
Quanto à Bahia, depois da marcha-rancho inicial de sua carreira de compositor popular, teria sempre destaque na sua inspiração. Umas vezes exaltando, outras criticando ou pilheriando, mas de qualquer forma pondo em relevo a boa terra. No seu primeiro samba de sucesso — "Quem são eles?" — (1918), já a Bahia despontava; ainda que o sambista lhe fizesse a restrição pilhérica:
A Bahia é boa terra
ela lá e eu aqui.
Depois viria "Fala meu louro", saborosa sátira ao grande Rui que era uma das suas admirações, como de todo o Brasil:
A Bahia não dá mais coco
Para botar na tapioca
Pra fazer o bom mingau
Para embrulhar o carioca.
Também não são poucos os apelos de Sinhô aos motivos folclóricos ou campesinos. Gostava mesmo de misturá-los, como era hábito então dos compositores que se iam abeberar nas fontes populares notadamente do Norte brasileiro. No mencionado samba "Quem são eles?", a segunda parte é puramente folclórica:
Carreiro, olha a canga do boi
Carreiro, olha a canga do boi
Toma cuidado que o luar já se foi
Ai! Olha a canga do boi!
Ai! Olha a canga do boi!
Dessa fase inicial são várias as composições em linguajar caipira, sem maior importância como o samba "Disse me disse" (1919):
Capineiro marvado
Não capina capina aí
O capinzal é de meu bem
Onde canta a juriti
Juvená, Juvená
Arrebata esta faca
Juvená
Torna a rebatê
Juvená
Que isto não é má
Juvená.
Foclore adaptado é o poemeto de "Cada um por sua vez" (1920), lembrando "Casinha da bambuê, coberta de bambuá":
Casinha de sapê
Forrada do bambuá
Cercadinha de capim cheiroso (bis)
Para mim e meu bem morá
Ai ué, ai ué, ai ué, ai ué, ai ué, ai ué (bis)
Ai uá.
Samba meu bem
Que eu sambo também
Esta casa é tua
E mais ninguém.
Só tenho medinho
Do marruá
Que uma chifrada
Nos venha dá.
Porteira de imbaubá
Tramela da bambuí
O número é um ninho
Rodeado de bem-te-vi
Ai ué, ai ué, ai ué
Ai ué, ai ué, ai ué
Carioca da gema, nascido no centro da cidade, o sambista aqui e ali procurava o cenário do campo, do sertão. Em "Volta à palhoça" (3), samba de 1926, para o Carnaval de 1927, assim começa:
Ó Gegê
Tenho uma casa de palha
Quando tiveres saudade
Vá visitar a canalha.
Depois do convite bem carioca com aquele "canalha" significando graciosamente a família, os versos líricos:
Fica pertinho da grota
Dentro das matas sem falha
Esta vivenda amorosa
Onde o amor se agasalha.
Em cada canto da casa
Pendurei uma esperança
E os dizeres são estes:
Quem espera sempre alcança.
Sem nos determos nas extravagâncias gramaticais de Sinhô, que nunca lhe comprometeram as glórias de artista do povo, vale a pena observar a sua pretensão ou talvez ingenuidade: o seu beijo é 'beijinho', há uma 'linda flor' nos seus ais; suas preces ao Criador são 'valiosas'. Dedicando a canção-cateretê "Alegrias de caboclo" (1927) a Nair Moreira, usa a expressão "à minha feliz companheira". Essa composição tem versos bonitos, embora malcuidados:
Caboclo não tem tristeza
Ai! ai! meu bem
São traços da natureza
Ai! ai! meu bem.
Faz da manhã poesia
Do dia uma sinfonia
Da tarde rude harmonia
Da noite rica alegria.
Perdulário da rima nessa estrofe, o poeta continua mais sóbrio quanto à forma, ainda que eloquente na imagística:
Das folhas secas que caem
Faz a fogueira do amor
E do clarão que provém
Faz sua prece de dor.
Das suas mais belas composições é "Sabiá", de 1928:
Sabiá, sabiá cantou na mata
E anunciou chiu, chiu
No melhor da minha vida
Meu amor fugiu.
Procurei me aproximar
Do sabiá encantador
Que sentindo o meu pisar
Fez tal e qual o meu amor.
..........................
"Canção roceira" (1920), "Bem-te-vi" (1925), "Sonho de gaúcho" (1922) são outras composições nas quais Sinhô procurava intervalar os motivos do asfalto. Embora valham mais pela melodia, provam pelo menos a versatilidade do sambista carioca ...
(1) Depois editada com alterações, sob o título "Não posso me amofinar" (1921-1922); (2) Apesar do "r" minúsculo, parece se tratar de Riga, grande empório de madeiras de lei; (3) Na edição da parte musical a crase não aparece.
Fonte: "Nosso Sinhô do Samba" / Edigar de Alencar - Edição FUNARTE - Rio de Janeiro 1981.
quinta-feira, julho 24, 2014
terça-feira, julho 08, 2014
Ouvindo Alda Verona
"O ideal do cantor de rádio é perpetuar a sua voz no disco. A gravação encerra o desejo do público em tê-lo permanentemente a mão, sem depender da programação do rádio, das perturbações atmosféricas que nas longas distâncias dificultam a audição do astro e das mil e uma dificuldades consequentes da transitoriedade da irradiação.
A gravação, enfim é a consagração do artista, a meta da sua carreira e, quando ele não tem personalidade bastante para garantir o prestígio, o seu fim. O disco, ou populariza definitivamente ou mata o artista.
A cotação enorme de Francisco Alves, Carmen Miranda, Sílvio Caldas ou Almirante, foi produzida mais pelo disco do que pelo microfone. Entre os artistas brasileiros mais beneficiados pela gravação acha-se Alda Verona, elemento veterano do nosso rádio ao qual pertence desde os seus primórdios.
Interpretando um gênero altamente simpático, que é o da canção que não sendo totalmente popular também não é absolutamente pertencente à espécie fina, Alda Verona consegue, mercê da sua bela voz e de sua excelente dicção, tornar interessante qualquer melodia que interprete, por mais ingênua que seja a sua composição. A artista que aqui focalizamos hoje tem a inteligência de escolher para as suas gravações, não somente as páginas de música bonita mas também aquelas cujas palavras sejam de molde a produzirem no ouvinte um máximo de sugestão.
Suas gravações são notáveis de romantismo.
Voltando agora de Pernambuco, onde esteve pela segunda vez especialmente contratada para cantar na PRA-8, Alda Verona esteve em nossa redação.
— É sempre agradável rever o meu querido Rio de Janeiro, embora o Norte seja lindo e todo ele pitorescamente cheio de cor local. Mas o Rio é uma cidade única, insuperável. As paisagens cariocas têm o dom maravilhoso de não se tornarem vistas demais, mesmo por aqueles que a contemplam durante toda vida. Sempre morei à beira-mar, percorrendo diariamente a zona que liga Copacabana à cidade: descubro todos os dias um encanto novo, uma nova tonalidade luminosa nos aspectos panorâmicos que me maravilham há tanto tempo.
— Quais as suas impressões sobre Pernambuco artístico?
— Pernambuco como todo o Norte brasileiro, faz por te garantir no conceito que todo o país forma das suas possibilidades intelectuais. Por isso produz sempre, conseguindo o seu "desideratum".
— Musicalmente? ...
— Autores que escrevem para o gênero que interpreto são inúmeros no Norte, e todos interessantes. Mas é mister citar os dois de minha preferência, cujos nomes já estão sendo divulgados no Rio: os pernambucanos Nelson Ferreira e Waldemar de Oliveira; são dois artistas cuja inspiração é das mais ricas. Trago para o Rio, integrando o meu repertório, algumas produções desses pernambucanos inteligentes. Possivelmente gravarei essas lindas canções do Norte, proporcionando-lhes a divulgação que merecem.
— No Brasil quais os compositores que prefere?
— Joubert e Sivan.
— E fora do Brasil?
— Os compositores de opereta que é o gênero musical de minha preferência. A opereta a gente não sabe perfeitamente se é um espetáculo exclusivamente musical, ou teatral ou coreográfico. Porque reúne em si todas essas formas de arte da maneira mais evidente. Jamais trabalhei no teatro, mas se o fizesse seria cantando operetas.
— Como começou no rádio?
— No tempo da velha Rádio Sociedade. Minha professora Eloísa Mastrangiolli, costumava cantar periodicamente ao microfone daquela estação; não digo contratada, porque naquele tempo não eram pagos os artistas de rádio, pois as estações, incipientes, não tinham verba para tanto; os dias iniciais do nosso rádio foram feitos com o sacrifício de muitos. Mas devo contar como comecei no rádio. Eloísa Mastrangiolli, tendo fixado um programa à última hora, não pode executá-lo porque adoeceu subitamente. Solicitou-me o auxílio e eu cantei no seu lugar. Cantei e continuei cantando até hoje. No rádio fui, também, "speacker", me encarregando de diversos programas.
— Como começou a gravar?
— Minha voz, muito própria para o microfone, chamou a atenção dos técnicos que me convidaram para gravar. Venho de cantar para a fábrica Odeon uma série de discos que servirão especialmente para propagar a música brasileira no estrangeiro. E fico contente por saber que assim posso ser de utilidade para o Brasil.
E nós também, porque sabemos perfeitamente que a divulgação melhor de nosso país é feita mais pelos elementos artísticos que pelos diplomáticos. A diplomacia é convencional e a arte é humana."
Fonte: "Carioca" — revista semanal, de 28/8/1937.
A gravação, enfim é a consagração do artista, a meta da sua carreira e, quando ele não tem personalidade bastante para garantir o prestígio, o seu fim. O disco, ou populariza definitivamente ou mata o artista.
A cotação enorme de Francisco Alves, Carmen Miranda, Sílvio Caldas ou Almirante, foi produzida mais pelo disco do que pelo microfone. Entre os artistas brasileiros mais beneficiados pela gravação acha-se Alda Verona, elemento veterano do nosso rádio ao qual pertence desde os seus primórdios.
Interpretando um gênero altamente simpático, que é o da canção que não sendo totalmente popular também não é absolutamente pertencente à espécie fina, Alda Verona consegue, mercê da sua bela voz e de sua excelente dicção, tornar interessante qualquer melodia que interprete, por mais ingênua que seja a sua composição. A artista que aqui focalizamos hoje tem a inteligência de escolher para as suas gravações, não somente as páginas de música bonita mas também aquelas cujas palavras sejam de molde a produzirem no ouvinte um máximo de sugestão.
Suas gravações são notáveis de romantismo.
Voltando agora de Pernambuco, onde esteve pela segunda vez especialmente contratada para cantar na PRA-8, Alda Verona esteve em nossa redação.
— É sempre agradável rever o meu querido Rio de Janeiro, embora o Norte seja lindo e todo ele pitorescamente cheio de cor local. Mas o Rio é uma cidade única, insuperável. As paisagens cariocas têm o dom maravilhoso de não se tornarem vistas demais, mesmo por aqueles que a contemplam durante toda vida. Sempre morei à beira-mar, percorrendo diariamente a zona que liga Copacabana à cidade: descubro todos os dias um encanto novo, uma nova tonalidade luminosa nos aspectos panorâmicos que me maravilham há tanto tempo.
— Quais as suas impressões sobre Pernambuco artístico?
— Pernambuco como todo o Norte brasileiro, faz por te garantir no conceito que todo o país forma das suas possibilidades intelectuais. Por isso produz sempre, conseguindo o seu "desideratum".
— Musicalmente? ...
— Autores que escrevem para o gênero que interpreto são inúmeros no Norte, e todos interessantes. Mas é mister citar os dois de minha preferência, cujos nomes já estão sendo divulgados no Rio: os pernambucanos Nelson Ferreira e Waldemar de Oliveira; são dois artistas cuja inspiração é das mais ricas. Trago para o Rio, integrando o meu repertório, algumas produções desses pernambucanos inteligentes. Possivelmente gravarei essas lindas canções do Norte, proporcionando-lhes a divulgação que merecem.
— No Brasil quais os compositores que prefere?
— Joubert e Sivan.
— E fora do Brasil?
— Os compositores de opereta que é o gênero musical de minha preferência. A opereta a gente não sabe perfeitamente se é um espetáculo exclusivamente musical, ou teatral ou coreográfico. Porque reúne em si todas essas formas de arte da maneira mais evidente. Jamais trabalhei no teatro, mas se o fizesse seria cantando operetas.
— Como começou no rádio?
