A casinha em Abolição, janelas verdes, parede rosa, Juvenal Lopes fala de sua história, que é também a história do samba carioca. Nascido em São Cristóvão, o pai «presidente do grupo dos prontos», como ele diz, para dar idéia de sua pobreza, contava uns nove anos quando foi morar na Mangueira.
— Papai morreu. Minha mãe não agüentava o aluguel e mudou-se para a Mangueira. Com ela, eu e meus dois irmãos. Passamos a maior parte da infância trancados dentro do barraco, pois mamãe, trabalhando fora (empregada doméstica), não tinha com quem nos deixar. E havia o medo de no soltar pelo morra. Não saíamos para nada. A porta da rua marcava a fim de nosso mundo.
— Lembro que ela chegava, una lata de dois quilos na cabeça, Ali vinha nossa comida, as sobras da casa de seu patrão. Ao encontrar-nos à sua espera, chorava de alivio. Não sei por que ela tinha tanto medo do lugar.
Mas para um menino levado, louco para se aventurar ai por fora, o excesso de cuidados da mãe correspondia ao cárcere. Assim, mais crescidinho, Juvenal resolveu rebelar-se. Tão logo ela, saía, pulava a janela, fugia para o Buraco Quente.
— Ia me juntar ao pessoal do samba. Foi assim que tomei gosto pelo negócio. Ficávamos numa birosca, batucando em caixas de fósforo. Ali conheci Zé da Lúcia, Homem Bom, Saturnino (pai de Neuma), Osmar e tanta gente boa, a maior parte falecida, que nem vale apena enumerar. Eles foram, praticamente, os desbravadores do samba na Guanabara.
No lugar dos poetas
— Mais tarde, rapazote, deixei o Buraco Quente. Passei a freqüentar o Baixo Meretrício, onde, nos botequins, cantando samba, havia chance de faturar uns trocados.
Nesse ambiente Juvenal começou a divulgar o samba. Um medo terrível das pessoas que ali se reuniam, principalmente das mulheres que, segundo ele, eram mesmo de briga, dados a rasteiras e navalhadas. Cedo ficou conhecido como o cantor de Mangueira, nome que na época se ligava apenas ao morro. E quando começou a ganhar um dinheirinho bom, coletado em pires depois de cada apresentação, o sambista largou sua antiga profissão: ajudante de pedreiro.
— Tinha então uns 17 anos. De manhã trabalhava em obras. À noite, se fazia calor, vendia sorvete. Se frio, vendia jornais nos bondes. Dava um duro danado e ganhava quase nada. Cantando, chegava a conseguir 12 mil réis por noitada, uma fortuna para mim. Mas acabou logo...
Dois anos passados (1920), fui levado para o Estácio, o lugar dos poetas, pelo falecido Nilton Bastos. As coisas pretas. Andava de tábua no pé (agora chamam tamanco, e é até chique usar). Minha calça, coitada! Toda remendada, eu não sabia nem qual sua cor. Assim era a vida, do pobre. Miséria era miséria de verdade.
No Estácio, Juvenal conheceu Ismael Silva, Rubens Barcelo (o príncipe do samba) Alcebíades, Brancura, Francelino e muitos outros, hoje apenas saudades. Ali também começaram Sílvio Caldas e Carmen Miranda. Mas Estácio era somente o nome do lugar. O que eles fundaram foi um bloco, o Deixa Falar, de onde mais tarde saiu a escola de samba.
— O nome foi por causa de um rancho que havia perto. Eles se diziam a elite. Espalhavam que sambista era malandro, vagabundo. Principalmente porque no carnaval, a gente se fantasiava de mulher. Cansei de sair de Maria Antonieta. O pessoal do rancho metia o malho. O Deixa Falar foi nossa resposta.
— No Estácio fiz amizades, fiquei querido. De lá guardo boas recordações. Foi quando botei meu primeiro terno, aprendi a usar gravata e colarinho. Tudo de segunda mão, é claro! Umas roupas largas, que quando a gente experimentava, o vendedor, um gringo sabido, ficava puxando atrás, para dar a impressão de que estava certinho. E ainda falava, com a cara mais limpa, que ficou melhor do que se fossem feitas sob medida.
