A imagem de Dercy Gonçalves, já uma senhora, mas ainda muito bonita em seu maiô rebordado de strass, as imensas plumas coloridas de avestruz na cabeça e na cauda, liderando — vedete absoluta, como mandava o figurino — o elenco reluzente da Companhia Dercy Gonçalves, era a da grande estrela, em seu elemento, o palco.
Meados dos anos 50, o teatro era o desaparecido Santana, na rua 24 de Maio, em São Paulo. Só ver Dercy encerrar o espetáculo cantando o samba
Até amanhã de
Noel Rosa, secundada por atores, atrizes, lindas mulheres, todos entregando-se ao ritmo brasileiro que, então, dominava por completo o
teatro de revista, valia o ingresso.
Boa cantora, bela figura, desenvolta e com jeito brasileiro em cena, logo se tornou caricata e intérprete de sambas, desde que chamou a atenção da crítica, na revista
Rumo A Berlim, de
Freire Júnior e Walter Pinto, em 1942, no Teatro Recreio.
Cresceu tanto que, em 1944, já imitava ninguém menos que
Araci Cortes, a rainha da revista, em
Barca da Cantareira, de
Luiz Peixoto e
Custódio Mesquita. Cantando samba, naturalmente. Como sempre o faria, no decorrer dos 30 anos em que foi das vedetes mais aplaudidas do país.
Filha de alfaiate e neta de coveiro, Dolores Gonçalves Costa (nascida a 23 de junho de 1907), ficou sem a mãe muito cedo. A lavadeira Margarida descobriu que o marido tinha uma amante. Ofendida e humilhada arrumou as trouxas e foi para o Rio de Janeiro, largando os sete filhos para que o infiel tomasse conta. Vitória, a amante de seu Manoel, passou a freqüentar a casa. "Ficavam namorando na sala, de mãos dadas. Mas papai nunca assumiu o romance. A certa altura da noite, ela ia embora."
Dercy, bilheteira de cinema, escandalizava a cidade ao pintar o rosto como as atrizes dos filmes mudos. Dançava para alegrar os hóspedes do Hotel dos Viajantes em troca de um prato de comida. Na missa, de vestido de chita, cantava de pé num banquinho abraçada à imagem de Jesus. Aí se apaixonou por Luís Pontes, um rapaz de bons modos. "Foi a primeira pessoa que me deu carinho. Mas a família dele proibiu o namoro." Quando encontrou a companhia de teatro mambembe, Dercy tinha todas as razões do mundo para fugir de casa.
Em Conceição de Macabu (RJ), passou a ser assediada pelo cantor Eugenio Pascoal. "Não sabia que eu era moça, não tinha virado mulher." Só tomou coragem para se entregar quando a turnê chegou a Leopoldina (RJ), duas semanas depois. Gentil, Pascoal saiu do quarto para que ela colocasse a camisola feita de saco de arroz. Tinha até inscrito no peito: "Indústria Brasileira de Arroz Agulhinha, arroz de primeira." Os carinhos preliminares não a incomodaram, mas quando ele a penetrou Dercy deu um pulo. Viu que estava sangrando e imaginou-se ferida. "Sentei o pé nele e saí porta afora. Socorro! Esse homem me furou! Imaginei que tinha enfiado um facão e rasgado minhas tripas."
Nunca mais houve clima para romance, mas eles se tornaram grandes amigos, até Pascoal morrer, tuberculoso. Pior: contagiou Dercy. Foi quando ela encontrou Ademar Martins, exportador de café mineiro, casado, muito católico. Levou-a para um sanatório perto de Juiz de Fora, aparecia uma vez por semana para vê-la e pagar a conta. Depois, instalou Dercy num hotel na praça Tiradentes, no Rio. Só então transaram pela primeira vez. Nasceu Dercimar, a única filha de Dercy. "Teve aulas de boas maneiras, aprendeu francês e casou com um quatrocentão da Tijuca. É uma dama na expressão da palavra", deleita-se Dercy.
Estrela das comédias da praça Tiradentes e das revistas musicais do Cassino da Urca, fez do palavrão cavalo de batalha. "Sou um retrato do País, que é a própria escrotidão", dispara. Ao imitar os trejeitos de
Carmen Miranda, coçava o corpo todo. Ironizava o caminhar manco de
Orlando Silva e fazia troça do vozeirão de
Vicente Celestino.
Fez 36 filmes e, a partir de 1957, entrou também na televisão. Nos anos 60, Consultório sentimental, na TV Globo, uma espécie de talk-show primitivo ela esculhambava o convidado, chegou a ter 90% da audiência dos aparelhos ligados.
"Sou uma escola de irreverência." Dercy chega aos 92 anos sozinha. Casou na década de 40 com o jornalista Danilo Bastos, dez anos mais jovem. "Não era amor, e sim troca." Teve um caso tórrido com o acrobata Vico Tadei, mas amor verdadeiro, de chorar, só o Luís Pontes, o rapaz de bons modos de Madalena. "Escrevia cartas e as lágrimas caíam no papel. Mas o tempo passou e eu esqueci Luís Pontes. Ai de nós se não houvesse o esquecimento."