— No tempo da velha Rádio Sociedade. Minha professora Eloísa Mastrangiolli, costumava cantar periodicamente ao microfone daquela estação; não digo contratada, porque naquele tempo não eram pagos os artistas de rádio, pois as estações, incipientes, não tinham verba para tanto; os dias iniciais do nosso rádio foram feitos com o sacrifício de muitos. Mas devo contar como comecei no rádio. Eloísa Mastrangiolli, tendo fixado um programa à última hora, não pode executá-lo porque adoeceu subitamente. Solicitou-me o auxílio e eu cantei no seu lugar. Cantei e continuei cantando até hoje. No rádio fui, também, "speacker", me encarregando de diversos programas.
— Como começou a gravar?
— Minha voz, muito própria para o microfone, chamou a atenção dos técnicos que me convidaram para gravar. Venho de cantar para a fábrica Odeon uma série de discos que servirão especialmente para propagar a música brasileira no estrangeiro. E fico contente por saber que assim posso ser de utilidade para o Brasil.
E nós também, porque sabemos perfeitamente que a divulgação melhor de nosso país é feita mais pelos elementos artísticos que pelos diplomáticos. A diplomacia é convencional e a arte é humana."
Fonte: "Carioca" — revista semanal, de 28/8/1937.
sábado, julho 05, 2014
O novo Hekel Tavares
"Hekel chegou ao Rio, vindo do Norte, na mais extrema falta de recursos. Aqui o vemos, numa foto raríssima, feita nos dias duros: costurando seu único par de meias ..." (Carioca, 7/8/1937) |
Hekel (1) Tavares, embora possuindo um nome exótico, incompatível com a sua personalidade eminentemente bugra, conseguiu esse máximo de cotação que é o não ter a lhe preceder o nome um sisudo "senhor", um prosaico "seu", um pedante "Dr." ou um conspícuo "maestro".
E a nossa gente foi tão longe com ele, nesse particular, que esqueceu-lhe até o sobrenome Tavares, numa simbólica manifestação de camaradagem; títulos e sobrenome, na opinião popular brasileira, são coisas convencionais; por isso a gente toda, numa solução genial, trata o notável compositor simplesmente por Hekel. De que, é o "Banzo"? Ora, é do Hekel ... Era só o que faltava que o "Banzo" fosse do senhor maestro Hekel Tavares ...
Um senhor maestro só produz ruidosos “operões” que o povo esquece. Afinal, quanto nome esquecido, de gente que no Brasil, como no estrangeiro, produziu massudas e arquivadas partituras cheias de "dós" incrivelmente agudíssimos e "fás" absurdamente graves? São nomes que a gente só encontra nos dicionários, devidamente acompanhados de títulos pomposos. Mas ninguém sabe se Mozart era nobre ou se Bach era doutor. Já ouviram falar em maestro Mozart ou maestro Bach? Nunca. Apenas e colossalmente em Mozart e Bach. Esta simplificação é tudo, esse desrespeito é a adoração.
Pois é do Hekel que nos ocuparemos hoje. Do Hekel herói. Desse Hekel que teve valor bastante para abdicar de uma situação excepcional no cenário artístico de nosso país, enveredando por uma trilha bem diversa daquela que ele seguia cheio de celebridade e das vantagens materiais que a celebridade produz. Há dois anos que o autor de "Sussuarana" não lançava nenhuma novidade. Não fosse a popularidade imensa alcançada pelas suas produções anteriores, cujas tiragens foram a alguns milhares e esses dois anos de reclusão teriam sido a morte do Hekel compositor.
Teria ele desistido da música?
Não se explicava de outra maneira o su silêncio, porque a sua inspiração sempre foi proverbial pela perenidade; seus cento e três trabalhos impressos atestam um labor constante.
Mas ele não desistira da música; apenas e simplesmente ele se dedicara todo à música, àquela cuja fatura demanda sacrifício mas produz coisas colossais como a cultura popular e a formação da nacionalidade. Hekel, que vinha apresentando ao público do Brasil os diamantes brutos das nossas melodias cuidou durante esses dois anos, de burilá-los, apresentando-os de maneira definitiva e tendente a torná-los conhecidos em todo o mundo. O seu trabalho de vinte e quatro meses redundou nesse sucesso estrondoso que foi "André de Leão e o Demônio de Cabelo Encarnado", suíte sinfônica baseada em poema de Cassiano Ricardo. Essa partitura, que foi gravada por iniciativa do autor, está sendo muito ouvida na Europa; na Alemanha já cogitam de editá-la em língua nacional e jornais de toda a Europa referem-se elogiosamente à música, colocando o seu autor entre os grandes músicos sul-americanos.
Desejoso de tornar conhecido dos nossos leitores o novo Hekel, procuramo-lo em sua residência, onde ele estava imerso nos preparativos para o lançamento de uma novidade sensacional: um livro para a iniciação musical das crianças! Nesse livro Hekel expõe da maneira mais simples e concreta os mesmos elementos formadores da enfadonha "artinha", que é o espantalho de todos os garotos destinados à aprendizagem da arte dos sons. Exemplos pitorescos incutem nas mentes infantis as normas da teoria musical, nesse curioso trabalho cujos direitos autorais acabam de serem registrados nos países europeus e na América do Norte.
Uma das páginas do livro representa a construção do pentagrama e os tangarás que simbolizam as sete notas musicais. |
— O sucesso do método está no resultado que se pode obter tendo como objetivo a memória visual da criança.
Cenas de colorido forte — continua Hekel — ilustram uma pequena historieta através da qual, sem que a criança a aperceba, lhe são ministrados conhecimentos básicos de teoria musical.
Nos vários testes que fiz com crianças de idades diversas, pude observar a facilidade de assimilação.
Inicialmente, Zilo, o pretinho sabido, forma com o auxílio das linhas telegráficas um pentagrama no espaço, e os tangarás passam a ter os nomes das notas que vão sendo colocadas nos lugares respectivos.
Explicado os nomes das sete notas, o negrinho, que é o pivô da pequena novela, apresenta o "General Sol" e a sua função no pentagrama.
Note que apesar de se tratar da figurinha de um general, a clave de Sol está perfeitamente desenhada. Assim, dentro de um argumento pitoresco, a criança fica conhecendo os sinais e o que eles representam.
Depois que os lugares das notas estão bem fixados, os pássaros e o general desaparecem para dar lugar a um pentagrama normal com a clave e as semibreves, cujo valor é explicado no capítulo de divisão.
Contudo, como se trata de distrair a criança o mais possível, os nomes das notas são lembrados com um objeto que comece com a mesma sílaba. Veja que o "fá", na 5a. linha tem, ao lado, uma faca, o "sol", tem um soldado, e assim por diante.
Na divisão do compasso de 4 tempos, cujo número inteiro é uma semibreve, está representada por uma laranja. Não divido uma semibreve, divido uma laranja!
Nos diversos testes que fiz os resultados foram sempre coroados de êxito — finaliza Hekel.
— Quem é o editor?
— Eu mesmo. A percentagem dos editores elevaria por demais o preço do exemplar. Por isso resolvi fazer eu mesmo a impressão, a fim de torná-la acessível a bolsos humildes.
— Diga-nos algo sobre os seus atuais trabalhos de composição.
— Atualmente trabalho uma rapsódia nordestina, que apresentarei brevemente com coreografia a cargo do célebre bailarino Francis. Este meu trabalho terá, como complemento orquestral, a colaboração de vozes humanas sem palavras. Fixa diversos aspectos da vida nordestina e desenvolve sobre temas regionais interessantíssimos. Será uma afirmação bem categórica de nossa riqueza musical. Além dessa rapsódia tenho planejados diversos trabalhos que obedecerão às normas que estabeleci. A nossa riqueza folclórica impõe-se ao compositor a obrigação de divulgá-la universalmente, o que importa num trabalho muito sério que nem sempre é aceito pelo povo, mas que é o único que influi sobre o seu progresso mental, forçando-o à compreensão das manifestações de arte verdadeira.
Despedimo-nos de Hekel, criatura rara, que acima de seus interesses pessoais coloca os interesses populares e os da arte."
Nota: (1) Na revista, escrito "Heckel".
Fonte: Revista semanal "Carioca", de 7/8/1937 (artigo atualizado para o nosso português) — Foto e figura extraídas dessa edição.
domingo, junho 29, 2014
Neiva Gomes e a paixão pelo tango
— "O tango (1) argentino é grande, mas o samba é maior" — Palavras de Neiva Gomes (2) a CARIOCA.
"A gente lê nos olhos de Neiva Gomes a nostalgia das coxilhas gaúchas. Eles são grandes, e límpidos; parecem espelhar a imensidão verde dos pampas. Sua voz sugere o falar lento e compassado dos peões que pelas noites frias rio-grandenses ocupam sob as estrelas, contando coloridamente os "causos", entre um pedaço vigoroso de churrasco e uma cuia de chimarrão "bom e amargo como a vida".
Neiva nasceu em Porto Alegre e aos cinco anos de idade já deliciava os seus com a interpretação dos sambas e marchas da época. Foi com essa idade que ela se apresentou em público pela primeira vez e com grande sucesso, no Teatro Municipal de sua terra. Depois continuou na carreira clássica das meninas que cantam: participava de festivais beneficentes, cantava em reuniões comemorativas de aniversários familiares, etc.
Essa peregrinação pelo vários ambientes ouvintes foi a grande escola de Neiva Gomes. Ela teve como professor de estilo todo o público rio-grandense, esse público de alma lírica por excelência.
Por isto, por ter formado seu espírito musical entre os gaúchos, Neiva é uma cantora popular diferente de outras cantoras populares que atuam no Rio. O samba, na sua voz, ganha uma inflexão singular que, sem macular a graça original do seu ritmo, lhe produz mesmo um certo enriquecimento. É um samba mais dolente, como se fosse cantado pela sanfona (3), que é o instrumento característico dos campeiros sulinos.
A grande e atávica paixão que Neiva sente pelo tango argentino, gênero musical cheio de afinidades com o folclore gaúcho, será, também, uma das causas desse gracioso retardamento no tempo desse "samba gaúcho". Neiva Gomes é uma apaixonada do tango argentino mas sobretudo adora a nossa música.
— O tango argentino — disse-nos ela — é uma das músicas que mais gosto. Ele deve refletir fielmente a psicologia do povo irmão, tanto me impressiona. Tem um ritmo que permite ao cantor uma quase criação de movimento; o "bandoneón", na sua voluptuosa elasticidade, é a imagem material do tango; ele é mais plasmável que qualquer outra dança. Considero-o como um gênero de música mais aristocrática que popular.
O samba e a marcha — continua — são mais do povo; à vivacidade do movimento devem a sua colossal popularidade. Um só dos elementos formadores dessas músicas, o ritmo, é o fator principal dessa coisa absoluta que se chama Carnaval Carioca. A gente suburbana, armada de caixas de charutos, latas de querosene e chapéus de palha forma orquestras puramente rítmicas, de uma riqueza extraordinária, malgrado a ausência da melodia. Reunida esta ao ritmo, temos então a dança brasileira que não sei explicar porque ainda não é a mais usada em todo o mundo, tal o seu poder sugestivo de movimentação coreográfica.
— Quais os outros gêneros musicais que aprecia?
— Não há música feia, quando ela, sendo popular, reflete essa coisa sagrada que é a alma dos povos. Por isso gosto da música de todo o mundo, que é uma espécie de consciência universal. Sinto, porém, que sou uma cantora popular; admirando imensamente os gêneros musicais chamados "sérios", não posso executá-los porque me falta o virtuosismo vocal indispensável.
— Já tem cantado em outros lugares do Brasil, além do seu estado natal e do Rio?
— Sim. Já cantei em Minas Gerais. Ainda não tive oportunidade para cantar em São Paulo, o que muito desejo.
E porque Neiva além de ser um ótima cantora é uma criatura bonita, perguntamos:
— Por que ainda não entrou para o cinema?
— Falta de ocasião. Eu gostaria imenso de figurar em uma fita.
Donde se conclui que se esta entrevista não tivesse (mas tem) nenhum interesse, teria esse, notável: o de apontar aos nossos diretores cinematográficos um elemento que no Brasil prestigiaria a sétima arte."
Notas: (1) O termo “tango” não é exclusivo de um ritmo que veio da Argentina e tomou conta do mundo a partir dos anos 1920. Há tangos e “tanguinhos” brasileiros, de autores, como por exemplo, de Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá. Daí a expressão “o tango argentino” neste artigo de 1937; (2) Infelizmente, ainda não possuo dados suficientes para publicar uma biografia sobre essa linda cantora gaúcha; (3) “Sanfona” foi o termo usado erroneamente pelo repórter. No Sul do Brasil são usadas, para este instrumento, as palavras “acordeom”, “acordeona” ou “gaita”.
Fonte: Revista semanal "Carioca", de 31/07/1937.