De time a escola de samba
O sambista fala da importância de se esclarecer a história do samba, sem deixar equívocos. Comenta a necessidade das escolas fazerem um trabalho escrito de suas origens, arquivando-o como documento histórico. E prossegue sua narrativa, contando como o bloco Deixa Falar se transformou na primeira escola de samba do país: a do Estácio.
— A princípio, o nome comum aos grupos que se dedicavam ao samba era time. Isso porque formávamos uma espécie de torcida organizada de determinado time de futebol. No Estácio, nossa paixão era o América. Dai as cores vermelho e branco.
A denominação de escola vai aparecer mais tarde, ali mesmo no Estácio, por uma única razão: a gente se reunia perto de uma escola normal. Como o samba era proibido, perseguido pela Polícia, quando se perguntava por algum sambista, para despistar, respondíamos que estava na escola, o ponto de referência. O negócio pegou a ponto da gente só entender o lugar como escola. Quando o Estácio cresceu, o time ficou conhecido como Escola de Samba do Estácio.
Para provar o que diz, Juvenal relembra alguns sambinhas da época. Um de sua autoria, em homenagem à vermelho e branco de então:
«Sempre vencemos, nunca perdemos.
O nosso time é do Estácio.
Vamos pra balança,
Não damos confiança...
Peso é peso, braço é braço... »
Outra de Cartola, feita para a Mangueira, onde aparece pela primeira vez a designação Estação Primeira, mais tarde incorporada ao nome oficial da Escola:
«Chega de demanda, chega.
Com esse time temos que ganhar.
Somos a Estação Primeira,
Salve o Morro da Mangueira. »
A perseguição policial
Apesar dos números blocos, o samba ainda era proibido. Consideravam-nos uma atividade marginal, malandros e vadios, da mesma forma que a capoeira.
— E nós, sambistas de coração, não podíamos deixá-lo morrer. Para isso, contávamos com o apoio dos umbandistas. Eles tiravam licença para instalar um centro de culto afro-brasileiro e deixavam a gente fazer samba lá dentro.
— Assim a gente confundia a polícia. Os Arengueiros, por exemplo, bloco que deu origem à Mangueira, surgiu do centro de Zé Espingueli, famoso pai-de-santo daquele morro.
— Foi o próprio Zé Espingueli quem organizou o primeiro concurso de samba de que se tem notícia. Só que era muito diferente do que se vê hoje. Ganhava aquele que tivesse sua música mais cantada. Afinal, o concurso era samba. Concorriam os Arengueiros, o Estácio, a Favela, os Unidos da Tijuca e o Osvaldo Cruz, mais tarde Portela.
— Mas era tudo clandestino. A Polícia perseguia mesmo. E quando pegava, batia de verdade. Lembro uma vez, numa festa de Xangô. Estávamos no barraco de Brasilino, pai-de-santo do morro do Urubu. Terminada a festa, um frio danado, a gente encolhidinha, pra espantar o sono e a fome improvisei um sambinha, quase um ponto de macumba:
Cruz Credo
Credo Cruz
Aí vem o delegado
Abelardo Luz
— Foi falar no Diabo e ele chegou mesmo. O samba o chamou. E o pior, é que ele gostou da música. Sujeito mau, fez a gente descer o morro debaixo de bengaladas e ir até Madureira, onde ficava seu distrito. Fomos cantando o samba, com harmonia. Se alguém desafinasse apanhava mais ainda.
— Naquela época, esse era o tratamento comum ao sambista. Depois, aos poucos, fomos nos organizando. Choramos muito, apanhamos, fomos presos diversas vezes. Esse foi o preço de manter o samba vivo: suor, lágrimas e sacrifício.
Enfim, Mangueira
Apesar de ter começado no Estácio, Juvenal nunca se afastou da Mangueira. Ali era seu lar. No Buraco Quente mantinha suas amizades. Conheceu todos os blocos que por lá passaram; Tia Tomásia, Tia Fé, Mestre Candinho e Arengueiros. Este último, segundo afirma, constituído por cinco famílias que se fantasiavam de baianas, no carnaval, deu origem à Estação Primeira em 1928. Anos passados, em 1962, o sambista assumiu a presidência da agremiação. Uma de suas primeiras providências foi incorporar Mangueira ao nome oficial da escola. Até então era somente Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira. Também deve-se a ele a quadra onde hoje é o Palácio do Samba, e o cordão das pastoras nos ensaios, entre outras coisas.
