segunda-feira, março 12, 2012

Tolosa, o campeão do Maxixe

O maxixe bem dançado/ no passo do jocotó,/ é melhor do que melado,/ gostoso como ele só.” Assim, numa simples quadrinha conduzida por música buliçosa o carioca no princípio deste século proclamava o sabor da nova criação coreográfica brasileira. Ao mesmo tempo em que nos clubes carnavalescos e revistas da Praça Tiradentes e adjacências maxixava-se com loucura empolgando participantes e assistentes com os requebros ritmados por bandas de música ou pelo dedilhado ágil do piano.

Tolosa (Antônio Pereira Guimarães) tinha então o seu reinado dentre todos que eram exímios maxixeiros. Pedro Dias, João Mattos (atores), Le Zut, Castrinho, Asdrúbal, Gilete e poucos mais, pois era ele o melhor. Nos muitos concursos que se realizavam nos Democráticos, Fenianos, Tenentes, Galopins, Pirilampos, Caturras, etc., dançando com Ermelinda, Vidinha ou Olinda Life, suas partenaires preferidas, saía sempre vitorioso. Ao invés de ser um estilista ou fantasista como o famoso Duque (Amorim Diniz) dançava o maxixe autêntico, sem figurações, isento de floreios de coreografia.

Tolosa, maxixeiro e “rower”

Desportista, associado do Clube de Regatas do Boqueirão do Passeio, um “garrafa”, como eram apelidados os do tradicional grêmio alvi-verde, Tolosa tinha a classificação de rower no anglicismo correntio da época. Impunha-se, no entanto, como maxixeiro visto que nos volteios coreográficos e acrobáticos da decantada dança ninguém o superava. Primazia que não lograva como “patrão” em virtude de — consoante o depoimento de Chico Brício (do Bola Preta), seu companheiro e colega de agremiação — o desgaste das noitadas prejudicar sua atuação no esporte.

Boêmio, pontificando nas festas dos “carapicus”, dos “gatos”, dos ‘baêtas”, dos “zuavos” onde o aclamavam à sua chegada e interrompiam as danças para que ele com suas damas favoritas se exibisse, Tolosa aparecia na rampa de Santa Luzia mal dormido, concluindo ali a farra. Conseqüentemente foram poucos os bronzes e medalhas que conquistou como participante de regatas oficiais ou íntimas. Deixou, porém, muitos troféus conquistados em competições maxixeiras que sua esposa Ana Guimarães e seus filhos Aloysio, Ary e Arlette guardaram envaidecidos durante muito tempo.

Antônio ganha o apelido de Tolosa

Batizado Antônio, desde menino o apelido de Tolosa passou a substituir seu nome, pois no jogo de frontão ou pelota basca que disputava com a gurizada assim o chamavam porque ele procurava imitar um famoso praticante desse esporte. Via-o participando dos torneios que se realizavam no antigo Jardim Zoológico do Engenho Novo e assimilando o seu estilo provocava o elogio dos companheiros: “Puxa! Você parece o Tolosa”. A alcunha propícia, cabível, ficou para sempre e foi com ela que se popularizou nos clubes de regatas e principalmente, como maxixeiro.

A princípio, vez por outra, o chamamento familiar aparecia nos jornais consoante registro recolhido de um matutino em 1915: “... Antônio venceu o torneio de maxixe realizado no Teatro República”. Mas, uma revista semanal, O Rio Nu, no seu estilo galhofeiro assinalava a mesma vitória impondo o apelido: “O Tolosa foi aquela garapa, fantasiou-se de maxixeiro embasbacando o pessoal que lhe tem inveja. Aí, turuna!”.

Predominava, contudo, a alcunha já então usual entre os familiares como se Tolosa não fosse apenas o nome ganho com seu virtuosismo esportivo.

Maxixe, dança proscrita

Apontado por Luiz Heitor em seu livro 150 Anos de Música no Brasil como sendo “o primeiro tipo de dança urbana” criado em nosso pais, o maxixe não tinha guarida no meio social. Isto por ser, segundo o definiu Oneyda Alvarenga, “sensual e muito desenvolto”. Ficou, portanto, restrita aos clubes carnavalescos e às revistas teatrais da temporada momesca que findavam, obrigatoriamente, com uma competição de maxixe entre representantes do castelo (Democráticos), do poleiro (Fenianos) e caverna (Tenentes). Confrontos esses sempre renhidos e empolgantes.