"A gente lê nos olhos de Neiva Gomes a nostalgia das coxilhas gaúchas. Eles são grandes, e límpidos; parecem espelhar a imensidão verde dos pampas. Sua voz sugere o falar lento e compassado dos peões que pelas noites frias rio-grandenses ocupam sob as estrelas, contando coloridamente os "causos", entre um pedaço vigoroso de churrasco e uma cuia de chimarrão "bom e amargo como a vida".
Neiva nasceu em Porto Alegre e aos cinco anos de idade já deliciava os seus com a interpretação dos sambas e marchas da época. Foi com essa idade que ela se apresentou em público pela primeira vez e com grande sucesso, no Teatro Municipal de sua terra. Depois continuou na carreira clássica das meninas que cantam: participava de festivais beneficentes, cantava em reuniões comemorativas de aniversários familiares, etc.
Essa peregrinação pelo vários ambientes ouvintes foi a grande escola de Neiva Gomes. Ela teve como professor de estilo todo o público rio-grandense, esse público de alma lírica por excelência.
Por isto, por ter formado seu espírito musical entre os gaúchos, Neiva é uma cantora popular diferente de outras cantoras populares que atuam no Rio. O samba, na sua voz, ganha uma inflexão singular que, sem macular a graça original do seu ritmo, lhe produz mesmo um certo enriquecimento. É um samba mais dolente, como se fosse cantado pela sanfona (3), que é o instrumento característico dos campeiros sulinos.
A grande e atávica paixão que Neiva sente pelo tango argentino, gênero musical cheio de afinidades com o folclore gaúcho, será, também, uma das causas desse gracioso retardamento no tempo desse "samba gaúcho". Neiva Gomes é uma apaixonada do tango argentino mas sobretudo adora a nossa música.
— O tango argentino — disse-nos ela — é uma das músicas que mais gosto. Ele deve refletir fielmente a psicologia do povo irmão, tanto me impressiona. Tem um ritmo que permite ao cantor uma quase criação de movimento; o "bandoneón", na sua voluptuosa elasticidade, é a imagem material do tango; ele é mais plasmável que qualquer outra dança. Considero-o como um gênero de música mais aristocrática que popular.
O samba e a marcha — continua — são mais do povo; à vivacidade do movimento devem a sua colossal popularidade. Um só dos elementos formadores dessas músicas, o ritmo, é o fator principal dessa coisa absoluta que se chama Carnaval Carioca. A gente suburbana, armada de caixas de charutos, latas de querosene e chapéus de palha forma orquestras puramente rítmicas, de uma riqueza extraordinária, malgrado a ausência da melodia. Reunida esta ao ritmo, temos então a dança brasileira que não sei explicar porque ainda não é a mais usada em todo o mundo, tal o seu poder sugestivo de movimentação coreográfica.
— Quais os outros gêneros musicais que aprecia?
— Não há música feia, quando ela, sendo popular, reflete essa coisa sagrada que é a alma dos povos. Por isso gosto da música de todo o mundo, que é uma espécie de consciência universal. Sinto, porém, que sou uma cantora popular; admirando imensamente os gêneros musicais chamados "sérios", não posso executá-los porque me falta o virtuosismo vocal indispensável.
— Já tem cantado em outros lugares do Brasil, além do seu estado natal e do Rio?
— Sim. Já cantei em Minas Gerais. Ainda não tive oportunidade para cantar em São Paulo, o que muito desejo.
E porque Neiva além de ser um ótima cantora é uma criatura bonita, perguntamos:
— Por que ainda não entrou para o cinema?
— Falta de ocasião. Eu gostaria imenso de figurar em uma fita.
Donde se conclui que se esta entrevista não tivesse (mas tem) nenhum interesse, teria esse, notável: o de apontar aos nossos diretores cinematográficos um elemento que no Brasil prestigiaria a sétima arte."
Notas: (1) O termo “tango” não é exclusivo de um ritmo que veio da Argentina e tomou conta do mundo a partir dos anos 1920. Há tangos e “tanguinhos” brasileiros, de autores, como por exemplo, de Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá. Daí a expressão “o tango argentino” neste artigo de 1937; (2) Infelizmente, ainda não possuo dados suficientes para publicar uma biografia sobre essa linda cantora gaúcha; (3) “Sanfona” foi o termo usado erroneamente pelo repórter. No Sul do Brasil são usadas, para este instrumento, as palavras “acordeom”, “acordeona” ou “gaita”.
Fonte: Revista semanal "Carioca", de 31/07/1937.
quinta-feira, junho 26, 2014
Muraro: o tango e o foxtrote
Considerações sobre o tango e o fox a propósito do espírito nacional — Eriberto Muraro fala ao semanário "Carioca" de julho de 1937.
"No Brasil o tango argentino e o foxtrote gozam de um prestígio imenso e permitem classificar duas psicologias opostas: a sentimental e a dinâmica. Menina olheirenta e com predisposições suicidas é, seguramente, fã de Carlos Gardel e dos mais narradores de tragédias em gíria portenha posta em clave de sol.
O tango contém pessimismo bastante para deliciar qualquer cidadão que julgue ter um inferno no peito; e cavalheiro metido à triste por força há de sussurrar ou não, seu "Portero suba e digale", com inflexões que de sombrias farão inveja a um cipreste.
No Rio o tango é música iminentemente suburbana porque o subúrbio tem um vida mais trágica, ditada pela pobreza da sua população; o calor suburbano também será uma das razões do prestígio dessa música de ritmo arrastado e dolente, perfeitamente realizável sob 40 graus à sombra; a limitação urbana da zona interior da cidade e suas feiuras que somente Lima Barreto conseguiria tornar pitorescas, são coisas que obrigam as moças presas no largo do Meyer ou nos passeios de Cascadura a uma evasão para os terrenos da fantasia que a temperatura torna mórbida.
O foxtrote, por sua vez, é a canção predileta dos mais favorecidos pela vida; dos que habitam as praias cuja esportividade não permite ideias soturnas; o banho de sol, tônico maravilhoso, realiza o milagre do "mens sana in corpore sano", o fox é saudável e vigoroso, mais concorde, portanto, com a esportividade marítima; é dançado por gente vestida apenas de maiô, em terraços ensolarados, ao som de uma vitrola portátil standard.
Já o tango só é concebível se bailado com longos e fatais vestidos negros, sob meias-luzes sugestivas. Senhoritas de Copacabana que cantem tangos destoa no seu meio, assim como menina de Cascadura que tente seu "inglesinho" fílmico será olhada como sirigaita pelas suas cerebrais companheiras de subúrbio.
É lógico, pois, que com tamanha influência sobre o público, essas duas danças estrangeiras criassem em nosso meio radiofônico, que é o meio mais eficiente de divulgação, grande número de executores, uns autênticos pela nacionalidade, outros indígenas, mas tão fieis como os primeiros.
No Brasil a maior autoridade em música típica argentina é Muraro, músico inteligente e trabalhador, que se acha radicado em nossa terra.
CARIOCA o procurou, cônscia de interessar os seus leitores com as palavras do chefe da "muchachada" da Mayrink Veiga.
Muraro fala com o sotaque castelhano e diz "blagues" estupendas ao mesmo tempo que revela uma cultura geral incomum nos músicos, gente que em matéria de preparo é unilateral. Eis suas palavras:
— Nasci na Argentina e quando criança apanhei sovas memoráveis. Meus pais, indignados contra a aversão que eu demonstrei pela música, a carreira que me destinavam. Positivamente a chinelada é um argumento poderoso porque hoje não deixarei a música nem o pão ... Estudo várias horas por dia e o piano é a minha vida.
— Como veio para o Brasil?
— Dedicando-me a harmonização de temas folclóricos de todo o mundo, principalmente da América do Norte. Aqui chegando, há quatro anos, fui absorvido pela imensa riqueza da música brasileira, que hoje é uma das coisas que mais merecem a minha atenção. Os motivos melódicos deste populário são de uma universalidade incomum na produção musical de outros países. Juntou à graciosidade da melodia um ritmo que atrai notavelmente; um movimento novo como a terra do qual é filho.
As possibilidades da música brasileira — continua Muraro — só podem ser devidamente apreciadas por quem, como eu, se dedica ao desenvolvimento orquestral de pequenos temas. Perco-me, às vezes, dentro da riqueza enorme desses motivos, ofuscado pelas suas exuberâncias. Porque eu sou visceralmente músico e porque o Brasil é principalmente um país musical (mais que agrícola) ... Eu amo esta terra como se ela fosse a minha; quando sair daqui levarei a intenção de propagar as suas riquezas no Exterior e de voltar tão pronto quanto for possível. A propósito: tenho em mira a realizar brevemente uma excursão artística pela América do Norte, onde farei executar uma série de composições brasileiras, o que me faz prever um grande sucesso. As músicas brasileiras do sul e do norte são irmãs extraviadas; da sua fusão resultará algo gigantesco e digno desta maravilhosa América.
E Eriberto Muraro, que dá uns ares de Bing Crosby, se despediu levando consigo a inteligência e o bom-humor, qualidades que são suas inseparáveis companheiras."
Fonte: Revista semanal Carioca, edição 92, de 24/7/1937.
segunda-feira, junho 23, 2014
Bidu Reis na Rádio Nacional
"Se viéssemos dizendo que Edila Luiza Reis é uma pequena muito interessante, os leitores ficariam intrigados. Porque tal nome é estranho ao noticiário dos jornais.
Basta, todavia, uma simples explicação de nossa parte, para que tudo entre na linha e o bonde siga o seu destino: Edila Luiza é o nome que Bidu Reis recebeu um dia na pia batismal, quando ainda não sabia falar e muito menos cantar.
Diante de um caso desses, nos ocorre, naturalmente, uma outra pergunta: qual a razão que levaria uma garota que tem um nome tão bonito a adotar um pseudônimo?
A melhor resposta seria dar de ombros, fazendo uma careta de profunda incompreensão, como costumava fazer aquele "seu" Barata que Joraci Camargo incrustou no "Deus lhe pague" ...
De todos os modos, não há a negar a influência benéfica do nome numa carreira artística. O cinema, o rádio e o teatro estão de cheios de exemplos dessa natureza. Mesmo os literatos não têm resistido no fascínio de trocar de nome ... Hollywood universalizou a fórmula, possuindo nos seus estúdios uma porção de indivíduos cuja função consiste em rebatizar os novos artistas.
Quando dizíamos que Bidu Reis é uma garota bem interessante, esta afirmação está acima de qualquer dúvida.
Com Marília Batista e Regina Coeli, ela forma um trio de primeira linha. Canta, toca gaita e sapateia ... Certa vez, num programa de auditório, desacatou os maiores "gaiteiros" que andam por aí ... E como sapateia bem! (É uma pena não estar a televisão bem difundida).
Bidu Reis não é caloura no Rádio. Já fez com Emilinha Borba, na Rádio Mayrink Veiga, uma dupla que é relembrada com saudades.
Atualmente é um dos elementos da Rádio Nacional, e, no programa dominical da Luiz Vassalo, ela vem obtendo um grande sucesso.
Durante a ausência de Dalva de Oliveira, que fora ao Paraná em excursão com o Trio de Ouro, Bidu ficou fazendo o famoso gritinho do lero-lero, grito que tanta sensação tem causado na Cidade Maravilhosa.
Bidu Reis é, como vimos, uma artista "comme il faut". Interpretando canções americanas, como componente de um conjunto, gritando o lero-lero, ela sabe dar às suas criações uma boa dose de sua arte, da sua alegria sadia e moça."
Fonte: Revista semanal "Carioca", de 31/01/1942.
Basta, todavia, uma simples explicação de nossa parte, para que tudo entre na linha e o bonde siga o seu destino: Edila Luiza é o nome que Bidu Reis recebeu um dia na pia batismal, quando ainda não sabia falar e muito menos cantar.
Diante de um caso desses, nos ocorre, naturalmente, uma outra pergunta: qual a razão que levaria uma garota que tem um nome tão bonito a adotar um pseudônimo?
A melhor resposta seria dar de ombros, fazendo uma careta de profunda incompreensão, como costumava fazer aquele "seu" Barata que Joraci Camargo incrustou no "Deus lhe pague" ...
De todos os modos, não há a negar a influência benéfica do nome numa carreira artística. O cinema, o rádio e o teatro estão de cheios de exemplos dessa natureza. Mesmo os literatos não têm resistido no fascínio de trocar de nome ... Hollywood universalizou a fórmula, possuindo nos seus estúdios uma porção de indivíduos cuja função consiste em rebatizar os novos artistas.
Quando dizíamos que Bidu Reis é uma garota bem interessante, esta afirmação está acima de qualquer dúvida.
Com Marília Batista e Regina Coeli, ela forma um trio de primeira linha. Canta, toca gaita e sapateia ... Certa vez, num programa de auditório, desacatou os maiores "gaiteiros" que andam por aí ... E como sapateia bem! (É uma pena não estar a televisão bem difundida).
