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Há dez anos, o Brasil
perdia Raul Seixas, o maluco-beleza, o mentor da Sociedade Alternativa e
guru de milhões. Hoje, poeira assentada sobre o túmulo, já é possível
enxergar a verdade por trás da fachada mística de Raulzito. Profeta?
Messias? Bruxo? Ou simplesmente um personagem criado pela imaginação
dos fãs? A história de Raul é mais bizarra que qualquer livro de magia.
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A chave para decifrar o enigma Raul Seixas mantém-se à margem do
mercado, escondido numa pequena chácara na zona rural da cidade de
Miguel Pereira, no Rio de Janeiro. Cláudio Roberto Azeredo conheceu Raul
aos 11 anos, através de uma namorada, a escritora Heloísa Seixas.
Compuseram a primeira música juntos em 1964, "I Don't Really Need You
Anymore", só gravada 25 anos depois. Juntos, compuseram cerca de 30
canções e muitos sucessos, como "Aluga-se", "Cowboy Fora-da-Lei",
"Quando Acabar o Maluco Sou Eu", "Coisas do Coração" e "Rock das
Aranha", além de todo o LP O Dia em que a Terra Parou. "Raul era uma
pessoa muito difícil", admite Cláudio, com a sinceridade a que só os
amigos próximos têm direito.
Cláudio e Raul mantiveram contato distante até que, em 1968, Raul
resolveu tentar a sorte de sua banda, Os Panteras, no Rio de Janeiro. A
iniciativa foi frustrada. Raul voltou para Salvador, casou-se, abandonou
a música por alguns meses e só fixou residência no Rio de Janeiro dois
anos depois, quando arrumou emprego de produtor na CBS, onde trabalhou
com artistas como Trio Ternura, Renato & Seus Blue Caps, Leno e
Jerry Adriani. Foi expulso da gravadora em julho de 1971, depois de
haver produzido, por baixo do pano, um disco absolutamente experimental,
Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta: Sessão das Dez,
influenciado por Frank Zappa.
No ano seguinte, ressurgiu como intérprete, defendendo uma mistura de
baião com rockabilly chamada "Let Me Sing, Let Me Sing" no Festival
Internacional da Canção. Rita Lee, que estava lá com os Mutantes, conta
uma história sensacional: "Foi minha primeira visão de Raul, um rapaz
vestido de couro preto, cantando em inglês e rebolando feito Elvis.
Pensei tratar-se de um cantor cômico, imitando a caricatura de um jovem
americano alheio à época que o Brasil e o mundo estavam vivendo. Mas,
nos camarins, eis que percebo que aquele 'cômico' não estava brincando,
não. Para acabar com a dúvida, cheguei no cara. Ele conversou comigo em
inglês, num sotaque quase texano. Raul não estava tentando ser polêmico,
ele realmente acreditava que havia nascido no Brasil por um infortúnio
do destino. Eu lhe disse que comigo acontecia o contrário pois, sendo
filha de gringos, minha grande aventura era me abrasileirar o máximo
possível, ao que ele me respondeu com um sorriso maroto: 'então você
pode ficar com o meu Seixas que eu fico com o seu Lee Jones!' ...
Inesquecível!"
Raul encontra o Alquimista
Certo dia, Raul leu uma matéria sobre discos voadores na revista 2001,
editada no Rio de Janeiro pelo mochileiro bicho-grilo Paulo Coelho. Raul
convidou Paulo para um jantar em seu apartamento e mostrou algumas
músicas que havia feito – bem diferentes das que costumava compor para
os contratados da CBS - e propôs a Paulo que fizesse a letra para
algumas delas. A partir de então, passaram a preparar alguns temas para o
primeiro disco solo de Raul, Krig-Há-Bandolo, que seria lançado em
julho de 1973.
