Havia uma garota, em 1942, cujo beijo era uma bomba de Stuka. Havia uma outra, em 1937, a Sebastiana, que, debaixo de um abraço, só se sentia carne, não se sentia osso. Só não havia pelo menos em 1955, uma Miss Brasil crioula do Morro da Favela - porque, se houvesse seu Joaquim apoiava ela.
Marchinha é a maneira mais bem-humorada de se conhecer a história do Rio de Janeiro na primeira metade do século passado e a gravadora Revivendo, com o lançamento de mais três CDs, chega ao número 22, mais de 450 músicas, da série Carnaval, sua história, sua glória. Um flagrante sonoro irretocável da famosa - ''é ou não é, piada de salão?'' - alma carioca das ruas.
Stuka, do beijo, era um avião militar alemão de mergulho na marchinha Dona Santa não é santa, de Humberto Teixeira. Mostrava que, pelo menos no início de 42, a guerra vista do Rio ainda despertava o riso. Sebastiana, dos irmãos Valença, curtia nonsense puro mas revelava que magricelas já não tinham vez.
Miss Criôla, de Arnô Provenzano e O. Lopes, pegava carona num dos grandes assuntos do final de 1954, o segundo lugar de Marta Rocha no Miss Universo. Mostra que o vocabulário politicamente correto, ao contrário das polegadas a mais, não estava na moda.
Beatles - As marchinhas eram pequenas reportagens, sempre divertidas, quase sempre esculhambativas, críticas, dos acontecimentos do ano anterior. Cabeleira do Zezé (Roberto Faissal e João Roberto Kelly) comentava no carnaval de 1964, o estouro cabeludo dos Beatles em 1963 com I wanna hold your hand. Gegê, de Eduardo Souto, quando falava que ''o seu pedido já foi, meu bem, despachado'', fazia caricatura da distribuição de empregos por Getúlio Vargas.
As músicas são apresentadas em suas gravações originais, com ótima qualidade de som, e revelam uma enorme quantidade de clássicos da MPB produzidos especialmente para o carnaval. Fala Mangueira, de 1956, samba de Mirabeau e Milton de Oliveira, com Ângela Maria, está entre as melhores que cantam o morro carioca. Confete, de 1952, de J. Júnior é uma das mais clássicas, e a última, para o carnaval, de Francisco Alves.
As faixas dos novos CDs obedecem ao mesmo critério de seleção dos outros discos da coleção. Sucessos fundamentais da festa, como Odete, de 1944, com o Trio de Ouro (atenção para o apito de Herivelto Martins e o solo de Dalva de Oliveira), e Implorar, de 1935 (atenção para o arranjo de Pixinguinha e a voz sem breque de Moreira da Silva) cruzam com marchas, sambas e frevos que não tiveram qualquer destaque nas ruas e salões - mas são saborosíssimos.
Em Bairros de Pequim, de 1948, aprende-se, por exemplo, que ''Existem em Pequim/ dois bairros, Fu e Lu/ que nem aqui no nosso/ São Cristóvão e Grajaú''. A polícia recolheu o compacto (do outro lado havia a catita Comprei um Buda) por temer que os foliões incluíssem palavras que não constassem da letra original. Deliciosa também era a O soro e os velhinhos, marcha de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, de 1950. O laboratório Pfizer, que hoje produz o Viagra, podia muito bem adotá-la como jingle: ''O soro vai ser um maná/ Os velhos velhinhos/ Vão ser outra vez brotinhos''.
Carnaval, sua história, sua glória é ainda uma boa oportunidade para se reencontrar grandes intérpretes esquecidos da MPB. No volume 20, Jorge Veiga, o caricaturista do samba, dá o tradicional show de malícia e divisão rítmica em Eu quero rosetar (''Por um carinho seu minha cabrocha/ Eu vou até a Irajá'').
No volume 21, com A hora é boa, o Bando da Lua revela o pique e alto astral que fariam Carmen Miranda convidá-los para longa temporada nos Estados Unidos. Na letra, Aloysio de Oliveira dá uma de Guimarães Rosa e inventa palavra sem qualquer sentido hoje e, segundo os estudiosos, na época também: ''A hora é boa/ pra virar pangaio/ no meio desse povaréu''.
Protesto - No volume 22, Blecaute, com voz personalíssima, faz o protesto social de Pedreiro Waldemar, de 1949, o mesmo ano em que apresentou a divertida General da banda: ''O Waldemar que é mestre no ofício/ constrói um edifício e depois não pode entrar''.
As marchinhas desapareceram com a popularização dos sambas de enredo no final dos anos 60 e hoje, com a decadência deste gênero também, o Monobloco precisou sair pelas ruas do Jardim Botânico no domingo animado pelo repertório pop de Raul Seixas. A cidade, sem chororô nostálgico, mudou e descobriu outros prazeres. Veja as fotos de carnaval na Rio Branco de Marcel Gautherot, em exposição no Instituto Moreira Salles, e ouça os divertidos documentos históricos, essência da carioquice, que são os CDs de Carnaval, sua história, sua glória.
Na mais antiga faixa dos três discos, Dondoca, de 1927, exalta-se como padrão de beleza a mulher de carnes moles. ''Não treme tanto a gelatina/ que o caldo entorna na terrina'', canta Gomes Júnior. Setenta e cinco anos antes das gatas musculosas do Monobloco cantava-se - e é preciso reverenciá-la para sempre na memória - o rebolar maravilha da mulher gelatina.
por: Joaquim Ferreira dos Santos
Fontes: Jornal do Brasil de 29.01.2002; Carnaval, sua história, sua glória, volumes 20, 21 e 22 - Revivendo (www.revivendomusicas.com.br);
http://www.samba-choro.com.br/s-c/tribuna/samba-choro.0201/1116.html.
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