Bidu Reis não é caloura no Rádio. Já fez com Emilinha Borba, na Rádio Mayrink Veiga, uma dupla que é relembrada com saudades.
Atualmente é um dos elementos da Rádio Nacional, e, no programa dominical da Luiz Vassalo, ela vem obtendo um grande sucesso.
Durante a ausência de Dalva de Oliveira, que fora ao Paraná em excursão com o Trio de Ouro, Bidu ficou fazendo o famoso gritinho do lero-lero, grito que tanta sensação tem causado na Cidade Maravilhosa.
Bidu Reis é, como vimos, uma artista "comme il faut". Interpretando canções americanas, como componente de um conjunto, gritando o lero-lero, ela sabe dar às suas criações uma boa dose de sua arte, da sua alegria sadia e moça."
Fonte: Revista semanal "Carioca", de 31/01/1942.
sexta-feira, junho 20, 2014
Figuras de cartaz: Dilu Melo
"Outro dia eu vi Dilu Melo na Mayrink Veiga. Estava dentro de um cubículo aprendendo uma canção que a Sylvinha lhe ensinava. As duas possuem os olhos pequeninos, tem Melo no sobrenome, cantam no rádio, e se dedicam a gêneros semelhantes.
— Aquela é a Dilu — me disseram.
— Aquela? — perguntei espantado.
Achei a cantora do folclore minúscula demais. Tão minúscula quanto os olhos microscópicos de Sylvinha Mello. Pela vidraça eu a via cantar mas não ouvia coisa alguma. Dilu lá dentro parecia um peixinho num aquário abrindo e fechando a boca. Sylvinha, por exemplo, era um peixinho maior. O piano parecia uma espécie de baleia e o pianista o domador da baleia.
Daí a pouco a folclorista saiu e passou por junto a mim meio apressada. Em cima do seu chapéu preto havia uma peninha para atrapalhar. Saiu miudinha, ligeirinha, nervosinha e lá se foi pelo meio do povo. A peninha qual um periscópio, localizava-a onde estivesse.
Quis me aproximar dela, conversar um pouco, lhe perguntar a idade, o lugar de nascimento, as mais recentes composições de sua lavra, a distância que vai entre os dois vizinhos que são o cimo de sua cabeça e o solado dos seus pés, tive vontade de lhe perguntar uma porção de coisas para poder traçar, nestas mal traçadas linhas, modéstia à parte, sua caricatura.
Mas me disseram que Dilu quando encontra alguém, gosta muito de conversar. E nessa conversa mostra todas as suas recentes composições, inclusive as de parceria com os Santos Meira. E não mostra, apenas. Vai mais longe. Canta, esteja onde estiver, uma por uma, todas as modinhas e peças lembrando a musa de sua terra, o Maranhão. O interlocutor pode lhe ponderar, manso:
— Mas você tenha paciência, Dilu. Eu não posso lhe ouvir agora. Tenho que sair logo para um encontro marcado ...
E ela, procurando tranquilizar o ouvinte:
— Espere um pouco. Escute somente essas dezoito canções que eu fiz ontem de um fôlego só ...
O meu informante acrescentou:
— Se você que falar com ela, fale logo hoje que é melhor.
— É melhor por que?
Explicou-me:
— Diariamente a Dilu compõe umas vinte a trinta músicas. E a pessoa com quem ela conversar terá de ouvir tudo quanto foi composto durante a semana. Hoje é terça-feira e ainda há pouca coisa preparada, sem falar na produção do mês anterior ... Melhor é lhe ser apresentado agora do que daqui a seis meses. Se você quer, podemos aproveitar. Aí vem a artista ...
Respondi:
— Não. Deixa ... Teria muito prazer em conhece-la porque afinal a pequena é inteligente, canta com agrado e escreve umas composições deliciosas. Mas acontece que eu agora tenho um encontro marcado e não posso ..."
Fonte: "Carioca" — Edição 90, de 10/7/1937 — Caricaturas: Escrita por Theofilo de Barros e desenhada por Augusto Rodrigues
— Aquela é a Dilu — me disseram.
— Aquela? — perguntei espantado.
Achei a cantora do folclore minúscula demais. Tão minúscula quanto os olhos microscópicos de Sylvinha Mello. Pela vidraça eu a via cantar mas não ouvia coisa alguma. Dilu lá dentro parecia um peixinho num aquário abrindo e fechando a boca. Sylvinha, por exemplo, era um peixinho maior. O piano parecia uma espécie de baleia e o pianista o domador da baleia.
Daí a pouco a folclorista saiu e passou por junto a mim meio apressada. Em cima do seu chapéu preto havia uma peninha para atrapalhar. Saiu miudinha, ligeirinha, nervosinha e lá se foi pelo meio do povo. A peninha qual um periscópio, localizava-a onde estivesse.
Quis me aproximar dela, conversar um pouco, lhe perguntar a idade, o lugar de nascimento, as mais recentes composições de sua lavra, a distância que vai entre os dois vizinhos que são o cimo de sua cabeça e o solado dos seus pés, tive vontade de lhe perguntar uma porção de coisas para poder traçar, nestas mal traçadas linhas, modéstia à parte, sua caricatura.
Dilu nasceu em Viana/MA, em 25/9/1913 |
— Mas você tenha paciência, Dilu. Eu não posso lhe ouvir agora. Tenho que sair logo para um encontro marcado ...
E ela, procurando tranquilizar o ouvinte:
— Espere um pouco. Escute somente essas dezoito canções que eu fiz ontem de um fôlego só ...
O meu informante acrescentou:
— Se você que falar com ela, fale logo hoje que é melhor.
— É melhor por que?
Explicou-me:
— Diariamente a Dilu compõe umas vinte a trinta músicas. E a pessoa com quem ela conversar terá de ouvir tudo quanto foi composto durante a semana. Hoje é terça-feira e ainda há pouca coisa preparada, sem falar na produção do mês anterior ... Melhor é lhe ser apresentado agora do que daqui a seis meses. Se você quer, podemos aproveitar. Aí vem a artista ...
Respondi:
— Não. Deixa ... Teria muito prazer em conhece-la porque afinal a pequena é inteligente, canta com agrado e escreve umas composições deliciosas. Mas acontece que eu agora tenho um encontro marcado e não posso ..."
Fonte: "Carioca" — Edição 90, de 10/7/1937 — Caricaturas: Escrita por Theofilo de Barros e desenhada por Augusto Rodrigues
quarta-feira, junho 18, 2014
Alvarenga, Ranchinho e Capitão Furtado
"O Capitão Furtado juntamente com Ranchinho e Alvarenga constitui um magnífico terceto que interpreta o nosso folclore em todas as suas manifestações. São paulistas e em São Paulo iniciaram suas carreiras que no entretanto somente tiveram pleno desenvolvimento no Rio, graças à grande simpatia que conseguiram conquistar do público carioca.
Ranchinho e Alvarenga cantam textos que o "capitão" Furtado escreve, com músicas do nosso enorme populário melódico.
Os três simpáticos, com a maneira de falar peculiar à população do interior paulista, estiveram em nossa redação falando de suas viagens por "este sertão do mundo" e das maravilhas que o entusiasta de nossa gente lhes tem proporcionado:
— Trabalhando juntos há três anos, estreando ao microfone da Rádio São Paulo, onde conseguimos bastante sucesso. Já havíamos trabalhado bastante nos palcos do interior, onde nos saturamos gostosamente de caipirismo que tem sido a nossa felicidade -- começou Ranchinho.
— Comecei como sobrinho de Cornélio Pires (meu nome é Ariovaldo Pires), e acabei sendo "capitão" Furtado, o que talvez seja uma consequência desse meu parentesco ... — disse o autor da célebre cantiga de viola, "Circuito da Gávea".
— Nós três — disse Alvarenga — trabalhamos de comum acordo, de maneira a concentrar num só trabalho a boa vontade do trio. O "capitão" Furtado é um homem que tem grandemente desenvolvida a compreensão de oportunidade; explora os assuntos na "horinha"; eu, com Ranchinho, faço a adaptação dos versos e um dos nossos números, motivos musicais, copiando tanto quanto possível o estilo caipira.
— Nunca se dedicaram à outro gênero de música? — perguntamos.
E a resposta veio, sincera e comovente:
— Nunca. O senhor compreende: existe muita música bonita neste mundo, mas a que cantamos é tudo para nós. Nascemos para cantar as coisas caboclas como quem nasce para deputado, para barbeiro ou fazer doce de coco ... Temos o jeitinho, que é quese ou totalmente uma predestinação. Cantar outra coisa que não fosse modas de viola seria uma traição à nossa cidadezinha do interior paulista. Imagine que barbaridade se eu cantasse, em dueto, com Ranchinho, uma parte de "La Forza del Destino"! ... Também não seria possível, porque o Furtado não colaboraria ...
Era evidentíssimo que Alvarenga estava com a razão. Por isso fizemos outra pergunta:
— Pretendem trabalhar no cinema?
— Sim, como em qualquer lugar onde não tenhamos que deixar de lado a nossa sinceridade. O cinema ou o rádio, coisas tão modernas, acatam plenamente as coisas antigas que cantamos e isto nos parece muito significativo da essência pura que encerram as nossas músicas. Além disso, nós somos artistas do povo e para o povo, e ao cinema, como o rádio, soluciona a questão do nosso contato com o imenso público. Já temos posado para os testes cinematográficos, com sucesso. Esperamos uma proposta para trabalharmos em filmes.
— Gostam do Rio?
— É a primeira cidade do mundo. Nunca imaginamos que numa cidade como esta, moderníssima, aparentemente saturada de foxtrotes, tangos e outros produtos estrangeiros, a simplicidade dos nossos cantores e a ingenuidade de nossas anedotas tivessem uma repercussão tão grande. Os aplausos que temos recebido do público carioca nos identifica ainda mais com a alma popular.
— Por que o "capitão" Furtado não publica um livro com as coisas que escreve?
— Eu estudo neste momento um plano para a publicação de um volume, o que aliás, é minha velha ideia. Será intitulado "Lá vem mentira!" e o público decidirá o seu conteúdo."
Fonte: "Carioca" — Edição 89, de 3/7/1937
Figuras de cartaz: Orlando Silva
"Orlando Silva é um nome da Rádio Nacional, de renome internacional. Sua fama de intérprete da voz macia já voou célere por todo o Brasil e foi até as capitais platinas onde também há mulheres sonhadoras capazes de compreender que o samba é o presidente da República da música popular. E nessas questões presidenciais Orlando Silva é o homem. Principalmente quando entra o voto feminino.
Diversos empresários platinos tem tentado atrair o popular cantor com propostas vantajosas. Mas ele é de opinião que não há vantagem maior que espalhar canções de amor nos ouvidos dos cariocas. Elas se grudam, deslumbradas, aos alto-falantes e o artista aumenta seu prestígio dia a dia.
Quando a noite sobe o arranha-céu de "A Noite" e vai cantar entre as estrelas, olha as luzes do Rio e as luzes dos olhos das cariocas através da vidraça grande do estúdio da PRE-8 e sente que não pode abandonar, assim, os velhos amores.
Diz aos empresários argentinos:
— "Depois nós conversamos ..."
Passa-se o tempo e nunca chega o "depois". Nem o artista está preocupado que chegue.
Orlando é um dos novos do rádio que mais abalam o prestígio dos antigos. Num instante venceu. Suas primeiras gravações imediatamente despertaram as atenções gerais. As mulheres disseram logo, suspirando:
— "Meu Deus, que voz! ..."
E os homens invejosos:
— "É ... Esse rapaz promete ..."
Vieram os sucessos. A popularidade. A fama. O prestígio. As pequenas deram para o apontar na rua:
— "Olhe, mamãe, aquele é o Orlando Silva ..."
E o samba ganhava mais um intérprete brilhante:
O cantor mergulha sua voz na expressão. Os versos saem transfigurados. Adquirem calor, vida, fulgor. A melodia ganha um poder de beleza capaz de fazer uma noiva séria telefonar para a Sociedade Rádio Nacional e dizer:
— "Pergunte ao Orlando Silva se ele quer me conhecer amanhã, à tarde ..."
Qualquer mocinha e qualquer solteirona distinguem sua sua voz dentre mil. Para elas o "speaker" pode até deixar de anunciar. Sabem a hora exata dos programas em que o cantor aparece, conhecem as suas criações mais recentes e finalmente os números que contam com maior simpatia.
Enquanto isso cresce o prestígio de Orlando Silva.
Há muita jovem sonhadora que à noite "não está em casa" para o namorado mas apenas para ficar enlevada junto ao receptor ouvindo embevecida as palavras de amor que o artista sabe tão bem pronunciar envolvidas na música nostálgica.