No mesmo ano, Raul foi levado por Paulo a conhecer uma sociedade secreta
de que o escritor fazia parte, conhecida como Argentum Astrum, AA. Era
uma organização filosófica anti-religiosa e cheia de rituais, baseada
nos ensinamentos do bruxo inglês Aleister Crowley (1875 - 1947).
Em sua época, Crowley foi marginalizado pela moral vitoriana, chegando a
ser chamado de "o homem mais perverso do mundo". Autodenominado a
"Besta 666", seu trabalho consistia basicamente em revelar segredos de
livros mágicos e propor, a partir desses segredos, uma nova ordem social
(não é à toa que Crowley entrou na moda durante os revolucionários anos
60/70). Sua obra central chamava-se O Livro da Lei. Dizia basicamente
que cada homem é seu próprio deus e, por isso, os fortes se sobrepunham
aos fracos.O material que emergia da parceria de Paulo e Raul foi muito
influenciado por Crowley. Algumas músicas chegam a copiar os textos do
bruxo, como "Sociedade Alternativa" e "Liber Oz" (gravada 14 anos
depois, com o nome de "A Lei"). Na verdade, todo o repertório do segundo
disco de Raul seria colocado "a serviço daquela sociedade secreta",
conforme revelou Paulo Coelho no livro Confissões de um Peregrino
(editora Objetiva).
O compacto com a faixa "Gita" (cuja letra foi inspirada no Bhagavad-Gita
, a mais popular das escrituras sagradas da Índia antiga) foi lançado
em julho de 1974 e vendeu 600 mil cópias, dando a Raul seu primeiro
disco de ouro. O LP foi lançado logo em seguida, também com grande
sucesso. Conforme ia crescendo a popularidade da dupla, Raul e Paulo
passaram a realmente acreditar na viabilidade da Sociedade Alternativa.
Chegaram a divulgar a construção da Cidade das Estrelas, em Minas
Gerais, que funcionaria como o quartel-general da seita. "Vivíamos no
mais profundo negrume da ditadura", lembra Pena Schmidt. "Mas Raul
propunha o oposto daquilo, numa saída individual, que era um tipo de
discurso poderoso mas tolerado pelos manipuladores de informação da
Censura". A partir de "Gita", Raul passou a ser visto pelos fãs como uma
espécie de conselheiro, de guru. Mães começaram a trazer seus filhos
doentes para que ele os curasse.
Rita Lee acredita que a imagem mística que Raul assumiu nesta época
pouco tinha a ver com temor religioso. "Me parece que depois que Paulo
Coelho entrou na vida de Raul como parceiro de trabalho e de aventuras
no mundo da magia, Raul praticamente neutralizou sei jeito Presley de
ser e mudou, feliz, para o papel de Profeta Apocalíptico. O fã radical
de Elvis ingeriu uma overdose de misticismo e se transformou num guru".
Cláudio Roberto acha que o que falou mais alto foi o business: "Era algo
do tipo 'oba, isso dá fama e dinheiro, é nessa que eu vou', era show".
Ele confessa que viu com desconfiança a aproximação de Raul e Paulo
Coelho. "Raul abraçou toda a megalomania, todo o sonho de poder de
Paulo, e isso fez muito mal a ele", acredita. "Esse dedo em riste na
capa do Gita foi definitivo numa ferida já aberta, porque mostrava Raul
assumindo uma coisa que ele sabia não ser ele, algo falso".
Em maio de 1974, a polícia apreendeu e incinerou a maioria dos 20 mil
exemplares do gibi-manifesto A Fundação de Krig-Há (patrocinado pela
Philips), considerado material subversivo. Raul e Paulo Coelho foram
presos e torturados. Raul exilou-se nos Estados Unidos, apoiado pela
família americana de sua esposa. Voltou logo depois, mas dali em diante
as coisas já seriam diferentes.
