sábado, fevereiro 25, 2012

Nosso Sinhô do Samba - Parte 3

Sinhô por Álvarus
Sinhô era temperamental. Um emotivo. Daí a tradição de brigão que dele ficou, ainda que as suas brigas não tivessem conseqüências maiores. Indispunha-se momentaneamente com os companheiros e logo esquecia para daí a pouco novamente provocar turras, ou topá-las se a provocação vinha dos outros, o que não era raro notadamente nos seus primeiros anos de compositor.

A glória que lhe veio rápida, embora bem diversa da que hoje favorece os artistas, pois também lhes dá quase a indispensável compensação financeira, mais lhe acenderia os humores. Com apenas dez anos de produção, ganhou ‘oficialmente’ o título de “Rei do Samba” (1) numa época em que não havia muitos disputantes do título. Mas os havia de valor. Pode-se dizer que eram poucos mas bons. O título, no entanto, já lhe outorgara o povo, inclusive através do julgamento de oficiais do mesmo ofício.

Naturalmente pernóstico e além disso atucanado pela inveja e despeito de alguns, Sinhô se mostrava de quando em quando irritadiço. Sobre essa sua característica poucos divergem. Mozart de Araújo teve a impressão de que o sambista era algo intratável. Muito vaidoso. Certa vez o viu deblaterando na Casa Édison. Reclamava, ao que parece, melhor paga e em dado momento, mais exaltado, exclamou abrangendo com um gesto largo as prateleiras do estabelecimento:

— Tudo isso é meu!

Querendo significar que a prosperidade do incansável Fred Figner em grande parte lhe fosse devida.

Sob o aspecto do gênio, Sinhô não é bem referido por muitos dos que o conheceram. Uns o dão como muito mentiroso, ou melhor, gabola.

‘Conversava’ muito. Prometia ainda mais, sem nenhuma intenção de cumprir. Exagerava na vanglória. Tinha talento, afirma outro, mas era pretensiosíssimo. Falava mal de muitos. Era o que hoje se chamaria fofoqueiro.

Manuel Bandeira, que lhe foi apresentado na câmara-ardente de Zeca Patrocínio, na igreja do Rosário, teve impressão terrível do sambista de quem era admirador e a quem dedicou página antológica:

“Sinhô tinha passado o dia ali, era mais de meia-noites ia passar a noite ali e não parava de evocar a figura do amigo extinto, contava aventuras comuns, espinafrava tudo quanto era músico e poeta, estava danado naquela época com o Vila e o Catulo, poeta era ele, músico era ele. Que língua desgraçada! Que vaidade!”

A propósito, R. Magalhães Júnior conta que no velório, lá pela madrugada, Sinhô bastante ‘alto’ se aproximou do caixão e quis prestar uma homenagem ao grande amigo morto:

— Zeca, meu filho... Escuta aqui... Estás ouvindo?

E com o olhar cravado na face do morto, começou a tamborilar um samba na madeira do próprio caixão. De repente, volta-se para Álvaro Moreira, quase num grito:

— Dr. Álvaro, o Zeca está se mexendo!

Heitor dos Prazeres. com quem teve alguns dissídios por causa de trechos de sambas, afirmou que Sinhô era mesmo tratado pelos companheiros como o leviano! Não o considerava mau e sim malandro.

Contudo, mesmo os que fazem ainda hoje tais afirmações não lhe negam qualidades de bom companheiro em outros instantes. E a quase completa ausência de maldade nas suas fofocas e invenções, a que a maioria não dava grande importância. Brigava com todo mundo, mas ninguém era seu inimigo. E teve amigos devotados e entusiastas como José do Patrocínio Filho, Luís Peixoto, Álvaro Moreira, Vila-Lobos, Benjamin Costalat, Mário Reis, Augusto Vasseur etc. Procurava ser polido, era divertido e exuberante e se esmerava no trajar.