E as mulheres geralmente são tão sensíveis que quando escutam uma canção sentimental esquecem até o seu amor ..."
Fonte: "Carioca" — Edição 89, de 3/7/1937 — Caricaturas: Escrita por Theofilo de Barros e desenhada por Augusto Rodrigues
Diversos empresários platinos tem tentado atrair o popular cantor com propostas vantajosas. Mas ele é de opinião que não há vantagem maior que espalhar canções de amor nos ouvidos dos cariocas. Elas se grudam, deslumbradas, aos alto-falantes e o artista aumenta seu prestígio dia a dia.
Quando a noite sobe o arranha-céu de "A Noite" e vai cantar entre as estrelas, olha as luzes do Rio e as luzes dos olhos das cariocas através da vidraça grande do estúdio da PRE-8 e sente que não pode abandonar, assim, os velhos amores.
Diz aos empresários argentinos:
— "Depois nós conversamos ..."
Passa-se o tempo e nunca chega o "depois". Nem o artista está preocupado que chegue.
Orlando é um dos novos do rádio que mais abalam o prestígio dos antigos. Num instante venceu. Suas primeiras gravações imediatamente despertaram as atenções gerais. As mulheres disseram logo, suspirando:
— "Meu Deus, que voz! ..."
E os homens invejosos:
— "É ... Esse rapaz promete ..."
Vieram os sucessos. A popularidade. A fama. O prestígio. As pequenas deram para o apontar na rua:
— "Olhe, mamãe, aquele é o Orlando Silva ..."
E o samba ganhava mais um intérprete brilhante:
"Foi você
a primeira mulher
que eu amei ..."
O cantor mergulha sua voz na expressão. Os versos saem transfigurados. Adquirem calor, vida, fulgor. A melodia ganha um poder de beleza capaz de fazer uma noiva séria telefonar para a Sociedade Rádio Nacional e dizer:
— "Pergunte ao Orlando Silva se ele quer me conhecer amanhã, à tarde ..."
Qualquer mocinha e qualquer solteirona distinguem sua sua voz dentre mil. Para elas o "speaker" pode até deixar de anunciar. Sabem a hora exata dos programas em que o cantor aparece, conhecem as suas criações mais recentes e finalmente os números que contam com maior simpatia.
Enquanto isso cresce o prestígio de Orlando Silva.
Há muita jovem sonhadora que à noite "não está em casa" para o namorado mas apenas para ficar enlevada junto ao receptor ouvindo embevecida as palavras de amor que o artista sabe tão bem pronunciar envolvidas na música nostálgica.
E as mulheres geralmente são tão sensíveis que quando escutam uma canção sentimental esquecem até o seu amor ..."
Fonte: "Carioca" — Edição 89, de 3/7/1937 — Caricaturas: Escrita por Theofilo de Barros e desenhada por Augusto Rodrigues
sábado, junho 14, 2014
Radamés Gnatalli e o Congresso Radiofônico
O grande maestro Radamés Gnatalli, numa foto da Carioca de 3/7/1937. |
"No Brasil é recente o cultivo da música artística. Mas se considerarmos que a música de um país deve ser constituída principalmente de elementos próprios, concluiremos que a nossa vida musical é recentíssima. Até a Grande Guerra (1), depois da qual o nacionalismo invadiu o mundo, vivemos artisticamente, dependentes do resto do mundo, da Europa, principalmente.
Somente após o colossal morticínio conseguimos certa independência que, de tão boa, se vem acentuando sempre e nos conduzindo à formação de um cabedal que para o bem dos povos já vai sendo incorporado ao patrimônio artístico universal.
No programa radiofônico de CARIOCA deve prevalecer a preocupação de evidenciar os valores autênticos daqueles cuja obra seja de utilidade para a sociedade. Radamés Gnatalli, mais que um artista de rádio, é um artista do Brasil.
Eis o que ele disse a CARIOCA:
— É um prazer a gente trabalhar em rádio. Esse meio colossal de divulgação nos estimula, consciente que estamos de que o nosso trabalho ecoará pela vastidão do Brasil. É necessário que o artista de rádio, mais que os outros artistas, tenha bem presente o fato de que a sua atuação terá uma repercussão enorme, se esforçando tanto quanto o possível para se produzir de maneira mais útil à coletividade. O rádio é uma coisa muito mais séria do que uma simples diversão, como alguns o consideram.
— Qual o programa que prefere executar?
— Diante do microfone eu abdico de qualquer egoísmo, levando em conta unicamente a necessidade dos ouvintes, a maneira melhor de cooperar pela cultura coletiva. Já lhe disse que o artista de rádio pertence à humanidade, cumprindo um apostolado. Todo apostolado tem o seu martírio ...
— Nesse caso, quais os programas que devem ser executados, na sua opinião?
— É esse um problema muito complexo e a sua revista seria pequena para conter a vastidão de todo um programa. Antes de tudo eu imagino um Congresso Nacional de Radiodifusão onde fossem discutidos os programas tendentes à beneficiarem o povo e onde fosse combinada uma ação conjunta. No Ministério da Educação já existe um departamento de rádio. Futuramente teremos um Ministério do Rádio.
— O que acha sobre a literatura, no rádio?
— Tem um papel tão grande como a música. Livros como "Macunaíma", de Mário de Andrade, têm uma grande influência sobre o povo e o levam a uma unificação maior e mais produtiva.
— Quais as suas últimas composições?
— As minhas últimas composições ainda não foram compostas ... Estou encarregado de organizar a parte musical de "Alegria", o próximo filme de Oduvaldo Vianna. Para tanto estou harmonizando alguns temas populares ciganos, cheios de melancólico sentimentalismo característico da raça nômade.
Do estúdio "A" da Rádio Nacional, já solicitavam a presença do maestro Gnatalli. Despedimo-nos, satisfeitos por termos realizado, com tão poucas palavras, uma entrevista tão interessante."
Nota: (1) A Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Fonte: Foto e artigo da revista semanal "Carioca" - edição 89, de 3/7/1937.
quinta-feira, junho 12, 2014
Carmen Barbosa, um exemplo de perseverança
"Carmen Barbosa é uma das nossas estrelas do samba, e a história de sua ascensão é bem curiosa. No Brasil, o rádio já tem vida própria e nessa vida a nossa heroína de hoje penetrou, foi derrotada, lutou, venceu -- bem como acontece nas outras vidas.
Eis a bem vivida de Carmen Barbosa, uma das avelhas desta vasta colmeia que é o meio radiofônico:
— Comecei como corista das gravações de Carmen Miranda, na Victor. Sempre tive um ouvido ótimo e aprendia, com grande facilidade, os sambas lançados em primeira mão nos estúdios da Victor. Cantava-os, depois, aos microfones de rádio, quase sempre no mesmo dia em que os ouvira. A música, a popular, principalmente, pertence a todos. É um patrimônio da humanidade que a concebeu. Era com a consciência absolutamente livre de qualquer culpa que eu lançava mão dessas músicas, utilizando-as em meu proveito. Mas a Victor não tem as mesmas ideias que eu, e devido a essa divergência de opiniões eu fui pra rua ...
— E depois? ...
— Depois, fiquei na rua bastante tempo, vivendo a vida amarga dos "chômeurs" do rádio; de estúdio em estúdio, cantando em audições experimentais para diretores apressados e distraídos, a minha existência era a mesma dos falidos, dos que não alcançaram o ideal e que se desesperançaram de alcançá-lo.
— Mas ...
— Mas ... Não pode haver um vocabulário mais decisivo na sua expressão indecisa. Surgiu-me um "mas" certa noite, na Rádio Cruzeiro. Uma infelicidadezinha de Madelú de Assis foi toda a minha felicidade. Madelú ficou ligeiramente doente e, à última hora, avisou o estúdio de que não lhe seria possível participar do programa para o qual estava escalada. Eu estava presente, e aproveitaram-me. Agradei, e a direção da Rádio Cruzeiro contratou-me imediatamente.
Mais tarde passei para a Rádio Tupi, contratada por três meses. E tão feliz tenho sido que essa transmissora vem renovando sucessivamente seus contratos comigo, de maneira que já estou no elenco há mais de um ano e meio; e tudo faz crer que na Tupi eu ainda continue por muito tempo, porque ali me tenho sentido perfeitamente bem.
A estação da rua Santo Cristo me deu a oportunidade felicíssima de conhecer bem de perto Benedito Lacerda, o celebrado compositor popular. Eu venho sendo a criadora das suas músicas, gravando-as na Victor e as lançando ao público, pelo microfone, em primeira mão. Sem dúvida alguma essa fato empresta um grande prestígio à minha atuação.
De tudo o que lhe disse, o senhor concluirá, por certo, que muito vale a perseverança na carreira radiofônica; e estará certo. Por minha parte ficarei satisfeitíssima se esta entrevista, lida por alguém que neste momento sofra as mesmas contrariedades que já sofri, tenha a utilidade de lhe reavivar a esperança, guiando-o para um chance qualquer — Termina Carmen Barbosa.
E a estrela de hoje, com a mesma simpaticíssima modéstia de seus tempos "brabos" nos estendeu a mão, com aquele sorriso que faz lembrar a expressão espiritual de Marian Anderson, a sacerdotisa negra."
Fonte: "Carioca", edição 88, de 26/6/1937.
Eis a bem vivida de Carmen Barbosa, uma das avelhas desta vasta colmeia que é o meio radiofônico:
— Comecei como corista das gravações de Carmen Miranda, na Victor. Sempre tive um ouvido ótimo e aprendia, com grande facilidade, os sambas lançados em primeira mão nos estúdios da Victor. Cantava-os, depois, aos microfones de rádio, quase sempre no mesmo dia em que os ouvira. A música, a popular, principalmente, pertence a todos. É um patrimônio da humanidade que a concebeu. Era com a consciência absolutamente livre de qualquer culpa que eu lançava mão dessas músicas, utilizando-as em meu proveito. Mas a Victor não tem as mesmas ideias que eu, e devido a essa divergência de opiniões eu fui pra rua ...
— E depois? ...
— Depois, fiquei na rua bastante tempo, vivendo a vida amarga dos "chômeurs" do rádio; de estúdio em estúdio, cantando em audições experimentais para diretores apressados e distraídos, a minha existência era a mesma dos falidos, dos que não alcançaram o ideal e que se desesperançaram de alcançá-lo.
— Mas ...
— Mas ... Não pode haver um vocabulário mais decisivo na sua expressão indecisa. Surgiu-me um "mas" certa noite, na Rádio Cruzeiro. Uma infelicidadezinha de Madelú de Assis foi toda a minha felicidade. Madelú ficou ligeiramente doente e, à última hora, avisou o estúdio de que não lhe seria possível participar do programa para o qual estava escalada. Eu estava presente, e aproveitaram-me. Agradei, e a direção da Rádio Cruzeiro contratou-me imediatamente.
Carmen, pela "Carioca" - Junho/1937 |
A estação da rua Santo Cristo me deu a oportunidade felicíssima de conhecer bem de perto Benedito Lacerda, o celebrado compositor popular. Eu venho sendo a criadora das suas músicas, gravando-as na Victor e as lançando ao público, pelo microfone, em primeira mão. Sem dúvida alguma essa fato empresta um grande prestígio à minha atuação.
De tudo o que lhe disse, o senhor concluirá, por certo, que muito vale a perseverança na carreira radiofônica; e estará certo. Por minha parte ficarei satisfeitíssima se esta entrevista, lida por alguém que neste momento sofra as mesmas contrariedades que já sofri, tenha a utilidade de lhe reavivar a esperança, guiando-o para um chance qualquer — Termina Carmen Barbosa.
E a estrela de hoje, com a mesma simpaticíssima modéstia de seus tempos "brabos" nos estendeu a mão, com aquele sorriso que faz lembrar a expressão espiritual de Marian Anderson, a sacerdotisa negra."
Fonte: "Carioca", edição 88, de 26/6/1937.
terça-feira, junho 10, 2014
Horacina Correia, a Patativa do Sul
"Estava pela metade o programa de Horacina Correia na Tupi. Ela acabou de cantar e veio respirar um pouco de ar livre. O repórter a cumprimentou. Horacina chegou de Porto Alegre no dia 2 de abril e estreou no dia 5. Agradou muito, pois canta sambas e marchas. Firmou-se no conceito do público ouvinte carioca.
Estava na Farroupilha, onde ainda deixou contrato. Nasceu lá mesmo, em Porto Alegre. Frequentou a Escola Paula Soares e depois a Escola Normal. Era sempre a primeira aluna da aula. Não saiu do Rio Grande do Sul. Aí viveu até ser convidada pela PRG-3 para vir atuar no Rio. É casada. Seu marido também é artista e veio com ela. Ambos na Tupi.