Algumas vezes nos próprios elencos encontravam-se excelentes maxixeiros como Pedro Dias, João Mattos, Otília Amorim, Maria Lina (que foi partenaire de Duque, antes de Mlle. Arlette Dorgêre e Gaby) e muitos outros, representavam, então, as agremiações disputantes. Nas comemorações dos cinqüentenários das revistas ou outros eventos, as sociedades então participavam com os seus melhores dançarmos e entre eles era forçosamente incluído Tolosa representando os Fenianos. Acontecia, como sempre, o seu triunfo, sob aplausos delirantes de toda a platéia à cunha.

Um campeão cuida de canários

Casando, Tolosa afastou-se das noitadas dançantes nos clubes camavalescos, nos cabarés e competições em teatro. O maxixeiro famoso que, embora sem o renome de Duque e Gaby a quem se deve a divulgação da dança brasileira no estrangeiro, foi seu melhor executante em nosso país, tornou-se chefe de família burguês e caseiro. Tinha apenas, como hobby, a criação de canários em sua modesta vivenda no Rio Comprido e depois, no Méier, onde faleceu em 1948 deixando pequena pensão (através do IAPC) para a dedicada esposa e seus três filhos.

Viu, contudo, seu nome perpetuar-se como virtuose já que aparecia sucedendo-o um grupo de novos impondo a discutidíssima dança: Tolosinha, Paulista (funcionário do Jockey Club), Turquinho (co-proprietário de um dancing na Avenida Rio Branco), Kito, Jayme Ferreira (praticante de luta livre) e pouquíssimos outros. Gente que nos difíceis e acrobáticos “parafusos”, “piões”, “cobrinhas”, etc., da terminologia coreográfica do maxixe, não o deixava morrer.

Acabaram, porém, sendo vencidos impatrioticamente pelo cha-cha-cha, rock’n’roll e twist vindos dos Estados Unidos e sem sabor algum de brasilidade.

(O Jornal, 10/3/1963)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

Hilário acusa Sinhô de plágio

Hilário Jovino Ferreira
Em 1920, Hilário Jovino Ferreira, iniciador dos ranchos no Carnaval carioca, “baiano legítimo, da gema, nascido, criado e vacinado na Cidade Alta da Bahia de São Salvador”, apontava o já popularíssimo Sinhô como plagiário. Fazia-o com sua autoridade não de “tenente” que o era da muito satirizada Guarda Nacional, mas de reconhecido conhecedor do autêntico samba cujas “rodas” freqüentava desde menino na “boa terra”.

Sem meios termos denunciava pelas colunas do Jornal do Brasil, onde pontificava um seu amigo, o cronista carnavalesco Vagalume (Capitão Francisco Guimarães) a ilegitimidade da autoria do Fala, meu Louro. Acusação que o jornalista, sempre ávido por uma “fofoca”, imediatamente divulgou com a fidelidade textual: “. . . é um dos mais audaciosos plágios de que há notícia na história dos sambistas”. Isto acrescido de solene desafio ao acusado para que ele e o acusante se submetessem à prova pública fazendo cada um o seu samba.

Um samba agita a “boa terra”

Embora o Fala, meu Louro tivesse sentido ostensivo de glosa política focalizando a personalidade de Ruy Barbosa, subjetivamente seus versos ironizavam também os baianos tidos e havidos como “donos” do samba. Dizendo: “a Bahia não dá mais coco pra botar na tapioca, pra fazer o bom mingau pra embrulhar o carioca”, José Barbosa da Silva, o Sinhô, fazia a um só tempo duas provocações. Coisa que era muito de seu gosto, pois, antes, em 1918, o Quem São Eles?, composto com tal intenção, teve pronta resposta de Pixinguinha no Já Te Digo.