Juntem-se à vaidade, ao renome que logo granjeou, as dificuldades da vida, os seus problemas de ordem íntima e sentimental e a inveja que provocava e aí estarão justificados as suas brigas e azedumes.

Quando lançou o Quem são eles?, teve réplicas até de Hilário, o bom Hilário. A que mais lhe deve ter atingido foi, repitamos, a invectiva sonora dos irmãos Pixinguinha e China, na verdade a mais impiedosa, pois além de lhe espinafrar a carcaça, aludia a seu fracasso na flauta, instrumento aliás que nunca o seduziu. Ferino e direto, o samba-resposta a um simples título tomado como deboche tonteou o sambista estreante que procurou contornar a situação (2). Aproximou-se do Clube dos Democráticos, a quem dedicou o samba Confessa meu bem (3), composto para o Carnaval de 1919. Ele mesmo ao piano, na sede do veterano clube, iria divulgá-lo. Ou trabalhá-lo, como se diz hoje. E já na primeira noite de apresentação, toda a sala acompanhou o pianista-compositor. cantando:

Confessa, confessa
Meu bem
Fala, fala, fala,
Meu bem
Que eu não digo nada
A ninguém.

Lingua malvada e ferina
Falar de nós é tua sina
Vou-me embora, vou-me embora
Desse meio de tolice
Estou cansado de viver
De tanto disse-me-disse
Ai, que gente danada
Ai! Não confesso nada.


Como se depreende dos versos, Sinhô aí faz alusões claras e diretas. Inegável que não somente topava provocações como as fazia. Revidava indiretas (ou diretas), formulava queixas em tom nada cordial e gostava de caricaturar também. Em Pé de pilão, marcha carnavalesca de 1922, ao lado de um estribilho lírico, traça um perfil gaiato.

És um mofino,
fino
És narigudo
gudo
Tens pernas finas
finas
E és pançudo
çudo.


Teria endereço? Quem sabe lá? Talvez simples brincadeira. Mas, e em outras composições?

Para o prestígio de Sinhô, cada vez mais acentuado, deveria ter contribuído a sua amizade com o negro Assumano. Henrique Assumano Mina do Brasil, ou o Pai Assumano. Almirante assim se refere ao famoso negro que faleceu em 1933: “Era uma figura impressionante de preto: morava no número 191 da rua Visconde de Inhaúma, num sobrado que conheci. Na sala, nos quartos, pelos tetos, estavam penduradas ervas de virtudes medicinais que espalhavam um cheiro acre que fermentava o ambiente, porque as janelas nunca se abriam. Ninguém ali podia assobiar, falar em mulher ou no diabo”.

Assumano era compadre de Irineu Machado e, segundo a versão corrente, Sinhô nele cria cegamente e não lançava nenhuma das suas composições sem receber previamente a bênção do Príncipe dos Alufás, da lei de Mussulmi ou Mussumiri. Mariza Lira informa que “a primeira audição de suas músicas era feita na residência de Assumano. Acreditava Sinhô que a popularidade de suas composições era devida, unicamente, àquela influência espiritual”. E acrescenta, divergindo de muitos e talvez um pouco aquém da realidade: “Modéstia natural dos que têm valor”.

Certo é que o sambista, como nota ainda Almirante, apesar de carioca legítimo, tinha especial predileção pelos costumes da Bahia e crendices dos seus negros. Sua paixão pela temática baiana viria a criar-lhe casos e despertar ciúmes dos baianos falsos ou legítimos do Rio.

A briga musical já não seria evitável. Sinhô, vitorioso, contando facilidades para a edição das suas composições, não perderia ensejo de responder às críticas e remoques com que o feriam. E uma dessa respostas, dentro da linha fetichista, era o Vou me benzer (1919-1920), também denominado As Criaturas:

Há criaturas que vivem
Porém com tal influência
Que parece ser por elas
Que a gente tem existência.

Vou me benzer
Para me livrar
Desses maus olhos
Que querem me botar.


