quinta-feira, março 22, 2012

O pandeiro de João da Baiana

João da Baiana
O pandeiro que Pinheiro Machado me deu tem trânsito livre”. Isso mesmo. Depois que o João da Baiana ganhou um pandeiro bacana (de cedro e couro de lei), presente do senador General Pinheiro Machado, nunca mais a polícia lhe tomou o instrumento. A inscrição nele gravada: “Com a minha admiração, ao João da Baiana, Pinheiro Machado”, outorgou-lhe imunidades, deu-lhe trânsito livre. Voltou anos seguidos à festa da Penha integrando o conjunto do Malaquias e de outros musicistas sem que qualquer autoridade o embargasse.

Por isso mesmo, até hoje, decorrido mais de meio século, pois o pandeiro lhe foi dado em 1908, João da Baiana guarda-o como verdadeira e preciosa relíquia da qual proclama com muito orgulho o seu valor. Outros pandeiros existem no humilde quarto onde, na estação de Parada de Lucas, subúrbio da Leopoldina Railway, mora o autor de Mulher cruel. Mas o que o famoso parlamentar gaúcho mandou confeccionar para lhe oferecer tem foros de troféu digno de carinhosa veneração.

João, o da baiana

Nascido na Rua Senador Pompeu, n.° 288, no mês de maio, aos 17 dias de 1887, João Machado Guedes, filho de Presciliana Guedes, desde garoto tornou-se conhecido como João, o filho da baiana. Mais tarde, na adaptação da desinência que servia para identificá-lo entre a meninada, popularizou-se como João da Baiana e é assim conhecido e benquisto em toda esta Cidade de São Sebastião. Criou também o seu tipo elegante sempre de gravata à pintor (ou poeta) e cravo na lapela.

Das recordações gratas de sua “infância querida que os anos não trazem mais”, como cantaria o poeta Casemiro de Abreu, João tem, bem vivas, as de suas diabruras. Delas participaram como companheiros os meninos Donga (Ernesto dos Santos), Amor (Getúlio Marinho), Caninha Doce (José Luiz de Moraes), Heitor dos Prazeres, Sinhô (José Barbosa da Silva) e alguns outros. Com eles, já rapazola, batendo seu pandeiro, sambando no meio de uma roda, tirando versos, veio a tornar-se uma das figuras representativas de nossa música popular. Daí ter justo e merecido lugar na velha guarda entre os já citados e aos quais se juntou o celebrado Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna) um pouco mais moço do que eles.

Sambista e de circo

Embora seu nome avulte como sambista e exímio tocador de pandeiro, e não é só isso. Têm no rol de suas composições várias de marcante êxito quais sejam: Mulher Cruel (1924), Pedindo Vingança (1925), Desacordo no Lar (1926), Deixa Amanhecer (1928), Carnaval Sedutor (1930) e mais algumas. Soma ainda outras qualidades. Proclama-se Babalaô de Orixá, da linha nagô e filho de cabeça dos afamados pais-de-santo João Alabá e Abedé. Acumula também pendores de pintor paisagista. Assim já participou de algumas exposições e dentre elas as levadas a efeito por artistas de rádio na ABI e Câmara dos Vereadores com o concurso de Caymmi, Gastão Formenti e Heitor dos Prazeres.

Como se não bastasse, e para solidificar sua personalidade, João da Baiana foi de circo. Meninote, na idade em que se está disposto a topar qualquer aventura, conseguiu um lugar de pataqueiro no Circo Spinelli situado na Ponte dos Marinheiros (atual Rua Figueira de Mello). Ali tinha como serviço enrolar e desenrolar tapetes, carregar petrechos dos artistas. Conheceu então Benjamin de Oliveira, o palhaço Pompílio, a família Pery e muitos outros ases do picadeiro, peritos nos truques de fazer rir e capazes de assombrar o respeitável público com suas provas arrojadas.

João no Morro da Graça

Quem apresentou João da Baiana ao homem que, segundo Costa Porto em seu livro Pinheiro Machado em seu Tempo era o árbitro dos rumos nacionais, foi Darino, da Saúde e José da Rocha Soutello. Ambos eram chefes políticos no bairro da Saúde (agora Rua Sacadura Cabral) e dispunham de numeroso eleitorado que sufragava os recomendados do senador gaúcho. Depois disso, fazendo parte do conjunto do Malaquias que sempre era chamado para animar as festas na casa do Morro da Graça em que residia o fogoso parlamentar, João lá voltou muitas vezes. E tanto ele como seus companheiros eram sempre cordialmente recepcionados pelo anfitrião.

Aconteceu, porém, que por não ter pandeiro, pois a polícia tomara-o na festa da Penha, João da Baiana não pôde comparecer a uma dessas tocatas na casa do general. Estranhando a ausência do pandeirista que já o tinha como fã admirando a destreza rítmica de sua batida no instrumento, e informado do motivo disse: “Mande ele me procurar lá no Senado.” No dia seguinte, pressuroso, João se apresentou no casarão da Rua Areal (agora Moncorvo Filho). Foi quando recebeu das mãos de Pinheiro Machado, em papel timbrado, a ordem para que O Cavaquinho de Ouro, na Rua da Carioca, fizesse um pandeiro e nele gravasse: “Com a minha admiração, ao João da Baiana — Pinheiro Machado.”

Presente que se tornou relíquia

Alvo de tão significativa distinção, a de ser presenteado com um pandeiro de excelente qualidade pelo grande vulto da República “a cujo aceno se movimentava a maioria parlamentar no votar ou recusar leis”, tem cabimento a vaidade de João da Baiana em classificar tal instrumento de relíquia. Com ela, orgulhoso, voltou à Pedra do Sal, lugar que até hoje freqüenta e encontra velhos e novos amigos, para a fixação de uma expressiva foto provocadora de muitas recordações.

Desse tradicional logradouro, antigo quartel general do samba, saiu o Concha de Ouro, primeiro rancho que abrilhantou os folguedos do Carnaval carioca e onde João da Baiana, Donga, Pendengo, Getúlio Marinho e mais alguns garotos figuraram como porta-machado. Nele também fixa-se o alicerce de nossa música popular. Ali viveram de par com sambistas fiéis ao ritmo trazido pelos baianos pioneiros, dentre os quais Hilário Jovino Ferreira, os mais hábeis capoeiras que ensinaram ao rapazola Machado Guedes as artimanhas de esquiva e ataque num jogo em que, antes de tudo, prevalece a destreza.

Só não aprendeu ali a tocar pandeiro porque isto João teve mestra em casa, sua genitora, a baiana Presciliana.

(O Jornal, 26/4/1964)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.