Voltando, dois anos depois, a provocar os baianos, que no samba tinham como seu “maioral” Hilário encontrou pronta reação. O Tenente que, na mesma oportunidade de 1918, também participara da querela musical havida, quando lançou o Não És Tão Falado Assim, não perdoou o antigo rival. Assim que Sinhô lançou e via caminhar para o sucesso sua nova produção, correu ao amigo jornalista com quem contava na imprensa para ver posta em letra de forma a denúncia do plágio. Provaria, então, que a Bahia ainda dava coco e não pretendendo embrulhar ninguém, não o seria, no entanto, embrulhada por um carioca.

Desafio em feitio de samba

Um dos muitos sambas da parceria Noel Rosa-Vadico tem um verso onde ela diz haver feito o seu “samba em feitio de oração”. Pois bem, antes, nessa lide musical de 1930, Hilário, ao taxar Sinhô de plagiário, lançou, como ficou dito, um desafio, não só ao acusado, mas a “todos” os sambistas para que fizessem, de momento, um samba. Concluía o repto, que o mesmo Vagalume tornava público no referido matutino depois de condimentá-lo com certa dose de “veneno”, juntando-lhe um samba ferino, maldoso: Entregue o Samba aos Seus Donos.

Lia-se então o sarcástico poemeto: “Entregue o samba aos seus donos,/ é chegada a ocasião!.../ Lá no Norte não fizemos/ do pandeiro profissão.” A seguir vinha o coro: “Falsos filhos da Bahia/ que nunca pisaram lá,/ que não comeram pimenta/ na muqueca e vatapá,/ mandioca mais se presta,/ muito mais que tapioca./ Na Bahia não tem mais coco?/ É plágio de um carioca.” Era, não resta dúvida um revide duro, na “batata”, à canção que ironizava a decantada “terra de todos os santos” proclamando a falência de seu coco.

O acusado “se mancou”

A gíria carioca, farta e prolífera, consigna a expressão “se mancar” que espontaneamente atentando contra a gramática, significa, entre seus vários sentidos, esconder-se, fugir ao debate, não topar um desafio. Sinhô, ao que se tem conhecimento, não contestou a acusação do Tenente. Surgiu conseqüentemente outro libelo em forma de samba, reforçando a glosa mordaz de Hilário. No mesmo jornal, dias após, Pedro Paulo, renomado autor de um punhado de ranchos carnavalescos, publicava Olé, cujos versos secundavam, também em ritmo de samba, o deboche feito anteriormente.

Acostumado a escrever letras alegóricas, pomposas, Pedro Paulo mostrava-se igualmente capaz de ser irônico ao cantar: “Todo mundo faz um samba,/ eu também quero fazer,/ mas dizer que é da Bahia,/ olé!,/ não pode ser./ A Bahia é boa terra, já não dá mais coco,/ não!, quem quiser tudo saber/ erra,/ olé!,/ é toleirão. Pelo suco tudo passa,/ basta falar em iaiá,/ mas um sambinha/ sem graça,/ olé!,/ não vem de lá.”

Tendo já agora que refutar as imputações de plagiário e revidar com música e versos como era de praxe nas polêmicas entre sambistas, o achincalhe de dois famosos rivais, José Barbosa da Silva não veio à liça, “se mancou”.

Apesar de tudo, a popularidade

A acusação de plagiário feita por figura proeminente do samba como o Tenente Hilário Jovino Ferreira, reforçada, ainda nesse 1920, quando do lançamento do Pé de Anjo, não afetou a popularidade de Sinhô. A primeira, do Fala, meu Louro, ficando circunscrita às rodas dos sambistas não chegou ao conhecimento do grande público. A segunda, identificada facilmente, pois se apontou a origem em uma música francesa, apesar de ventilada na imprensa, também não impediu o sucesso do aproveitamento irregular. Ambas triunfaram de maneira inconteste.