Demônios e outros bichos
Paulo Coelho abandonou a AA depois de ser surpreendido por uma
personificação do demônio. Raul continuou por mais alguns meses. O
relacionamento entre os dois já havia esfriado, assim como a fase de
sucesso de Raul. Tentaram restabelecer a parceria três anos depois,
alugando quatro suítes em um hotel em Campos do Jordão. Mas não se
falavam, apenas trocavam anotações por baixo da porta. Depois de cinco
dias trancado no quarto, Raul foi encontrado desmaiado, vítima de
inanição.
Passados 25 anos, ainda pouco se sabe sobre a sociedade de que
participaram - Paulo nem sequer pronuncia o nome dela. Raul nunca mais
tocou no assunto, mas sabe-se que tanto ele quanto sua esposa na época,
Gloria Vaquer, abandonaram os rituais após visões desesperadoras que
misturavam demonismo e alucinação psicodélica.
O disco Novo Aeon, lançado em outubro de 1975, marcava nitidamente a
transição pessoal do cantor. Nas entrevistas de divulgação do disco,
Raul tentava dissociar-se da imagem de pregador, dizendo que a verdade
estava em cada um e que tentar doutrinar seu público havia sido um erro.
"Não sei se ele estava preparado para gerenciar seu próprio carisma",
pondera Marcelo Nova. "Essa idolatria, essa coisa de 'Raul sabe-tudo',
era perigoso. Nas entrelinhas das canções, ele tentava dizer que não
sabia de nada: 'faça você', procure seu caminha', 'eu sou é
raulseixista', mas nem todo mundo entendia". Cláudio Roberto, que
estreara como parceiro em vinil justamente no disco Novo Aeon, tenta
analisar a dubiedade do sucesso que, acredita, acabou por seduzir o
amigo: "o sucesso é apenas o fenômeno de preencher uma lacuna do mercado
na hora certa", sentencia. "O real talento de um artista só pode ser
medido pela sua capacidade em não se deixar manipular pelo momento do
sucesso. E Raul não teve essa capacidade".
Apesar de todos os esforços de Raul, a imagem patrocinada pela indústria
do disco falou mais alto e, até hoje, muitos fãs buscam orientação
espiritual na obra do cantor. Segundo Cláudio Roberto, quem mais
precisava de conselhos era o próprio Raul. "Ele era extremamente ambíguo
e indefeso, uma pessoa muito sensível", afirma. "Tinha um senso de
humor agudo, mas ao mesmo tempo era muito sério e formal, e isso tornava
tudo muito sensível", afirma. "Tinha um senso de humor agudo, mas ao
mesmo tempo era muito sério e formal, e isso tornava tudo muito mais
difícil para ele. Raul era uma criança, morreu dizendo que havia
entrevistado John Lennon, até mesmo para mim, quando isso era mentira -
ele era absolutamente autêntico dentro dessa falta de autenticidade, o
que me faz amá-lo muito mais e absolvê-lo por isso".
Em 1977, Cláudio sobrevivia dando aulas de inglês e vendendo mocassins
nas feiras hippies da cidade, quando Raul o convidou para, juntos,
comporem seu primeiro disco na gravadora WEA. "Nos discos que lançou
pela WEA ele buscou a absolvição pelos erros do passado", avalia
Cláudio. "O sucesso fez muito mal a ele, ele bebeu o sucesso todo. Eu,
que o conhecia desde antes da bebida, convivi com uma pessoa
cerimoniosa, que nunca perdia a linha. Virávamos noites compondo em
hotéis, eu de cueca, detonando, e ele de terno e gravata, absolutamente
formal".
Cláudio e Raul passaram três meses trabalhando no novo repertório. O Dia
em que a Terra Parou foi lançado com todas as regalias que um artista
poderia querer. Curiosamente, diz Cláudio, foi a partir deste disco que
teve início a decadência pessoal e artística de Raul. "Ele descobriu que
poderia usufruir de uma maneira 'light' de compor, mesmo sendo
verídica. Mas era preciso fazer uma reavaliação muito grande de valores -
imagine, uma pessoa tão solapada por tantos vícios, não só químicos
como mentais e posturas..."