Desenho de Acquerone - Arquivos Almirante
Museu da Imagem e Som
As suas implicâncias com o China, irmão de Pixinguinha, ainda o fariam voltar à liça e dessa vez com uma composição que seria o maior sucesso popular a marchinha pioneira O Pé de Anjo (1920). Ao que dizem, Sinhô pretendia fixar na marcha os pés enormes de Otávio da Rocha Viana, o China:

Eu tenho uma tesourinha
Que corta ouro e marfim
Serve também pra cortar
Línguas que falam de mim.

Ó pé de anjo, Ó pé de anjo
És rezador, és rezador
Tens um pé tão grande
Que é capaz de pisar
Nosso Senhor, Nosso Senhor.


Certa vez um dos seus desafetos ocasionais (4) tentou agredir o compositor de Quem são eles?. A turma do deixa-disso, não-faça-isso (hoje: deixa-pra-lá) impediu que a coisa se complicasse. Mas Sinhô não esqueceu a ofensa e se valeria do seu habitual processo de revide ou provocação, lançando o samba De boca em boca (1921), depois popularizado com o título O Boi e mais tarde reeditado com a denominação de Segura o boi. Tanto no subtítulo como nos versos era evidente a reação:

Vou lhes confessar sem temor
E mesmo posso jurar
Eu tenho fé em Deus
Que não hão de me matar.

Segura o boi
que o boi vadeia
o boi só está bem
nas grades de uma cadeia.

Deus só quem tem direito
De minha vida acabar
Fica maluco, ó sim
Quem nesta coisa pensar.


De 1924 é Ave de rapina, nome de samba nada carnavalesco. Os versos ao que parece são uma queixa, uma incontida recriminação:

Quem dá esquece
Quem apanha quer vingar
O tempo é pouco
Pra quem não pode esperar.

Apita agora
Ave de rapina
Apita agora
Que é a tua sina.

Formaste o pulo
Como a onça mais ligeira
Fizeste capa
Da nossa pura bandeira.


Simples poema de carnaval ou válvula aberta para a diatribe com uma ave de rapina que apita?

Entre os seus desafetos houve quem o achasse língua ferina. E até Manuel Bandeira, como vimos, taxou-o de língua desgraçada. Mas, por seu turno, o sambista nunca cessou de queixar-se da língua ferina dos outros. Em Quando come se lambuza, samba do Carnaval de 1923, de boa letra, assim a conclui:

Arria a mochila e fala direito
Arria a mochila e fala direito
Tu sabes, língua ferina
Quem é bom já nasce feito.


A frase do último verso lançada no samba Fala meu louro ele a repetiria ainda em outras composições, como no samba de 1928 Quem fala de mim tem paixão, variante do nome de um bloco carnavalesco (Quem Fala de Nós Tem Paixão). Esse samba Sinhô o classificaria de ‘sambamaioral’, o que é outra fórmula de provocação. E não se esqueça que já na famosa marchinha O Pé de Anjo, o compositor se queixava da língua ferina dos outros advertindo sobre a existência de uma tesourinha para cortá-las. O tema ainda retornaria em 1928, quando lançou o samba Tesourinha, em cuja capa (edição Irmãos Vitale) figura uma grande tesoura cortando a língua de um mulato esvaporido (desenho de Wantick).

Felizmente as brigas de Sinhô acabavam em sambas. As agressões, os remoques, a inveja, as provocações e injustiças instigavam o compositor. E o que ele não podia revidar em taponas, tiros ou palavrões, faria mais tarde em sambas, alguns verdadeiras jóias do nosso cancioneiro, cujos versos não traíam os motivos rancorosos dos quais se originavam.

Sabiá (1928), uma das suas mais belas composições, foi composta logo após o desenlace de um dos seus casos sentimentais. De início Sinhô quis reagir violentamente. Confidenciou suas mágoas e seus intuitos a amigos, mas acabou o Sinhô brigão de gênio bom extravasando sua queixa e sua vingança pela forma habitual, a canção:

Quem roubou o meu sossego
A Deus eu fiz entregar,
Pois eu hei de ver no mundo
Alguém por mim se vingar.