Contando com verdadeira multidão de admiradores, tendo toda a cidade cantando seus sambas, Sinhô fazia-se superior. No próprio Pé de Anjo, ao dizer: “eu tenho uma tesourinha que corta ouro e marfim, serve também pra cortar as línguas que falam de mim”, alheiava-se ao debate, às provocações. Deixava que seus fãs, os fazedores do êxito de suas composições, contestassem seus acusadores. E eles apareciam sempre, pressurosos. Como o fizeram Jacobino Dias e Romualdo Silva num sambinha de rima imperfeita em que diziam: “No samba só conhecemos/ o Sinhô das criaturas,/ não há um samba dele/ que não se cante em todas as ruas.

Pouco lhes importava que fossem ou não, plágio, cópia, utilização dolosa de trabalhos alheios.

(O Jornal, 3/3/1963)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

Caninha, o “Imperador do Samba”

José Luís de Moraes
Já que naquele tempo o negócio era na base da autopromoção, sem plebiscito, sem referendum, cada um classificando-se por iniciativa própria, Caninha proclamou-se "Imperador do Samba". Sinhô, vaidoso, sem constrangimento, intitulava-se "Rei". Logo, sem destronar o seu rival, deixando-o no trono que criara o José Luís de Moraes, popularizado sob o apelido de Caninha, evitando qualquer disputa, satisfazia-se em imperar. Com isso, os dois competidores estabeleciam então (1927) a primeira “coexistência pacífica”.

E o matutino A Pátria, a propósito de um piquenique que O grupo musical do Zé Luís ia realizar nas Furnas da Tijuca, estampava O seu retrato com a seguinte legenda: “Caninha, o Imperador do Samba”. Daí em diante esse título passou a ser por ele usado com muita assiduidadee igual orgulho. Só mais tarde (1933) ao vencer no Teatro João Caetano (em parceria com o Visconde de Bicohyba) um concurso de músicas carnavalescas com a sua composição É Batucada, relegou tal império. Passou a jactar-se de ser o único que tinha um “diploma oficial de sambista”.

Genealogia do apelido

Esse Imperador e depois “Sambista Oficial”, morreu pobre, bem pobre mesmo, no subúrbio de Olaria, em junho do ano findo, tendo a seu lado a velha companheira e os amigos certos, Pixinguinha, Donga, Bide e pouquíssimos outros. Deixou, no entanto, com o apelido que lhe adveio de seu emprego de vendedor de roletes (rodelas) de cana, uma bagagem importante em nosso cancioneiro popular. Músicas todas elas de melodia e letra simples, despretensiosas, que o povo cantava nas ruas e principalmente no tríduo carnavalesco.

Embora a sua infância difícil, de órfão, nascido em Jacarepaguá e criado na Rua Senador Pompeu, o obrigasse a ser aprendiz de mecânico e jornaleiro na gare da Central do Brasil, foi a venda de pedaços de cana que lhe deu a alcunha. Cantava o seu pregão: “Olha o rolete de cana, de caninha doce!”, e o seu nome José desapareceu para que vingasse absoluto o apelido Caninha Doce, depois simplificado e consagrado em suas marchas e sambas apenas como Caninha. Uma genealogia fácil, intuitiva, do apelido de um “Imperador” e “Sambista Oficial”.

“Rei” versus “Imperador”

Oficiais do mesmo ofício, procurando cada qual dominar o ambiente musical com as suas produções, José Luís de Moraes (Caninha) e José Barbosa da Silva (Sinhô) faziam sua guerra fria, diplomática, simplesmente musical. Ficou até atestando tal contenda a conhecida quadrinha: São dois cabras perigosos,/ São dois cabras infernais,/ José Barbosa da Silva,/ José Luís de Moraes. Versos cuja autoria se atribui, segundo Brício de Abreu, ao revistógrafo Carlos Bittencourt e, nos informes de Almirante e Sérgio Cabral, ao próprio Caninha.

Procuravam competir um com o outro sempre que se oferecia oportunidade e isto aconteceu algumas vezes como, para exemplo, em 1922, quando o fabricante de Lugolina promoveu um concurso de músicas carnavalescas. Venceu esse certame Caninha impondo a marcha: “Ai! ai!,/ Me sinto mal/ Depois do Carnaval”, enquanto Sinhô descia para o segundo lugar com: “Não é assim,/ Assim não é/ Não é assim/ Que se maltrata uma mulher”. Rivalidade, como se viu, decidida em clave de sol e nas cinco linhas da pauta musical, na dignidade de um “Rei” e um “Imperador”.