Na opinião de Cláudio, o sucesso da faixa "Maluco Beleza" ("Enquanto
você se esforça pra ser / um sujeito normal / e fazer tudo igual / eu do
meu lado, aprendendo a ser louco / maluco total / na loucura real")
teria muito a ver com esse preocesso. "Esta faixa foi, provavelmente, o
primeiro hit dele que não era um chiste, uma provocação. Ao contrário, é
uma música autêntica, melancólica - é a história de um cara assumindo
que não tem controle sobre sua loucura, é foda isso. Mas quando você
constrói uma vida em cima de determinados vícios de postura, aí,
malandro, é muito difícil. Mas Raul teve a chance de mudar isso, e não
quis. Talvez por haver passado tanto tempo sendo um mistificador, ele
tenha subestimado a força da autenticidade e superestimado a sua
capacidade de manipulação. Mas o tempo julga pela verdade, pela causa e
efeito do que você faz, não pelo sentimento do fã, que age apenas pela
emoção". Depois desse disco, acredita Cláudio, Raul ficou
"artisticamente em cima do muro".
"Raul já não era ele mesmo"
Os dois amigos, no entanto, continuaram compondo até a morte do cantor.
Chegaram a planejar um novo LP em 1978, mas brigaram depois que Cláudio o
acusou de haver registrado uma música da dupla em nome de Oscar
Rasmussem - a faixa seria "Por Quem os Sinos Dobram".
Cláudio só voltou a ver Raul no início dos anos 80, mas encontrou outra
pessoa. "Ele já havia se entregado, o corpo estava cansado de tanta luta
inglória - 'é preciso sobreviver, é com isso que eu vou', sabe? O
problema dele era lutar até alcançar, depois a motivação desaparece -
'eu me pergunto e daí, foi tão fácil conseguir' (da letra 'Ouro de
Tolo'), isso é o resumo de sua vida", acredita. "Vi um show, em 1980, em
que Raul enfrentou uma platéia absolutamente gelada, que estava lá para
colocar a última pá de cal sobre seu cadáver insepulto. Até o meio da
segunda música, ele tocou completamente ensandecido, numa performance
que eu nunca havia visto. A audiência não resistiu e foi ao delírio -
foi o que bastou para Raul começar a esquecer a letra, tropeçar e fazer
uma merda de show. A impressão era a de que ele não suportava conseguir,
conquistar".
Mas já era tarde, Raul Seixas já havia conseguido e conquistado. Isso
consumiu sua vida, é verdade, mas seu trabalho atravessa as décadas como
a voz oficial de uma raça que nunca se extingue: a dos malucos. Mesmo
que fosse uma "criança" curiosa, como define "Cláudio Roberto, e não o
filósofo onipotente, como o próprio Raul acreditou ser nos tempos de
"Gita". A perenidade de seu trabalho foi posta à prova e será mais uma
vez nestes dez anos de sua morte: a WEA planeja relançar seu disco Por
Quem os Sinos Dobram em CD, incluindo letras, notas biográficas e o
encarte original. Depois de tudo, só nos resta a música de Raul para
ouvir. E já esta de bom tamanho.
O Meio
Os anos 80 foram cruéis para Raul. "Naquela época, ele não atendia
telefones nem respondia a qualquer tentativa de aproximação", lembra
Rita Lee. "Ele se cercou de vampiros que lhe sugaram até a última gota
de sangue." Ao mesmo tempo, Raul era considerado persona non grata por
produtores de shows, de eventos e por gente de gravadora. "Havia muitas
ramificações ao redor dele, gente que tentava armar show com banda que
Raul desconhecia, gente que vendia shows no interior em nome dele sem
que ele soubesse, gente que tomava adiantamento de apresentações que ele
nunca marcou", diz Marcelo. "Lembro que, certa vez, a secretária de
Raul me ligou em casa, dizendo que havia um cara na casa dele,
ameaçando-o de morte porque ele não queria fazer uma temporada de
banquinho e violão no Amazonas e em Belém do Pará."