— Quantos anos de rádio?
— Um ano e meio. Estreei na Rádio Gaúcha, onde estive apenas dias. A seguir fui para a Difusora. Sai para descansar e parei alguns meses. Depois o pianista da Farroupilha, Paulo Coelho, procurou-me. Então, transportei-me para essa última estação. Todo mundo me conhece muito.
— Como se iniciou na interpretação de sambas?
— Eu comecei cantando desde pequenininha. Meu pai era cantor e acompanhava meus balbucios artísticos ao violão. Mas sempre em casa ... Tomei parte em diversas festas sociais de Porto Alegre. Em teatros. Em outros festivais. Fiz parte do cordão carnavalesco "Os turunas". Isso foi antes do rádio me tentar.
— Quais as músicas que mais aprecia?
— Em primeiro lugar samba e marcha. Depois uma valsa bem lânguida. Um foxtrot bem dinâmico. Um tango ...
— Sentir-se-ia capacitada para interpretar qualquer outro gênero?
— Além de sambas e marchas? Sim. Canto valsas. Canções. Foxes. Tangos ... Antes de entrar para a Gaúcha eu cantava essas melodias todas. Mas agora parei com elas. Você compreende? O samba é brasileiro ...
— Que acha do rádio?
— É a oitava maravilha do mundo ... O cinema, o avião, a lancha motor, todos esses marcos do progresso podem ser considerados maravilhas, porém, no meu ponto de vista, o rádio é a maravilha das maravilhas ...
— Está satisfeita nesse setor de atividade artística?
— Muito. Muitíssimo. Gosto de cantar. Creio que assim, cantando pelo amor à arte, poderei auxiliar a difusão da música popular brasileira no estrangeiro ...
— Qual é a artista do microfone que mais aprecia?
— Gosto de todas. Mas tenho uma predileção acentuada por Carmen Miranda. No naipe masculino destaco Carlos Galhardo. E penso que esse trunfo vence qualquer parada ...
— O que faz fora do microfone?
— Estudo piano. Leio muito. Adoro os romances policiais ... Há tempos estudava canto. Mas deixei. Creia que não é por me julgar grande coisa ... Uma artista que preza a sua arte jamais se julga suficientemente instruída ... Minhas distrações são quase resumidas numa só: cinema.
— E que artista de Hollywood aprecia mais?
— Katharine Hepburn. Antigamente eu era fã inveterada de Lon Chaney. Ele morreu. Ficou Boris Karloff. Agora sou fã de Karloff ...
— Gostaria de entrar para o cinema?
— Só se fosse para fazer papel de selvagem. De indígena brasileira. Creio que não dava para mais nada. Poderia cantar sambas e marchas ... Não tenho jeito para cinema. Isto se vê logo ...
— O que desejaria mais na vida?
— Vida artística, melhor dizendo ... Meus ideais são quatro que formam uma grande aspiração. Gravar muito. Agradar sempre o público. Ter nome feito no "broadcasting". Difundir cada vez mais a música brasileira ...
— Fez alguma grande viagem?
— Esta de vir à Capital Federal foi a minha maior viagem. No Rio Grande andei correndo aquilo tudo. Estive numa turnê artística pelo interior, chegando até ao Uruguai. O Uruguai para nós, rio-grandenses, é o mesmo que Cascadura para vocês, citadinos cariocas ...
— Espera algumas novidades para breve?
— Espero. Sempre esperei. Estou gravando dois sambas de Benedito Lacerda na Victor. Tive propostas para Buenos Aires e para São Paulo. É muito tentador. Mas você compreende? Ainda tenho o contrato na Rádio Farroupilha de Porto Alegre ...
— Que opinião tem dos ouvintes?
— Prefiro não meter a colher nesse assunto — terminou Horacina Correia sorrindo. — A comidinha tão agradável pode mudar de paladar ..."
Fonte: "CARIOCA" - Edição 83, de 22/5/1937 (artigo atualizado para o nosso português contemporâneo).
sábado, junho 07, 2014
Gastão Formenti para os fãs do rádio
"Gastão Formenti é um artista que vive afastado da publicidade rumorosa e que pouca atenção dá ao meio radiofônico. Sua atuação é discreta, sem alardes.
Antes da radiofonia se ter desenvolvido no Rio, seu nome já era conhecido por todo o Brasil, como um excelente cantor, através dos discos que vem gravando.
Gastão Formenti não é apenas um cantor; é, também, um pintor de mérito, várias vezes premiado no Salão de Belas-Artes como paisagista. Tem atuado em várias emissoras."
Fonte: "Carioca", edição 79, de 24/4/1937.
Gutta Pinho, o "Sabiá dos Pampas"
Intérprete de canções gaúchas e tangos argentinos, Gutta Pinho fez seu nome em Pelotas e na Rádio Farroupilha. Teve relativo sucesso no Rio de Janeiro, em fins dos 1930, ao microfone da Rádio Cruzeiro do Sul. Não possui biografia em enciclopédias musicais, nem em "dicionários virtuais". Há somente este artigo que transcrevo do semanário "Carioca" de 17/4/1937.
"Gutta Pinho ainda não é um nome feito no "broadcasting" carioca. Ele chegou aqui no Carnaval, época péssima para os cantores do seu gênero. Canta canções sul-rio-grandenses e tangos argentinos. Faz sucesso, o sucesso preciso para merecer um destaque.
Gutta Pinho nasceu em Pelotas, Estado do Rio Grande do Sul. Seus estudos foram feitos no Ginásio Gonzaga, na mesma cidade. Aí ele vivei e se criou. Seu primeiro emprego foi no escritório comercial de uma fábrica de chapéus. Depois trabalhou no comércio pelotense por sua própria conta. Começou a cantar em festivais e reuniões sociais.
Quando estava exercendo um cargo no escritório da Empresa Cinematográfica Xavier & Santos, ainda em Pelotas, ele começou a cantar junto ao microfone. Foi sua estreia nos estúdios da Sociedade Rádio Cultura de Pelotas. Era então avulso. Agradou muito a sua atuação. Daí ele pedir licença a seus patrões a aumentar os seus números na Rádio Cultura, PRH-4. Chegou ao ponto de ser contratado. Esteve algum tempo afastado do microfone mas voltou. Mais vitorioso do que nunca.
O diretor-artístico da Rádio Farroupilha teve ocasião de ouvi-lo cantar. Ficou extasiado. Dias depois Gutta Pinho, o "Sabiá dos Pampas", como o chamava a imprensa do Estado, foi atender a um contrato na Farroupilha. Esteve nessa nova estação dois meses, com pleno sucesso, e voltou a Pelotas. De novo, ele atuou na PRH-8.
Daí ele veio para o Rio. Tinha em vistas um ótimo contrato com a Mayrink Veiga, porém, não o pode atender devido a uma enfermidade hepática que o atacou. Chegou à Cidade Maravilhosa em fevereiro, no reinado de Momo. No entretanto não esqueceu a PRA-9 e foi ocupar o seu microfone em programas avulsos.
Finalmente o "Sabiá dos Pampas", o "Gardel brasileiro", veio conhecer a Rádio Cruzeiro do Sul. Aí ele fez algumas atuações como cantor avulso. Firmou seu nome. Os ouvintes gostaram da sua voz agradável. A PRD-2 gostou também e compreendeu os seus merecimentos.
Ele foi, afinal, contratado por esta emissora. A assinatura do seu contrato data de semana passada. E é na Cruzeiro que ele ainda se acha, encontrando, enfim, no Rio, uma posição lisonjeira que lhe permitirá ratificar a fama que adquiriu no sul ..."
Fonte: "CARIOCA" - edição 78, de 17/4/1937 (artigo atualizado e foto).
"Gutta Pinho ainda não é um nome feito no "broadcasting" carioca. Ele chegou aqui no Carnaval, época péssima para os cantores do seu gênero. Canta canções sul-rio-grandenses e tangos argentinos. Faz sucesso, o sucesso preciso para merecer um destaque.
Gutta Pinho nasceu em Pelotas, Estado do Rio Grande do Sul. Seus estudos foram feitos no Ginásio Gonzaga, na mesma cidade. Aí ele vivei e se criou. Seu primeiro emprego foi no escritório comercial de uma fábrica de chapéus. Depois trabalhou no comércio pelotense por sua própria conta. Começou a cantar em festivais e reuniões sociais.
Quando estava exercendo um cargo no escritório da Empresa Cinematográfica Xavier & Santos, ainda em Pelotas, ele começou a cantar junto ao microfone. Foi sua estreia nos estúdios da Sociedade Rádio Cultura de Pelotas. Era então avulso. Agradou muito a sua atuação. Daí ele pedir licença a seus patrões a aumentar os seus números na Rádio Cultura, PRH-4. Chegou ao ponto de ser contratado. Esteve algum tempo afastado do microfone mas voltou. Mais vitorioso do que nunca.
O diretor-artístico da Rádio Farroupilha teve ocasião de ouvi-lo cantar. Ficou extasiado. Dias depois Gutta Pinho, o "Sabiá dos Pampas", como o chamava a imprensa do Estado, foi atender a um contrato na Farroupilha. Esteve nessa nova estação dois meses, com pleno sucesso, e voltou a Pelotas. De novo, ele atuou na PRH-8.
Daí ele veio para o Rio. Tinha em vistas um ótimo contrato com a Mayrink Veiga, porém, não o pode atender devido a uma enfermidade hepática que o atacou. Chegou à Cidade Maravilhosa em fevereiro, no reinado de Momo. No entretanto não esqueceu a PRA-9 e foi ocupar o seu microfone em programas avulsos.
Finalmente o "Sabiá dos Pampas", o "Gardel brasileiro", veio conhecer a Rádio Cruzeiro do Sul. Aí ele fez algumas atuações como cantor avulso. Firmou seu nome. Os ouvintes gostaram da sua voz agradável. A PRD-2 gostou também e compreendeu os seus merecimentos.
Ele foi, afinal, contratado por esta emissora. A assinatura do seu contrato data de semana passada. E é na Cruzeiro que ele ainda se acha, encontrando, enfim, no Rio, uma posição lisonjeira que lhe permitirá ratificar a fama que adquiriu no sul ..."
Fonte: "CARIOCA" - edição 78, de 17/4/1937 (artigo atualizado e foto).
domingo, junho 01, 2014
A amnésia musical brasileira
Pandeirista e compositor, Darcy de Oliveira era internacionalmente conhecido nos fins da década de 1930 e começo dos 1940. Porém, hoje nem é citado em enciclopédias da MPB e nem em "dicionários virtuais", tipo Cravo Albin ...
Na foto ao lado, publicada pela "Carioca" de 10/4/1937, diz que Darcy, popular pandeirista e futuro compositor, obteve grande êxito na Rádio Belgrano em Buenos Aires.
Fez várias composições com Benedito Lacerda e outros, interpretados por cantores do nível de Nelson Gonçalves (“Isso aqui tem dono”, 1942), Gilberto Alves (“Pombo correio”, 1942), Marilu (“Por favor não vá”, 1943), Ademilde Fonseca (“Voltei pro morro”), sem citar mais outras ...
É como se diz: "... Um povo que esquece seus heróis, seus vultos, perde as suas raízes ... Pobre do povo que não preserva a sua história, que não exalta os seus heróis".
Fonte: "Carioca", de 10/4/1937: foto e artigo sobre sua turnê ao país platino.
Na foto ao lado, publicada pela "Carioca" de 10/4/1937, diz que Darcy, popular pandeirista e futuro compositor, obteve grande êxito na Rádio Belgrano em Buenos Aires.
Fez várias composições com Benedito Lacerda e outros, interpretados por cantores do nível de Nelson Gonçalves (“Isso aqui tem dono”, 1942), Gilberto Alves (“Pombo correio”, 1942), Marilu (“Por favor não vá”, 1943), Ademilde Fonseca (“Voltei pro morro”), sem citar mais outras ...
É como se diz: "... Um povo que esquece seus heróis, seus vultos, perde as suas raízes ... Pobre do povo que não preserva a sua história, que não exalta os seus heróis".
Fonte: "Carioca", de 10/4/1937: foto e artigo sobre sua turnê ao país platino.
Darcy de Oliveira
Darcy de Oliveira, pandeirista / compositor, foi um artista notável nas décadas de 1930 e 1940, mas que, mesmo assim, como a grande maioria dos músicos de sua época, hoje em dia é um nome esquecido.
Não há dados biográficos sobre ele nos trabalhos mais fundamentais que reúnem informação biográfica de nomes da música brasileira, como os livros pioneiros do Ary Vasconcellos, a Enciclopédia da Música Brasileira ou o dicionário musical on-line do Ricardo Cravo Albin. E mesmo uma busca mais exaustiva na literatura revela apenas breves menções de suas composições.