Contribuição ao Carnaval

Compositor nitidamente popular, procurando apenas atender ao gosto do povo, quase toda a bagagem musical deixada por Zé Luís de Moraes está ligada ao Carnaval que o tinha como um dos adeptos mais ardorosos de um outro “Rei”, o Momo. Feniano, sempre presente aos bailes dos Gatos (apelido dado aos sócios) dedicou ao veterano clube carnavalesco um maxixe bem buliçoso, porém pouco difundido. Faça-se, então, conhecido o seu estribilho: “No salão dos Fenianos/ Existe muita alegria./ Ai! ai! ai!/ Quer de noite, quer de dia./ Sapateia todo o ano/ Fazendo roda no meio./ Este samba feniano/ Quem não dança só faz feio.

Antes, menino ainda, já tomava contato com os maiorais do Carnaval na casa da famosa Tia Sadata (que muitos confundem com Tia Assiata) integrando o Rei de Ouro, ali fundado e que Donga afirma ter sido o primeiro rancho oficial carioca. Mais tarde, sempre carnavalesco, a par de seus sambas e marchinhas (Esta nêga qué me dá, Me leva seu Rafael, etc.) integrou outro renomado rancho, o Recreio das Flores, onde, disseram alguns de seus biógrafos, foi mestre de canto. Tratava-se, no entanto, de notório equívoco, pois sendo a sua voz fraca, reduzida, não poderia ter essa atribuição que, parece, era confiada ao vibrante João Moleque.

Sambista morre com música

Morrendo aos oitenta anos, ou beirando isso, pois o seu nascimento é dado em 1881 ou 1883, José Luís de Moraes, o simplesmente Caninha nada legou à sua “velha”, como ele chamava amistosamente a companheira de uma longa e difícil vida. Um antigo “Imperador” e “Sambista Oficial”, cuja derradeira produção foi uma marcha, espécie de hino, dedicada aos futebolistas brasileiros campeões do mundo em 1958, exaltando o memorável feito, baixou à uma cova rasa, sem honrarias. Deixou, talvez atestando sua oficialização de sambista, o diploma que lhe dava essa condição.

Ravel fez para uma “infanta defunta” uma pavana onde seu talento de musicista se patenteia forte, exuberante. Sinval Silva ao compor Imperador do Samba, interpretado esplendidamente por Carmen Miranda, talvez não tenha pensado no veterano Caninha que foi justamente isso: “Imperador” do nosso ritmo. Motivo e título de sua música. Justíssimo, portanto, que se atribua ao saudoso Caninha tão glorificantes versos:

Silêncio!/ Façam ala / Ordem e respeito/ E nem um grito de bamba./ Quero tamborins em grande gala/ Que vai pasar/ O Imperador do Samba.

(O Jornal, 9/12/1962) 
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

Aprendi com um rei

Graças ao bom Deus, que atende a todos os meus desejos e aspirações, vim a ter um discípulo de violão e modinhas que seria a maior revelação do ano...”. Assim dizia, em 1929, José Barbosa da Silva, o popularíssimo Sinhô, num artigo que, com sua assinatura, aparecia na revista Wego editada pela tradicional Casa Carlos Wehrs, ainda hoje existente na Rua da Carioca. Consolava-se com essas palavras depois de uma queixa que, no mesmo escrito, formulara linhas antes, triste, pesaroso: “Eu que dou minhas composições musicais e versejadas, sempre lutei com a falta de um cantor a quem pudesse infundir o meu estilo próprio, por que não dizer a minha escola...".

E essa revelação, motivo a um só tempo, de consolo e orgulho do já famoso nome do nosso cancioneiro popular, era, ainda no artigo em referência, logo apontada: “... esse distinto moço, rapaz da melhor sociedade carioca, musicista e acadêmico de uma das nossas escolas superiores, também sportman, campeão de raquete, o fidalgo e salutar divertimento que refina o caráter e dá vigor ao corpo, esse meu amigo é Mário Reis...”.