Caratecas,drogas e tiros
Na verdade, o inferno astral de Raul começou ainda no final dos anos 70,
quando lançou um disco sem repercussão chamado Por Quem os Sinos
Dobram, escrito ao lado de um novo parceiro, Oscar Rasmussen, com quem
dividia o apartamento na época. Raul costumava agregar a seu redor os
tipos mais estranhos e sombrios, numa versão tropical da "máfia de
Memphis" que acompanhava Elvis Presley. Em 1979, ele teve a
inacreditável idéia de contratar uma equipe de caratecas argentinos como
seguranças. Tanto ele e Oscar quanto os seguranças varavam as noites em
festas regadas a álcool e drogas das mais variadas. Numa transação
obscura entre os caratecas e traficantes, o faixa preta Hugo Amorrotu
foi assassinado a tiros, dentro do apartamento de Raul, num evento que
demonstra o grau de descontrole que sua vida havia tomado. O corpo de
Raul sentiu as pancadas do destino: o cantor foi internado, retirou
metade do pâncreas no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, e passou
alguns meses hospedado na casa dos pais na Bahia. No ano seguinte,
voltou à gravadora CBS (atual Sony Music), onde trabalhara como produtor
nos anos 60. O disco que gravava, Abre-te Sésamo, foi, verdadeiramente,
o último espasmo do cantor implacável e rebelde dos anos 70. O
repertório, inspirado, era sua grande aposta.
Princesa Diana, não!
No entanto, Abre-te Sésamo foi, do início ao fim, um disco marcado por
problemas e coincidências infelizes. Primeiramente por conta da Censura,
que implicou com a balada "Baby" e o verso "por que esconder o
vermelho/ do sangue tingido o lençol?", que virou "a mancha do batom
vermelho/ por que esconder no lençol?". Depois, novamente censurado por
conta da faixa "Rock das Aranha" (composta como piada e gravada como
molecagem). Logo depois da gravação, a diretoria da CBS mudou e o disco
foi mal divulgado e pessimamente distribuído. Aparentemente, a gravadora
de Roberto Carlos e Amelinha não estava gostando muito da idéia de ter
um encrenqueiro do calibre de Raul Seixas em seu cast. Aproveitando a
relação desgastada, a gravadora propôs ao cantor que compusesse algo
tendo o casamento da princesa Diana e príncipe Charles como tema. Raul
respondeu com o pedido de rescisão de contrato.
Sem trabalho, Raul passou a divulgar planos mirabolantes, como filmar em
Hollywood, candidatar-se a deputado federal e lançar um livro infantil.
Pretendia prensar um disco pirata, chamado The Pirate Record (sic), com
gravações raras de sua antiga banda Os Panteras, feitas nos anos 60. O
assassinato de John Lennon tornou o cantor, normalmente avesso aos
shows, ainda mais recluso. Um show na cidade de Caieiras, em São Paulo,
foi desastroso: Raul foi confundido com um impostor e por pouco não foi
linchado pelo público. Acabou levado à delegacia, onde foi esbofeteado e
encarcerado.
Eventos assim só desgastavam sua imagem e o empurravam ainda mais para o
alcoolismo. Seu vício foi progredindo de maneira proporcional à sua
falta de atividade profissional. Sua esposa na época, Kika Seixas,
passou a utilizar de seus contatos como assessora de imprensa para
tentar reerguer a carreira do cantor. Depois de dois anos de tentativas,
finalmente uma boa notícia: Raul foi chamado por Augusto César Vanucci
para estrelar um especial infantil da TV Globo chamado Plunct Plact Zum,
interpretando o personagem Carimbador Maluco. Animado, ele compôs um
tema infantil, inspirado pela filha Vivian, de 2 anos. O sucesso da
inocente canção rendeu seu segundo disco de ouro. Os fãs buscaram nos
versos da canção alusões ao anarquismo, mas a música tratava mesmo de um
personagem infantil - tanto que, em dezembro, Raul, vestido de
Carimbador Maluco, cantou no estádio do Maracanã, na festa de chegada do
Papai Noel, ao lado da Turma do Balão Mágico, Didi, Dedé, Mussum e
Zacarias.