Um conjunto de fotografias, partituras manuscritas e impressas, assim como vários outros documentos que pertenceram ao Darcy de Oliveira estavam em poder de um familiar seu que veio a falecer, tendo, então, sido todos aqueles papéis descartados ao lixo. Pessoas que comercializam material reciclado resgataram estes papéis, que enfim vieram parar em minhas mãos. Baseado neste material, disponibilizo aqui alguma informação biográfica sobre este personagem.
Darcy de Oliveira nasceu em 16 de março de 1905, em Porto Alegre, filho de Álvaro Branco e Clara Dorneles de Oliveira. Ainda em sua cidade natal participou de grupos como Bohemios Rio-grandenses, liderado pelo cavaquinista Ary Valdez, e Voz do Sul, com o qual fez apresentação no Uruguai. Também atuou muito frequentemente ao lado do flautista gaúcho Dante Santoro.
Participou do carnaval porto-alegrense compondo para a então famosa agremiação carnavalesca “Divertidos atravessados”, e para os ranchos “Almirantes Carnavalescos” e “Não sei”, tendo sido organizador deste último.
No Rio de Janeiro, foi pandeirista, por exemplo, do conjunto regional da RCA Victor, liderado por seu amigo Dante Santoro, do qual também eram integrantes Pereira Filho e Ney Orestes, nos violões, e Ary Valdez, no cavaquinho.
Sua estreia em disco, foi através da voz de Aracy de Almeida, com o samba “Pedindo a São João”, feito em parceria com Herivelton Martins e lançado para as festividades juninas de 1935. No ano seguinte o samba “Se o morro não descer”, que fez com o mesmo parceiro, foi um dos sucessos do carnaval.
Seus parceiros mais frequentes foram Herivelton Martins e Benedito Lacerda, mas Darcy de Oliveira também compôs em parceria com Wilson Baptista, Ataulfo Alves, Roberto Roberti, Waldemar Gomes dentre outros.
Suas composições foram gravadas por cantores consagrados, como Francisco Alves, Carmem Miranda, Aurora Miranda, Sílvio Caldas, Almirante, Ademilde Fonseca, Dircinha Batista, Moreira da Silva, além da já citada Aracy de Almeida.
Darcy de Oliveira faleceu em sua residência na Rua dos Arcos, no bairro da Lapa, Rio de Janeiro, no dia 31 de março de 1945, em consequência de complicações de saúde.
Anos mais tarde sua filha Lourdes de Oliveira tornou-se atriz, estreando na personagem Mira do premiado filme “Orfeu do Carnaval”, do diretor francês Marcel Camus, com quem casou e teve dois filhos. Consegui arrolar até o momento cerca de 80 músicas de Darcy de Oliveira, a maioria inédita em disco.
Fontes: Revista Música Brasileira - Darcy de Oliveira, compositor e pandeirista; Semanário “Carioca”, de 10/4/1937; Anotações Sobre Música Brasileira: notas sobre o compositor e pandeirista Darcy de Oliveira (1905-1945) - Sandor Buys.
Não há dados biográficos sobre ele nos trabalhos mais fundamentais que reúnem informação biográfica de nomes da música brasileira, como os livros pioneiros do Ary Vasconcellos, a Enciclopédia da Música Brasileira ou o dicionário musical on-line do Ricardo Cravo Albin. E mesmo uma busca mais exaustiva na literatura revela apenas breves menções de suas composições.
Um conjunto de fotografias, partituras manuscritas e impressas, assim como vários outros documentos que pertenceram ao Darcy de Oliveira estavam em poder de um familiar seu que veio a falecer, tendo, então, sido todos aqueles papéis descartados ao lixo. Pessoas que comercializam material reciclado resgataram estes papéis, que enfim vieram parar em minhas mãos. Baseado neste material, disponibilizo aqui alguma informação biográfica sobre este personagem.
Darcy de Oliveira nasceu em 16 de março de 1905, em Porto Alegre, filho de Álvaro Branco e Clara Dorneles de Oliveira. Ainda em sua cidade natal participou de grupos como Bohemios Rio-grandenses, liderado pelo cavaquinista Ary Valdez, e Voz do Sul, com o qual fez apresentação no Uruguai. Também atuou muito frequentemente ao lado do flautista gaúcho Dante Santoro.
Participou do carnaval porto-alegrense compondo para a então famosa agremiação carnavalesca “Divertidos atravessados”, e para os ranchos “Almirantes Carnavalescos” e “Não sei”, tendo sido organizador deste último.
No Rio de Janeiro, foi pandeirista, por exemplo, do conjunto regional da RCA Victor, liderado por seu amigo Dante Santoro, do qual também eram integrantes Pereira Filho e Ney Orestes, nos violões, e Ary Valdez, no cavaquinho.
Sua estreia em disco, foi através da voz de Aracy de Almeida, com o samba “Pedindo a São João”, feito em parceria com Herivelton Martins e lançado para as festividades juninas de 1935. No ano seguinte o samba “Se o morro não descer”, que fez com o mesmo parceiro, foi um dos sucessos do carnaval.
Seus parceiros mais frequentes foram Herivelton Martins e Benedito Lacerda, mas Darcy de Oliveira também compôs em parceria com Wilson Baptista, Ataulfo Alves, Roberto Roberti, Waldemar Gomes dentre outros.
Suas composições foram gravadas por cantores consagrados, como Francisco Alves, Carmem Miranda, Aurora Miranda, Sílvio Caldas, Almirante, Ademilde Fonseca, Dircinha Batista, Moreira da Silva, além da já citada Aracy de Almeida.
Darcy de Oliveira faleceu em sua residência na Rua dos Arcos, no bairro da Lapa, Rio de Janeiro, no dia 31 de março de 1945, em consequência de complicações de saúde.
Anos mais tarde sua filha Lourdes de Oliveira tornou-se atriz, estreando na personagem Mira do premiado filme “Orfeu do Carnaval”, do diretor francês Marcel Camus, com quem casou e teve dois filhos. Consegui arrolar até o momento cerca de 80 músicas de Darcy de Oliveira, a maioria inédita em disco.
Fontes: Revista Música Brasileira - Darcy de Oliveira, compositor e pandeirista; Semanário “Carioca”, de 10/4/1937; Anotações Sobre Música Brasileira: notas sobre o compositor e pandeirista Darcy de Oliveira (1905-1945) - Sandor Buys.
quinta-feira, maio 29, 2014
Sambistas ...
Manuel Bandeira, um dos nossos maiores cronistas, acaba de publicar um interessante volume, "Chronicas da Província do Brasil" que é um agradável passeio entre as letras, as artes e recantos pitorescos da terra brasileira. O livro de Manuel Bandeira tem dois capítulos sobre João Baptista da Silva, o popularíssimo Sinhô.
O do enterro do autor de "Jura" é uma página sugestiva das mais curiosas do livro. Transcrevemos, nesta página, o outro capítulo, sob o título "Sambistas", em que o cronista narra um caso pitoresco e complicado de investigação da paternidade de um samba:
"Quando morreu o afamado Sinhô, escrevi para o "Diário Nacional" de São Paulo uma crônica em que recordava com saudade alguns traços curiosos da figura do rei do samba carioca. E contei uma cena a que tive o prazer de assistir em casa dos meus amigos Eugênia e Álvaro Moreyra.
Foi o caso que numa das extintas deliciosas quintas-feiras em que o casal recebia, apareceu o Sinhô e regalou os convidados não só com a sua conversação como com os seus sambas. Estava mal de voz, tossia muito (era a velha tuberculose que apertava o cerco), mas nenhum de nós teve a menor ideia de atribuir aquela tosse à terrível moléstia e, como era do mais elementar dever, poupar o doente.
O que nos desculpa daquela “descaridade” é que Sinhô para toda gente era uma criatura fabulosa, vivendo no mundo noturno do samba, zona impossível de localizar com precisão - é no Estácio mas bem perto ficam as macumbas do Encantado, mundo onde a impressão que se tem é que ali o pessoal vive de brisa, cura a tosse com álcool e desgraça pouca é bobagem. Assim quando Sinhô parava num acesso, ia-se buscar uma boa lambada de Madeira e o fato é que a tosse é que a tosse passava.
A acreditar no Sinhô, ele não tinha dormido na noite da véspera. Passara-a numa farra, e naquela manhã mesmo, ao regressar a casa, não fora bem recebido pelo seu bem, que naturalmente estava ralado de ciúmes.
Contou Sinhô que foi então para o piano e improvisou um samba, que entoou para nós ainda com as hesitações das coisas inacabadas. Era gostosíssimo e parecida do melhor Sinhô. (Ninguém duvidou que não fosse dele.) Lembro-me bem da toada e da letra do estribilho:
Já é demais,
Meu bem, já é demais!
Eu já notei que tu queres me acabar...
Fizemos o Sinhô repetir a toada um sem-número de vezes. Todos os presentes já o sabiam de cor e secundavam em coro quando chegava a hora do "já é demais". Foi isso em fins de 1929.
***
Há pouco mais de um mês um amigo meu, que se interessa atualmente por modinhas policiais, pediu-me umas informações, e para servi-lo andei correndo os olhos na literatura de cordel. Fui à toa à Praça Tiradentes onde, sob as arcadas do antigo São Pedro, havia um vasto estenderete do gênero. O café da esquina da Rua das Marrecas estava em demolição. Mas passando por lá de bonde verifiquei que nos andaimes da reconstrução os cordelinhos de engraxate resistiam bravamente à poeira. Lá pude arranjar uma pequena coleção de "liras" que remontavam até 1927.
Vim para casa e correndo a vista por aquelas páginas sujíssimas deparei num dos cadernos com o título "Já é demais". Abaixo dele vinha a informação: "Letra e música de seu Candu". Ora, lá estava o estribilho do samba de Sinhô:
Já é demais, meu bem,
Meu bem já é demais!
E hoje já notei
Que tu queres me acabar...
Verifiquei logo que o plágio não podia ser de seu Candu, porque a publicação era de 1927 (editor Menotti Carnaval, depósito Rua General Pedra, 169) e de resto havia ainda a indicação abaixo do título de que o "Já é demais" era choro do carnaval de 1925, o que estava aliás provadíssimo pelo contexto da letra todo cheio de alusões aos fatos revolucionários de 1924:
Lá no morro de S. Carlos
É lugar de pretensão.
Já botaram metralhadoras
Pra brigar com aviação.
Ainda não pude descobrir quem conhecesse a toada do choro do seu Candu. Em todo o caso está claro que Sinhô avançou no refrão de seu Candu.
***
Isso tudo me fez refletir como é difícil apurar afinal de contas a autoria desses sambas cariocas que brotam não se sabe donde. Muitas vezes a gente está certo que vem de um Sinhô, que é majestade, mas a verdade é que o autor é seu Candu, que ninguém conhece.
E afinal quem sabe lá se é mesmo de seu Candu? Possivelmente atrás de seu Candu estará o que não deixou vestígio de nome no samba que toda a cidade vai cantar. E o mais acertado é dizer que quem fez estes choros tão gostoso não é A nem B, nem Sinhô, nem Donga: é o carioca, isto é, um sujeito nascido no Espírito Santo ou em Belém do Pará."
Fontes: "Carioca" - Edição 77, de 10/4/1937; Yahoo Grupos: transcrição de Maria do Carmo - "In" Manuel Bandeira - Poesia Completa e Prosa, Editora Nova Aguilar S.A., RJ, 1983, págs. 463/465 (texto revisado).
O do enterro do autor de "Jura" é uma página sugestiva das mais curiosas do livro. Transcrevemos, nesta página, o outro capítulo, sob o título "Sambistas", em que o cronista narra um caso pitoresco e complicado de investigação da paternidade de um samba:
"Quando morreu o afamado Sinhô, escrevi para o "Diário Nacional" de São Paulo uma crônica em que recordava com saudade alguns traços curiosos da figura do rei do samba carioca. E contei uma cena a que tive o prazer de assistir em casa dos meus amigos Eugênia e Álvaro Moreyra.
Foi o caso que numa das extintas deliciosas quintas-feiras em que o casal recebia, apareceu o Sinhô e regalou os convidados não só com a sua conversação como com os seus sambas. Estava mal de voz, tossia muito (era a velha tuberculose que apertava o cerco), mas nenhum de nós teve a menor ideia de atribuir aquela tosse à terrível moléstia e, como era do mais elementar dever, poupar o doente.