Aluno do “Rei”

Vaidoso, ou no dizer de um estudioso de nossa música popular (Sérgio Cabral), “talentoso e pernóstico”, Sinhô ao apresentar com tal efusão um jovem que vinha da alta, da haute gomme (como era da voga galicística da época), não escondia seu entusiasmo. Mário Reis, de fato, com sua maneira de cantar própria, diferente dos muitos intérpretes, atendia àquilo que ele, o “Rei do Samba”, como já se havia auto-cognominado, chamava de “minha escola”. Suas composições apresentadas de uma nova maneira, simples, sem modulações pretensiosas, ao jeito de declamação conduzida por um tema melódico, adquiriam uma nova característica, tinham o exato sabor de coisa popular que a todos agradavam.

O moço branco, bem trajado, de família importante, que entrava num meio bem diverso e abaixo do seu, criando uma “escola” ou “bossa”, como mais tarde a gíria carioca sempre em renovação, viria a classificá-la, fazia ufanoso o “Rei”, o seu mestre. Seu primeiro disco, gravado na veterana Odeon, a cujo estúdio foi levado por Sinhô como discípulo dileto para pôr na “chapa” com a qual estreava as composições Que vale a nota sem o carinho da mulher e Carinho da vovó, denominadas pedantemente pelo autor (J. B. da Silva), a primeira como “samba lânguido” e a segunda de “romance pedagógico”, resultou num estrondoso sucesso, seguido, de imediato, por muitos outros, formando todos uma discografia memorável, há pouco (em 1960) ligeiramente mostrada no long-playing “Mário Reis em Hi-Fi”. Bem razão, pois, tinha Sinhô em dar “graças ao bom Deus” pelo discípulo que lhe proporcionara.

Um “Bem” toca violão

Da família Silveira Reis, criado distante das rodas dos sambistas e dos musicistas populares, Mário Reis, desde rapazola, sentiu-se atraido pelo ritmo e melodia das composições fáceis, despretensiosas, que a gente carioca cantava. Daí decidir que deveria aprender um instrumento onde as pudesse executar acompanhando-se nos ensaios e tentativas que fazia para aprendê-las. Seria, pois, o violão, o tão decantado “pinho”, embora não bem recebido nos meios sociais que freqüentava o escolhido para atender ao seu insopitado desejo.

E um dia, na casa A Guitarra de Prata, outro tradicional estabelecimento da já aludida Rua da Carioca, travava conhecimento com José Barbosa da Silva, o “Rei do Samba”, valendo-se então do feliz ensejo para pedir-lhe que o tomasse como seu aluno.

Surpreendendo-se com a solicitação, mas exultante em sua vaidade de ver que um grã-fino, um elemento da “gente bem” vinha a ele reconhecendo sua “Majestade”, Sinhô acedeu e começou, incontinenti, a dar suas primeiras aulas. Logo nas primeiras lições o aluno mostrava-se, a par da facilidade com que aprendia um cantor apreciável, de feitio diferente, capaz de impor vitoriosamente uma nova e agradável maneira de interpretar suas produções, sempre bem recebidas pelo povo. O jovem Mário Reis passou, em conseqüência, a ser o discípulo muito querido de um “Rei”.

Surge uma “escola” ou “bossa”

Lançada a nova maneira de cantar ao ritmo característico carioca, criada a nova “escola” ou “bossa” que, segundo um outro autorizado estudioso de nossa música popular (Lúcio Rangel), em Sambista & Chorões, passaria “a influenciar os cantores mais velhos e de nome feito”, Mário Reis, criador do estilo exaltado por seu professor de violão, ligava seu nome ao cancioneiro da Sebastianópolis. Mais tarde, nas pesquisas ou simples recordações que viriam a ser feitas para documentar ou apenas falar da música ligeira, espontânea, que compositores de pouco saber dão quase diariamente à terra da Guanabara alegrando-a, proclamar-se-ia o seu pioneirismo. Isto foi o que fez Vasco Mariz apontando-o em seu livro A Canção Brasileira como intérprete oficial de Sinhô, timbre inconfundível que marcou época e criou uma escola...