— Quando assumi a presidência, os ensaios ainda eram na cerâmica, sem espaço para nada. Eu sabia que precisávamos de uma quadra, pois o samba é o único divertimento do favelado. Após muita luta, muita insistência, consegui com o Governo da época um local. Deram-nos o brejo onde o Estado pretendia fazer sua garagem.
Para arrumar tudo, coloquei dinheiro do meu bolso ali dentro. Perdi noites na cozinha, a preparar lanches para convidados e autoridades. Empregados era um luxo do qual não podíamos desfrutar. E não reclamo, nem me arrependo. Meu ideal era aquele. A vida nada valeria sem isso.
Em 1969 Juvenal Lopes deixa o cargo. Motivo? Doença. O coração não resistiu a tanta pressão. Da Mangueira seguiu direto para o hospital. Três meses no Instituto de Cardiologia, onde volta até hoje. Só de remédios gasta 50 cruzeiros em cada dez dias. O que ficou de toda sua dedicação ao samba, ele assim resume:
— Perdi minha casa. Fui obrigado a vendê-la para comer. Meu dinheiro ia todo para as obras na Escola. Perdi minha barraca de feira, a profissão à qual me dediquei grande parte de minha vida. Ela me deu condições de criar meus filhos. Hoje,, nem direito à aposentadoria tenho. O teto que possuo, meu filho Pedro Paulo me deu.
— E o pior de tudo, perdi minha saúde. Mas nada disso tem importância. Vejo a Mangueira de agora, grande, forte, rica, inigualável. Este é meu consolo e ela virou o que é graças, não a mim, mas ao povo que sempre soube amá-la.
Ajudado por Deus
Profundamente religioso, dizendo-se ajudado por Deus, Juvenal é um fiel devoto de Nossa Senhora da Conceição. A ela deve muito favores, inclusive a cura de sua perna, que ele conta, emocionado:
— Lá por 1940, tive uma doença na perna. Deu micróbio no osso da coxa, cheguei a ser operado. Andava de muletas, padecia de dor. Sete anos depois voltei ao hospital. O médico me desenganou. Falou que não havia cura, que eu tinha os dias contados. Saí de lá desesperado. Pedi ajuda a Nossa Senhora da Conceição. Ela me ouviu. Hoje nem das muletas preciso, apesar de uma perna mais curta.
Conformado com sua sorte, aceitando sem reclamar os desígnios de Deus, Juvenal é também compositor. Sambas a perder de conta, muitos vendidos em sua juventude, conseguiu apenas gravar quatro. Sua chance, no entanto, parece que chegou. A cantora Bete de Carvalho está interessada em alguns trabalhos seus, o que, para ele, além de ser maravilhoso, é uma grande surpresa.
— O compositor de morro não tem vez, pois a maioria dos cantores não se interessa pela boa música, mas pelo dinheiro. E eu tive que me conformar em escutar minhas músicas somente na minha voz.
Juvenal tem outra mágoa:
— As escolas se formaram para defender o samba. Os compositores do passado sofreram um bocado, porém não deixaram ele morrer. Mas as escolas subiram tanto que hoje o samba foi relegado a segundo plano. Não se fala mais dele. Apenas das escolas.
— Hoje vejo o samba como uma espécie de comércio. Há gente que vive da escola e poucos os que vivem para ela. Nós deveríamos amá-la. Mas isso não acontece. O que se verifica é cada um tentando tirar proveito da melhor maneira.
E sobre a invasão do povo nas escolas, ele diz:
— Samba é um divertimento. É música. E música não tem pátria ou nacionalidade.
O samba também é a vida de Juvenal.
— Sem ele – confessa – não posso viver. E quero morrer cantando samba, num desfile, no meio da alegria. Não quero tristezas e lágrimas. Quero muito samba, muita folia...
(Reportagem de Beatriz Santacruz)
_________________________________________________________________Fonte: A Notícia - 2. cad. - Rio de Janeiro - 18/07/1973