Mariza Lira dá versão à notícia de que era sempre com emoção, que ia até à água nos olhos, que Sinhô ouvia cantar esse lindo samba.

Alguns biógrafos e historiadores relatam que para se impelir o nosso José do Patrocínio (pai) aos grandes rasgos de eloqüência bastava que o insultassem, espicaçando-lhe os brios, com a invectiva marcante: - negro!

Com Sinhô dar-se-ia quase a mesma coisa. Quem quisesse empurrá-lo a produzir música o invectivasse.

Resposta a tais afrontas é o samba Macumba (1923), embora aqui a réplica, segundo informação de Almirante, se baseasse ainda em razões de ordem sentimental. De qualquer forma o compositor se defendia:

A inveja é um fato
Que nunca tem fim
Podes vir de feitiço
Pra cima de mim.


E o mesmo infatigável Almirante, a quem se devem todas as primeiras pesquisas a respeito de Sinhô, que informa ter havido em 1920 encrencas do sambista com o Caninha, o Nozinho, o João da Baiana e o Chico da Baiana. Brigas e arrufos que ele esquecia rápido, principalmente se lhe sopravam a gaforinha os ventos veludosos da fama. Era um espadachim teórico. Brigava mais de papo que de sopapo. Sua arma predileta era a solfa. Sua cunhada Maria Barbosa da Silva achava-o calmo e ponderado, inimigo de brigas e de escândalo. E conta que certa vez, levando a sobrinha a uma festa no subúrbio, lá começaram a surgir confusões. Sinhô retirou a moça e suas amigas, abandonando o baile ainda que sob os sussurrados protestos das jovens.

Revide ou agressão também terá sido o seu samba Três macacos no beco (1919), alusão direta e inegavelmente engraçada aos irmãos Pixinguinha e China e ao Donga. E outras questões surgiriam ainda motivadas, segundo seus opositores, por se apropriar de trechos musicais alheios, encaixando-os em suas composições. Mas isto será assunto de outro capítulo.

Seja dito ainda em abono do gênio brigão de Sinhô, que o provocavam aqui e ali os que tentavam negá-lo e não se conformavam com a sua ascensão algo vertiginosa. Vertiginosa para o ascensionário e para os que o viam subir. E repita-se que a glória do compositor era limitadíssima. Não o tornava rico, não o fazia escalar melhor nível da vida. Talvez nem lhe desse mesmo satisfatórias condições econômicas. Era apenas a glória popular, de certo modo a que “fica, eleva, honra e consola”.

Sinhô viveu para a música e da música. Pobremente. Por algum tempo foi estafeta dos Correios. Mas, de uma feita saiu para entregar a correspondência. Encontrou companheiros das rodas de samba. Ficou-se de conversa e bebida e acabou perdendo a correspondência. E também o emprego (5).
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(1) Já em 1922 as suas músicas eram editadas com seu nome e apelido seguidos da designação - O Rei do Samba. A coroação de 1927 foi assim duplamente simbólica. (2) O samba Já te digo logo se tornou popular. A sátira, a pilhéria com o colarinho pé dc Sinhô agradou em cheio. Um sucesso! (3) Gravação Odeon 121528, por Eduardo das Neves. (4) Segundo afirmações de. alguns, Dirceu de Almeida Vale. O incidente origem em comentários políticos. . . (5) Ao que parece a exoneração se verificou no quatriênio Bernardes e teve também como agravante a influí-la a ousadia de Sinhô ao lançar a marchinha Fala baixo, no Carnaval de 1922, fato que por pouco não o levou à cadeia.

Fonte: "Nosso Sinhô do Samba" / Edigar de Alencar - Edição FUNARTE - Rio de Janeiro 1981.