O cansaço físico e profissional falou mais alto que a boa fase "família"
do cantor. Raul voltou a beber, e muito. Kika deixou-o em 1984. "Minha
filha já estava crescendo e o pai dela bebendo o tempo todo", lembra.
"Nos últimos anos Raul não tomava mais banho, estava sempre deprimido,
não comia mais alimentos sólidos, se urinava sempre. Mas nunca perdeu a
força de vontade, sempre de bom humor, fazendo planos para o futuro".
Wanderléa, que conheceu Raul nos anos 60 e chegou a dividir com ele os
vocais da faixa "Eu Quero Mais" (do LP Raul Seixas, de 1983), lembra que
Raul passava os dias sozinho, trancado em seu apartamento: "De meias,
chinelos, às vezes de luvas, assistindo a horas e horas de vídeos de
seus heróis de adolescência, Jerry Lee Lewis, Little Richard, Elvis
Presley". O mesmo cantor que bradava contra a nostalgia em 1975
transformava-se em um personagem saudoso e reacionário. "A partir de
determinado momento, aqueles vídeos passaram a ser a única relação dele
com o ambiente que amava, que um dia o motivara a cantar", lembra.
Do início ao fim, a década de 80 viu Raul entregando-se a seus excessos,
deixando-se devorar pelo monstro que se formava ao redor de seu nome.
Desistindo de viver. "Ele perdeu o interesse pela carreira", analisa
Marcelo Nova. "O que o desmotivou, eu não sei. Ele era muito popular, e
isso implica muita solidão, porque todo mundo te conhece, mas você não
conhece ninguém", cogita. "Ele era muito simples e as pessoas abusavam
um pouco disso. Mas o que o teria desanimado dessa forma ainda é uma
incógnita".
O Fim
Raul dos Santos Seixas morreu aos 49 anos, de parada cardíaca. Já vivia
havia nove anos sem dois terços do pâncreas. Diabético, driblava como
podia as injeções de insulina ("Odeio injeção, por isso nunca fui
junkie", dizia), mas não dispensava chocolate. Alcoólatra, seu café da
manhã consistia de um copo de vodca com suco de laranja no bar mais
próximo de casa, seguido de doses paulatinas de éter ao longo do dia.
Separado de sua quinta esposa, Lena Coutinho, desde 1988 morava sozinho
num pequeno flat alugado no Centro de São Paulo. Num destes
cavalos-de-pau que o destino dá, um homem que odiava apresentar-se ao
vivo e digladiava-se com gravadoras morreu descansando de uma maratona
de 50 shows realizados ao lado do fã e último parceiro, Marcelo Nova.
Naquela mesma semana, chegaria às lojas A Panela do Diabo, disco da
dupla lançado pela multinacional WEA. E mais shows estavam programados
até dezembro, quando a turnê seria encerrada com uma festa no ginásio do
Ibirapuera, em São Paulo.
"Muita gente dizia que esta turnê não daria em nada: 'ah, o porralouca
do Marcelo e o cachaceiro do Raul', mas Raul excursionou, fez 50 shows e
não faltou em nenhum, mesmo quando estava com crise de diabetes",
lembra Marcelo. "Por que, eu não sei. Raul só fazia o que queria e não
havia ninguém no mundo para convencê-lo do contrário."
Toca, Raul!