O que nos desculpa daquela “descaridade” é que Sinhô para toda gente era uma criatura fabulosa, vivendo no mundo noturno do samba, zona impossível de localizar com precisão - é no Estácio mas bem perto ficam as macumbas do Encantado, mundo onde a impressão que se tem é que ali o pessoal vive de brisa, cura a tosse com álcool e desgraça pouca é bobagem. Assim quando Sinhô parava num acesso, ia-se buscar uma boa lambada de Madeira e o fato é que a tosse é que a tosse passava.
A acreditar no Sinhô, ele não tinha dormido na noite da véspera. Passara-a numa farra, e naquela manhã mesmo, ao regressar a casa, não fora bem recebido pelo seu bem, que naturalmente estava ralado de ciúmes.
Contou Sinhô que foi então para o piano e improvisou um samba, que entoou para nós ainda com as hesitações das coisas inacabadas. Era gostosíssimo e parecida do melhor Sinhô. (Ninguém duvidou que não fosse dele.) Lembro-me bem da toada e da letra do estribilho:
Já é demais,
Meu bem, já é demais!
Eu já notei que tu queres me acabar...
Fizemos o Sinhô repetir a toada um sem-número de vezes. Todos os presentes já o sabiam de cor e secundavam em coro quando chegava a hora do "já é demais". Foi isso em fins de 1929.
***
Há pouco mais de um mês um amigo meu, que se interessa atualmente por modinhas policiais, pediu-me umas informações, e para servi-lo andei correndo os olhos na literatura de cordel. Fui à toa à Praça Tiradentes onde, sob as arcadas do antigo São Pedro, havia um vasto estenderete do gênero. O café da esquina da Rua das Marrecas estava em demolição. Mas passando por lá de bonde verifiquei que nos andaimes da reconstrução os cordelinhos de engraxate resistiam bravamente à poeira. Lá pude arranjar uma pequena coleção de "liras" que remontavam até 1927.
Vim para casa e correndo a vista por aquelas páginas sujíssimas deparei num dos cadernos com o título "Já é demais". Abaixo dele vinha a informação: "Letra e música de seu Candu". Ora, lá estava o estribilho do samba de Sinhô:
Já é demais, meu bem,
Meu bem já é demais!
E hoje já notei
Que tu queres me acabar...
Verifiquei logo que o plágio não podia ser de seu Candu, porque a publicação era de 1927 (editor Menotti Carnaval, depósito Rua General Pedra, 169) e de resto havia ainda a indicação abaixo do título de que o "Já é demais" era choro do carnaval de 1925, o que estava aliás provadíssimo pelo contexto da letra todo cheio de alusões aos fatos revolucionários de 1924:
Lá no morro de S. Carlos
É lugar de pretensão.
Já botaram metralhadoras
Pra brigar com aviação.
Ainda não pude descobrir quem conhecesse a toada do choro do seu Candu. Em todo o caso está claro que Sinhô avançou no refrão de seu Candu.
***
Isso tudo me fez refletir como é difícil apurar afinal de contas a autoria desses sambas cariocas que brotam não se sabe donde. Muitas vezes a gente está certo que vem de um Sinhô, que é majestade, mas a verdade é que o autor é seu Candu, que ninguém conhece.
E afinal quem sabe lá se é mesmo de seu Candu? Possivelmente atrás de seu Candu estará o que não deixou vestígio de nome no samba que toda a cidade vai cantar. E o mais acertado é dizer que quem fez estes choros tão gostoso não é A nem B, nem Sinhô, nem Donga: é o carioca, isto é, um sujeito nascido no Espírito Santo ou em Belém do Pará."
Fontes: "Carioca" - Edição 77, de 10/4/1937; Yahoo Grupos: transcrição de Maria do Carmo - "In" Manuel Bandeira - Poesia Completa e Prosa, Editora Nova Aguilar S.A., RJ, 1983, págs. 463/465 (texto revisado).
Olga Praguer para os fãs do rádio
"Olga Praguer Coelho é uma das primeiras figuras do rádio no Brasil. A sua atuação frente aos microfones brasileiros data dos primeiros tempos da Rádio Sociedade.
Tem cantado em quase todas as estações do Rio, sendo atualmente exclusiva da Rádio Tupy.
Fora do Brasil, Olga Praguer tem cantado em inúmeros países: Argentina, Uruguai, Itália, Alemanha, Áustria, etc., mostrando a todo mundo, o que realmente belo possui o folclore brasileiro, de que é uma intérprete inigualável.
Tem apresentado e criado com grande sucesso um sem número de músicas, entre as quais, as suas adaptações de antigas modinhas imperiais e o "Canto da Expatriação", de Humberto Porto, gravado com o tenor mexicano Pedro Vargas."
Fonte: "Carioca", de 8/4/1937 (texto atualizado e foto).
Tem cantado em quase todas as estações do Rio, sendo atualmente exclusiva da Rádio Tupy.
Fora do Brasil, Olga Praguer tem cantado em inúmeros países: Argentina, Uruguai, Itália, Alemanha, Áustria, etc., mostrando a todo mundo, o que realmente belo possui o folclore brasileiro, de que é uma intérprete inigualável.
Tem apresentado e criado com grande sucesso um sem número de músicas, entre as quais, as suas adaptações de antigas modinhas imperiais e o "Canto da Expatriação", de Humberto Porto, gravado com o tenor mexicano Pedro Vargas."
Fonte: "Carioca", de 8/4/1937 (texto atualizado e foto).
Leny Eversong e sua carreira artística
"Leny Eversong é uma artista que se firmou na radiofonia nacional em menos tempo do que todos, inclusive ela própria, esperavam. O foxtrote tem em Leny uma grande admiradora e uma fiel intérprete. Parece que a nova estrela do "broadcasting" da Cidade Maravilhosa estudou psicologia da música negra norte-americana. E fez-se professora ...
Seu verdadeiro nome é Hilda Campos Filgueras. Nasceu na capital de São Paulo. Casou-se com Alvinho Filgueras, outro animador do rádio brasileiro, criador do grupo radiofônico "Os Namorados do Ar", de Santos.
Leny Eversong descobriu muito cedo os seus pendores para o canto. Aos treze anos de idade já cantava alguma coisa. Mas então nem sequer em sonhos ela cogitava de vir a enfrentar um microfone.
Cantou pela primeira na PRB-4, de Santos. Ali se conservou o tempo necessário para adquirir mais impulso e maior anseio. Procurou sempre interpretar músicas norte-americanas. Começou cantando-as em tradução. Depois no original. Seu pseudônimo já começava a ficar conhecido. Resolveu ir para a PRG-5, Rádio Atlântica, na mesma cidade paulista. Com isto pode-se dizer que ela correu todas as estações de Santos.
Na Rádio Atlântica se firmou definitivamente. Era intérprete número um da melodia norte-americana. Foxes, blues, rag-times ...
Por ocasião da visita da embaixada de artistas cariocas composta por Almirante, Castro Barbosa, Jayme Britto e o Conjunto Regional de Benedito Lacerda àquela estação emissora, Leny cantou em sua homenagem. Os artistas chegados do Rio retribuíram, tendo Castro Barbosa mostrado as suas possibilidades, secundado pelo Conjunto Regional de Benedito Lacerda, com este na flauta, Russo no pandeiro, e o resto ...
Chegado ao Rio, o Conjunto de Benedito Lacerda notificou a direção da Tupy sobre a arte de Leny Eversong. E como Carlos Frias ia para Santos, a PRG-3 aproveitou a sua viagem para chamá-la. Leny não demorou muito a chegar ao Rio de Janeiro.
A entrevista que Leny Eversong concedeu a CARIOCA resultou numa palestra agradável e interessante, de acordo com a própria artista.
— Que pensa do rádio? E do ouvinte?
— Penso que o rádio é um grande invento. Um formidável invento.
Ele auxilia muito o artista. Torna-se um propagandista ligeiro e mais eficaz do qualquer outro ... Quanto ao ouvinte acho que é muito camarada da gente e é muito gentil. É assim como um espírito invisível benéfico para nós, pois ele é uma das coisas que fazem com que o artista progrida para fazer jus a uma boa e contínua recepção ...
Um dos grandes anseios de Leny Eversong é entrar para o cinema brasileiro. Acha que a cinematografia nacional tem um brilhante futuro, pois começou pelos primeiros passos ... Este e o de ser grande estrela de rádio para seu nome alcançar fama em outros países do mundo, são os seus maiores anhelos (anseios). Julga assim que sua ambição não é incomensurável ...
— Quais as músicas que mais aprecia cantar?
— Em primeiro lugar gosto de cantar foxtrotes. Em geral a música dos negros norte-americanos. Parece que não, mas o ritmo destas melodias faz fremir o âmago da gente ... O meu compositor predileto é Duke Ellington. De vez em quando, porém, canto sambas e outras músicas do folclore brasileiro ... lá em casa, geralmente. Eu gostaria de aprender a interpretar tuto, tudo ...
E não está longe disso. Sua voz é um problema cheio de saídas. Pois se ela não só canta com voz humana como até imita instrumentos musicais! Quando está mais animada consegue uma perfeita imitação do sopro do pistão e do argênteo som da guitarra de Havaí! Já está apta a fazer os próprios acompanhamentos. E sem bateria ...
— Em que procura distrair-se?
— Eu estou sempre distraída, com franqueza. Quando não estou cantando, toco piano, repinico num violão qualquer coisa ... Gosto de pintura. Pinto em toda a parte, fundo de prato, quadros, almofadas ... Também gosto de ir ao cinema e ao teatro assistir a revistas. Leio semanalmente as seções de rádio e cinema de CARIOCA.
— Quais as suas novidades para o corrente ano?
— Por enquanto não posso afirmar nada. Tenho diversas propostas de contratos em vista para ir atuar nos rádios do sul. Talvez eu vá para a Argentina, talvez não ... Vou pensar ... Na Tupy espero lançar, paulatinamente, perto de duzentos foxes que ainda restam no meu repertório ..."
Fonte: CARIOCA, de 13/3/1937 (texto atualizado e foto de Leny, provavelmente com 17 anos)
A viagem de Sylvinha Mello
"A attracção do cinema - Um film dramatico que será produzido no Ceará" (Carioca, de 13/3/1937) |
"A pouco e pouco o nosso meio radiofônico está perdendo os seus ases ante o evidente progresso do nosso meio cinematográfico. Quando começou a se firmar o cinema na nossa terra, quando ele se mostrou mesmo com grandes tendências para uma perfeição pouco longínqua, os artistas do nosso rádio e do nosso teatro abandonaram céleres, as suas precedentes ocupações e se passaram para a tela prateada. Alguns gostaram. E ficaram. Outros gostaram. Mas não ficaram ...
O teatro cede muito elementos para o cinema, mas o rádio não lhe fica atrás. O rádio é um intermédio. Os artistas saem do teatro para o rádio, deste para o cinema. Adquirem, assim, ao microfone, a dicção necessária para uma boa película.
Sylvinha Mello começou muito bem no rádio. Tem uma voz agradável e um jeito todo especial para cantar canções. E é dona de agradabilíssimo palmo de face. É justo, pois, que o cinema a seduzisse. E seduziu-a mesmo.
Quando Raul Roulien organizou o elenco de artistas que seriam filmados na sua primeira produção brasileira "O Grito da Mocidade", não se esqueceu de dar um pequeno papel a Sylvinha Mello. E ela agradou bem na parte que lhe coube. Além de ser muito elegante, demonstrou possuir grande parte do jeito comediógrafo de que todos nós temos uma parte ...
Sylvinha Mello gostou do cinema e o cinema gostou de Sylvinha Mello. Mas ela não abandonou definitivamente o "broadcasting". O cinema ainda não é aqui no Brasil uma segura e contínua colocação.
A conhecida intérprete do nosso folclore veio, afinal, a ser contratada pela PRE-8, Rádio Nacional. Seu desempenho neste emissora era muito bom. Sua expressão, ótima. Ela continua a cantar no rádio com a sua voz bonita. E a agradar a quem a vê com a sua figura graciosa.
Agora, Sylvinha Mello voltou para o cinema. Enfim, o cinema a chamou de novo, para celebrizar quiçá como estrela de primeira grandeza. Ela deve partir dentro destes dias para o Ceará, disposta a ser filmada numa nova produção cinematográfica brasileira. A companhia que a convidou, uma sociedade americana de cinematografia, vai tentar mais um sucesso na nascente indústria cinematográfica brasileira. Sylvinha Mello vai tentar mais uma vez um outro sucesso em frente da câmera. Se desta vez ela desempenhar com apuro o seu papel, é quase certo que mais cedo ou mais tarde deixará mesmo o rádio de parte.
Todos os artistas têm grandes aspirações. Quem não vai gostar é o radiouvinte exclusivo de Sylvinha Mello ..."
Fonte: CARIOCA, de 13/3/1937 (texto atualizado e foto).