"Mercê do seu grande conhecimento sobre os assuntos musicais, Almirante é, sem sombra de dúvida, uma das poucas figuras do nosso broadcasting que pode falar com segurança sobre o carnaval, a semelhança das melodias carnavalescas com ritmos de outros povos e a introdução do samba no tríduo da folia.
Assim resolvemos procura-lo em seu gabinete, a fim de ouvi-lo sobre os assuntos em referência. Inicialmente, perguntamos-lhe quando surgiu a primeira música propriamente carnavalesca.
— A primeira, a rigor, foi a da paródia dos “Pompier de Nanterre”, cançoneta francesa, adaptada pelo ator Vasques, que ele cantava com um martelar de bombos, reproduzindo o “Zé Pereira”, que um português de nome José Nogueira de Azevedo Paredes tinha posto em moda aqui no Rio. A cantiga atravessou anos e chegou até nós graças à primeira quadrilha da versalhada do Vasques, que era assim:
E com aquela voz bem conhecida dos rádio-escutas, Almirante cantou:
— "Viva o Zé Pereira / Que a ninguém faz mal! / Viva a bebedeira / Nos dias de Carnaval."
— Acredita que a referida música tenha dado lucros financeiros ao seu autor? — indagamos.
— Não houve e nem podia haver lucro decorrente da cantiga. Naquele tempo, meu caro, não se cogitava de direito autoral...
Prosseguindo, solicitamos ao exclusivo da Tupi que nos traçasse uma ligeira relação das principais músicas de carnaval que apareceram depois.
— É difícil dar uma relação — disse-nos ele. — Em todo o caso, posso apontar o famosíssimo "Abre Alas", de Chiquinha Gonzaga, surgido em 1899 em seguida, o "Vem cá, mulata", de Arquimedes de Oliveira e Bastos Tigre. que esteve em evidência de 1902 a 1906; e o "No bico da chaleira", de Juca Storoni, aparecido em 1909. Isso para falar das primeiras.
— Acha que o ritmo das nossas músicas de carnaval tenha parecença com ritmos de outros povos?
— Acredito que semelhança rítmica, propriamente, pode ser encontrada em certas marchinhas brasileiras, de características acentuadamente portuguesas.
Quisemos saber, em seguida, a opinião do nosso entrevistado sobre qual as melhores músicas, de todos os tempos, que já se fizeram para o Carnaval.
Jeitosamente, disse-nos Almirante:
— Citar algumas e esquecer outras seria cometer uma injustiça. Lembro, entretanto, o "Abre alas" e a magistral adaptação "Teu cabelo não nega", de Lamartine Babo, da marcha "Mulata", dos Irmãos Valença.
Revista do Rádio: Duas atitudes de Almirante, apanhadas em seu gabinete de trabalho. A segunda é bem característica, tal como ele estivesse explicando e detalhando dados, em seu vastíssimo arquivo. |
— Quando foi introduzido o ritmo do samba nas músicas carnavalescas?
Fez-se uma breve pausa, em que o famoso produtor consultou a memória, após o que nos respondeu:
— O ritmo do samba, a bem dizer, existe no Brasil desde que por aqui se inventaram as polcas-lundus. Quando, a partir de 1916, depois do aparecimento do "Pelo telefone", as músicas passaram para a nova denominação de "samba", os autores ainda tinham dúvidas sobre quais as que deveriam ser batizadas daquela maneira. A princípio, o que mudou foi somente a denominação. Só mais tarde, as músicas foram tomando o feitio que as enquadravam de maneira mais positiva dentro do novo nome. Se o nome “samba” não tivesse sido adotado em 1916 para designar um gênero de música, o “É bom parar...” talvez fosse classificado como polca; o “Ai que saudades da Amélia”, como tango; assim por diante.
— Qual o compositor que, em sua opinião, tenha escrito as melhores músicas de carnaval?
Denotando grande tato, respondeu-nos Almirante, sorrindo:
— Falemos dos mortos, que serão capazes de perdoar com mais facilidade os esquecimentos: Sinhô, Eduardo Souto e Noel Rosa...
— No seu modo de ver, onde está o sucesso de uma composição carnavalesca: na letra ou na melodia?
— Se alguém tivesse a desejada ciência de saber o detalhe psicológico que determina o sucesso de uma música, esse alguém estaria riquíssimo. Mil fatores contribuem para isso. Mas nunca se pode afirmar que seja uma boa melodia ou uma boa letra, pois são infindáveis os exemplos de péssimas músicas e versos pavorosos que acabam em sucessos marcantes. Às vezes, um pequeno detalhe, um quase imperceptível detalhe na melodia, uma simples palavra, um ingênuo efeito rítmico, podem ser o fator imponderável do agracio.
Desejamos saber, então, das músicas para este ano, qual a que lhe parece com mais possibilidades de sucesso.
Fazendo “blague”, respondeu Almirante:
— Francamente — e por mais que isso pareça incrível! Fantástico! Extraordinário! — não pude me demorar em ouvir o que já saiu para 1949...
— Que acha dos concursos da Prefeitura?
— Nenhum certame, por mais honesto que seja, haverá de contentar, não só ao público como, principalmente, aos compositores, quando realizados antes do Carnaval. Orientando os concursos da Prefeitura, em todos os anos, tem havido elementos que não conhecem o assunto como seria necessário. Daí os comprometedores resultados de alguns deles que nunca chegaram a ser olhados com o respeito que deveria merecer uma iniciativa oficial. Concurso de música carnavalesca deveria ser feito depois do carnaval, e por um sistema de consulta à opinião pública, que não pudesse sofrer o cambalacho dos interessados.
Finalizando, quisemos saber alguma coisa mais sobre os festejos carnavalescos no Rio.
— Sobre o carnaval, acho que a Prefeitura deveria proibir terminantemente os alto-falantes pelas ruas; as barraquinhas de comezainas pelas calçadas em pontos tão próximos da Avenida Rio Branco; deveria ressuscitar a tradição das várias bandas em coretos, avenida e, agora, na Presidente Vargas; e o mais importante: animar a volta dos ranchos e dar maior auxílio às grandes sociedades. Uma ideia que talvez desse resultado fosse o reviver as passeatas de caminhões engalanados, em certo dia do carnaval, premiando os mais merecedores e os portadores da melhor música — concluiu Almirante.
Aí estão diversas sugestões bem interessantes. Por que a Prefeitura não as aproveita?”
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Fonte: Revista do Rádio - Fevereiro de 1949.