Amigos desde 1984, a relação entre Raul e Marcelo Nova (ex-membro do
grupo de rock baiano Camisa de Vênus) cresceu inicialmente movida pela
paixão comum pelo blues e o rock dos anos 50. A parceria musical surgiu
quatro anos depois, quando Marcelo decidiu visitar o amigo e deu-se
conta do estágio terminal de sua vida e sua carreira. "Na verdade, não
havia mais carreira. Ele estava parado há quatro anos, longe de seu
público. Um dia cheguei em sua casa e ele estava sem um dente, abatido,
bêbado, pesando 55 quilos. Alguma coisa precisava ser feita, não dava
para assistir aquilo de braços cruzados. Levei Raul ao médico da minha
família, que o examinou do cabelo à unha do pé e me disse que a única
coisa a receitar era trabalho, já que ele se recusava a parar de beber",
lembra.
"O esforço do indivíduo Raul Seixas em estar presente naquela turnê
sempre foi subestimado", acredita Marcelo. "Já li muito sobre o 'andar
trôpego e cambaleante' de Raul, mas, independentemente disso, ele pegava
o microfone e, bem ou mal, com energia ou sem, subia no palco e
cantava. Quem sabia dos problemas pessoais e físicos que ele enfrentava,
sabe que se tratava de um esforço quase heróico".
Durante as gravações de A Panela do Diabo, o esforço de Raul atingiu seu
ponto mais alto de emoção e simbolismo, como bem lembra o produtor Pena
Schimidt: "O ritmo das gravações obedecia ao ritmo de Raul. Gravávamos
uma estrofe de manhã, parávamos à tarde, retornávamos no dia seguinte e
assim foi durante o tempo todo". Este ritmo seria seguido até o momento
de gravar o número solo de Raul no LP, uma faixa chamada "Nuit", que ele
havia composto em 1981 e, inexplicavelmente, mantinha inédita. Pena
lembra que, neste dia, ele se viu diante do velho Raul Seixas hipnótico e
poderoso que conhecera no Festival de Saquarema, em 1975. "Ele pediu
para que todas as luzes fossem desligadas e exigiu gravar os vocais numa
tacada só, sem retoques", lembra. "E assim foi, apesar de Raul Ter
perdido a voz nos últimos versos. Quando as luzes se acenderam, todos no
estúdio estavam com os olhos rasos d'água, porque entendiam que aquela
letra era um bilhete de despedida". Versos como "quão longa é a noite/ a
noite eterna do tempo/ se comparada ao curto sonho da vida" não deixam
dúvidas - e os motivos que levaram a canção a permanecer reservada por
tanto tempo foram finalmente esclarecidos.
On The Road
E mesmo na estrada, nos quase 12 meses de duração da turnê, a dupla
manteve-se constantemente nos limites do imaginário rock'n'roll.
Marcelo, num misto de sensibilidade histórica, ingenuidade adolescente e
filantropia rocker; Raul, agarrando-se no fio de possibilidade que
ainda lhe restava para provar, para si próprio, que a velha metamorfose
ambulante poderia gingar feito Elvis. "Acredito que a turnê tenha dado
motivação para o homem, não para o artista, que este não precisava",
conta Marcelo. "Havia uma parte do meu coração querendo devolver um
pouco de inspiração que ele havia me dado quando eu queria montar um
grupo de rock na Bahia, aos 16 anos. Todos estavam muito motivados: no
camarim, a banda era capaz de parar de beber para que Raul não visse que
havia uísque, e ir lá conversar com ele, animá-lo, distraí-lo. Muitas
vezes tivemos que tirar neguinho do quarto do Raul na porrada, porque os
caras entravam lá no hotel com sacos enormes de cocaína, como presente
para ele". No final, eram 18 pessoas trabalhando para que Raul Seixas
"fosse aplaudido, como foi", depois de anos e anos à margem da cultura
pop brasileira.