Razão bastante para que hoje, afastado das rodas do samba, mas atento e ternamente enamorado do ritmo do qual foi intérprete original, diferente, diga, sem a vaidade do mestre que o ensinou a dedilhar o “pinho”, apenas como simples gracejo: “Aprendi a tocar violão com um Rei”. O “Soberano” de quem mereceu, para seu orgulho, louvor desmedido juntamente com um agradecimento a Deus, que sempre atendia a todos os seus desejos, principalmente dando-lhe um discípulo de violão e modinhas como Mário Reis.

(O Jornal, 24/10/1962)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

A Penha está aí

Mulher, a Penha está ai. Eu lá não posso ir e um favor vou lhe pedir: Me leva um braço de cera à Santa padroeira, foi o que lhe prometi...”.

Assim, ao ritmo buliçoso de um sambinha, o musicista popular, tão correto “pagador de promessas” quanto o bizarro herói do filme que bem alto elevou nossa cinematografia, resgatava um compromisso assumido.

Simples homem do povo a quem dedicava suas produções, mandava levar àquela que lhe proporcionara uma graça, modesto “braço de cera”. Objeto contra o qual, sem dúvida, não surgiriam os mesmos embargos causados à enorme cruz que o ingênuo Zé do Burro tentou colocar diante do altar de uma das muitas igrejas da Bahia.

Seu sambinha, de letra e melodia fáceis, correndo de boca em boca, proclamaria, juntando-se a muitos outros de igual objetivo, os favores, as benesses que a Santa concedia a seus devotos, a quem lhe dirigia orações de súplica. Era, além do singelo cumprimento de uma promessa, a maneira pela qual despretenso compositor popular tornava público seu sentimento de gratidão.

O braço modelado em cera representava a parte de seu corpo atingida por enfermidade ou acidente que o privara de dedilhar o violão ou o cavaquinho ou, talvez, bater no pandeiro.

Restabelecido e já podendo manejar seu instrumento divulgava com música a graça alcançada.

Portugueses iniciaram, sambistas continuaram

Iniciados por portugueses, os festejos em louvor de Nossa Senhora da Penha da freguesia de Irajá tiveram as mesmas características das romarias que realizavam em sua terra. Para o então longínquo subúrbio, aonde se chegava conduzido pelos vagarosos trens da Leopoldina Railway, cuja estação de partida situava-se nas proximidades do antigo Jockey Club, ou em pequenas embarcações que atracavam no Porto de Maria Angu, afluíam nos domingos do mês de outubro muitas centenas de romeiros. Alguns levavam suas guitarras, seus bandolins, e todos com seus familiares, sobraçavam farnéis fartos de comedorias para o repasto ao ar livre regado por um bom “verdasco” ou “alvarelhão”. Tudo no exato costume luso que aqui continuavam.

Mais tarde, brasileiros comungando com os irmãos de além-mar, deles descendendo ou não, participavam também dessas festividades em que o cunho religioso se diluía e era profanado com manifestações pagãs.

“Faduchos” e bebedeiras enchiam de algazarra o imenso arraial que dava acesso à longa escadaria de trezentos e sessenta e cinco degraus através da qual se atingia a penha onde, na igreja ali erigida, oficiavam-se missas gratulatórias em louvor da Santa. Já então, viajando nos mesmos comboios morosos da companhia inglesa, conduzidos em carroças engalanadas com bandeirinhas de papel de cor e ramagens, ou montando “pangarés”, encontrava-se entre os romeiros grande número de patrícios nossos.

Conseqüentemente a música brasileira de cunho popular e a cerveja preta (“barbante”) substituíam ou mesclavam-se aos fados e ao vinho. O samba, ainda meio confundido com o lundu, o tanguinho e o maxixe, ia repontando na romaria luso-brasileira da festa da Penha.