A morte
O escritor Paulo Coelho fazia sua segunda peregrinação depois da
conversão ao cristianismo, o Caminho de Roma, também conhecido como
Caminho Feminino. Era manhã de segunda-feira, 21 de agosto de 1989,
quando Paulo interrompeu sua caminhada em um pequeno vilarejo perdido na
cadeia montanhosa dos Pirineus, na França, e ligou para a esposa,
Cristina Oiticica, no Rio de Janeiro. Com apenas três moedas no bolso,
precisava falar rápido. "Olha, Paulo, não sei se devo te estragar o dia
com notícias ruins", dizia a mulher do outro lado da linha, depois das
necessárias saudações e troca de carinhos. "Pode falar, mas fala logo
que a ligação vai cair", ele pediu com urgência. Cristina disse: "O Raul
morreu". E a ligação caiu.
Paulo já havia escrito dois de seus grandes sucessos, Diário de um Mago e
O Alquimista, mas muito de sua fama ainda se devia aos primeiros anos
da década de 70, quando, ao lado de Raul Seixas, escreveu 65 canções,
entre elas alguns dos maiores clássicos da música pop brasileira, como
"Sociedade Alternativa", "Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás" e "Medo da
Chuva". "Quando a linha caiu, fiquei sem saber por que meu parceiro
havia morrido, sem saber em que circunstâncias - só poderia ligar de
volta à noitinha - mas senti uma profunda alegria, uma sensação muito
positiva, como se Raul estivesse bastante feliz por haver morrido."
Durante o sono, às 5 horas da manhã daquela segunda-feira, Raul
encerrava a luta que travava consigo mesmo havia mais de dez anos. Preso
no emaranhado de mitos e lendas que ele próprio havia criado, o cantor
passou toda a década de 80 deixando-se consumir pelo cansaço da batalha.
Ao morrer, terminava uma história secreta, muito mais melancólica do
que a que fora registrada em suas canções. Magia e rock'n'roll e carisma
e insegurança e fanatismo e fraquezas alimentaram a trajetória mais
estranha que o Brasil já presenciou - e que jamais procurou entender.
O dia em que Terra parou
O descontrole emocional da multidão, que Raul tanto temia em vida,
viu-se multiplicado em muito no dia de sua morte. Como forma de
homenagear o cantor, a gravadora WEA reservou o salão nobre do Palácio
das Convenções do Anhembi para a despedida do público. Às dez horas
daquele 21 de agosro, milhares de fãs tomaram os espaços do local
gritando em uníssono: "Raul não morreu!" enquanto outros, de violão em
punho, lembravam sucessos do cantor. Um fã mais ousado tentou beijar o
rosto do músico, perdeu o equilíbrio e acabou quebrando o vidro do
caixão.
As celebridades não apareceram, com exceção de Kiko Zambianchi, Marcelo
Nova, do Maestro Miguel Cidras e Kid Vinil. Neste dia, Raul era do povo.
Quando os bombeiros chegaram para levar o caixão para o aeroporto, a
confusão começou. Alguns garotos se penduraram nas alças, outros jogavam
bilhetes sobre o ataúde. Todos gritavam "Raul! Raul!". Na tentativa de
chegar mais perto do ídolo, fãs quebraram os vidros do aeroporto de
Congonhas.
Já na Bahia, além da família, apenas dois fãs aguardavam o avião - e um
deles declarou que esperava ver o cantor levantar-se do esquife e pregar
mais uma peça no "sistema". Multidão mesmo estava reunida no Cemitério
Jardim da Saudade, esperando pela visitação pública ao caixão, que ficou
na capela. Três horas depois, a missa de copo presente exigia que a
capela fosse fechada, o que deu início a um tumulto e a nova tentativa
de invasão.
Um ano depois do enterro, um fã de 21 anos, com o rosto de Raul tatuado
no braço, roubou a lápide do cantor para transformá-la em item maior do
"santuário" que montava em casa, ao lado de discos, cartazes, recortes e
fotos. Uma nova tentativa de furto ocorreria dois anos depois. A
direção do cemitério, cansada dos furtos, finalmente decidiu pregar a
lápide com concreto. Hoje Raul descança em paz. (R.A.)
Matéria publicada pela revista Trip, nº 71, (agosto 1998)