O samba toma conta do arraial

Espúrio, perseguido pela polícia, realizado às escondidas, o samba nas suas manifestações precárias, em “rodas” (círculos de participantes, de acompanhantes ou assistentes) encontrou na festa da Penha local próprio para se realizar. Trajando roupas novas, ritual que criaram e observavam, os sambistas marcavam encontro no arraial para, em confraternização quase sempre de pouca duração, pois vários conflitos ocorriam entre eles com tiros e navalhadas — entoar os seus refrãos: “ô maiadô seu maia...”, “a lei mandô derrubá ê ê...”, etc. E a aguardente nos seus muitos apelidos (“branquinha”, “brasa”) animava os sambistas, Fortalecia suas pernas para as rasteiras, as “bandas”, a derrubada violenta que substituía a umbigada amena de que falam os folcloristas.

De burguesa romaria lusa, típica festa popular trazida por imigrantes ainda bem presos aos recreios de suas aldeias, a Penha nos seus folguedos do mês de outubro dedicados à Santa padroeira da localidade passou a ser romaria temida. As barracas espalhadas pelo arraial reuniam em suas mesas os sambistas destemerosos, de calça “boca de sino”, que com suas companheiras, também valentes, afeitas às brigas generalizadas, aos “rififis”, bebiam à farta e erguiam vivas a propósito de tudo. O mesmo acontecendo nos piqueniques onde, estendendo toalhas na relva, eram muito raras as famílias de portugueses que se arriscavam a prosseguir a tradição de um bródio campestre à moda da terra onde nasceram. O samba rude, grosseiro, simples toada tosca conduzindo uma frase, enchia o ambiente onde outrora se ouvia lângidos fados.

Começo do Carnaval

Quando o Carnaval começou a ter um cancioneiro próprio ou a ele destinado, atraindo os mais famosos compositores populares, os festejos da Penha, numa época em que a divulgação tinha apenas como único meio eficiente a imprensa, propiciaram aos sambistas, já então bem aceitos e integrados no convívio social, ótimo campo para lançar suas produções. Sinhô com o seu Grupo Fala Baixo, Caninha e sua turma, Donga, Pixinguinha, João da Baiana, Heitor dos Prazeres e outros apareceram no arraial entoando sob os aplausos da multidão que ali se reunia as suas músicas para o tríduo de Momo. Os do grupo cantavam e depois, aprendendo rapidamente, todos faziam coro consagrando, logo nesta primeira audição, a letra e melodia que iam animar a folia em fevereiro próximo.

Servindo de prelúdio ao Carnaval, espécie de festa das músicas a ele destinadas, a festa da Penha profanava o sentido religioso das comemorações em louvor da Santa que se venerava pelos seus milagres, pela bondade com que atendia a quem lhe dirigia orações. Os sambistas, entretanto, a seu modo, sem obediência ao que determina a certa e boa prática do catolicismo, demonstravam respeito e gratidão. Iam bem cedo às missas que se rezavam, levavam flores, e aqueles que faziam promessas as cumpriam, corretos e contritos. Houve mesmo um deles, o popularíssimo Cartola que tendo pedido “à Santa padroeira proteção, só não subiu a escadaria ajoelhado para não estragar o terno que lhe foi emprestado”.

Hoje simples quermesse

Hoje, sem a sua característica que lhe deu tradição, os festejos da Penha, ainda realizados nos domingos do mês de outubro, têm apenas o cunho de simples quermesse, dessas que no interior são realizadas ao ensejo de datas religiosas ou em louvor aos padroeiros de cidades ou vilas. Ainda se encontram no arraial as barraquinhas, os piqueniques familiares e os vendedores de cordões com balas e roscas que os poucos romeiros penduram no pescoço como em outros tempos. Falta, porém, a afluência numerosa e álacre que se recordou acima.

Aquilo que em diversas fases popularizou a festa da Penha, desde sua origem nitidamente lusitana até chegar a marcá-la como pródromo do Carnaval com o lançamento de sambas e marchinhas dos mais famosos cultores de nossa música popular, não mais se vê no arraial, nem em sua longa escadaria. Para consolar os saudosistas, não dei- xando morrer a tradição, há apenas agora, lá no alto, imponente, inteiramente iluminada à noite de todos os domingos de outubro, a igreja da venerada e milagrosa padroeira dos sambistas.

(O Jornal, 21/10/1962)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.