sexta-feira, outubro 01, 2010

Violão amigo

"Violão amigo" foi gravado por Gilberto Alves em 1942 e a abertura melódica do samba parece evocada no manifesto da bossa "Desafinado".

Violão amigo (samba, 1942) - Alcebíades Barcelos e Armando Marçal - Intérprete: Gilberto Alves

Disco 78 rpm / Título da música: Violão amigo / Armando Marçal (Compositor) / Bide, 1902-1975 (Compositor) / Gilberto Alves (Intérprete) / Gravadora: Odeon / Gravação: 14/07/1942 / Lançamento: 09/1942 / Nº do Álbum: 12189 / Nº da Matriz: 7016 / Gênero musical: Samba


Violão amigo ouve os meus ais
Ouve os meus segredos
Não suporto mais

Talvez tu compreendas meu sentir
Quero exprimir nesse samba
Tudo que sofri

Quem de mim sorriu
Por certo há de chorar
Quando ouvir alguém cantar

Poeta eu fui
Embora sem querer
Cantei em versos o meu sofrer

Violão amigo
Eu canto por consolação
Trago esta mágoa sentida
No meu coração, violão



Fontes: Discografia Brasileira - IMS; Instituto Moreira Salles.

Bem-te-vi atrevido

Lina Pesce
A paulista Lina Pesce, filha do maestro italiano Giacomo Pesce, ficou conhecida em 1942, quando o choro "Bem-Te-Vi Atrevido", então famoso no Brasil, foi incluído na trilha sonora de um filme de Hollywood, "Dupla Ilusão" ("Twice Blessed", no título original).

Em 1958, mais de 200 músicas de sua autoria já haviam sido gravadas. Em 1963 lançou, como pianista, o disco "Chorinhos bem Brasileiros", com o renomado músico Radamés Gnattali.

"Lina, assim como outras excelentes compositoras, como Tia Amélia e Carolina Cardoso de Meneses, que aos 16 anos teve sua primeira música gravada, acabaram esquecidas, como acontece com tantos artistas brasileiros. É uma pena, porque elas são ótimas", diz Anna Paes.

Para resgatar a obra dessas compositoras, em 2001 a gravadora Acari Records lançou o CD "Mulheres do Choro".

Bem-te-vi atrevido (choro, 1942) - Lina Pesce - Intérprete: Muraro

Disco 78 rpm / Título da música: Bem-te-vi atrevido / Lina Pesce (Compositor) / Muraro (Intérprete) / Rítmico (Acomp.) / Gravadora: Odeon / Gravação: Sem registro / Lançamento: Sem registro / Nº do Álbum: 2912 / Nº da matriz: C-14465 / Gênero musical: Choro / Coleções de origem: Nirez, José Ramos Tinhorão



Fonte: E assim nasceu o ritmo brasileiro - Revistas - On Line - Sesc SP

Pedro Viola

Araci de Almeida
Pedro Viola (samba-canção, 1939) - Laurindo de Almeida - Intérprete: Araci de Almeida

Disco 78 rpm / Título da música: Pedro Viola / Laurindo Almeida (Compositor) / Araci de Almeida (Intérprete) / Regional (Acomp.) / Gravadora: Odeon / Gravação: 31/03/1939 / Lançamento: 07/1939 / Nº do Álbum: 11848 / Nº da Matriz: 33048-1 / Gênero: Samba canção


Pedro Viola vivia no samba
Em Estacio de Sá / Parece que a sorte
Queria que Pedro saísse de lá

Um dia ele viu a Rosinha bonita
E se apaixonou / O samba esqueceu
A viola largou / E deixou de cantar

Mas Pedro Viola não adivinhou
Que não ia gostar / Sentindo saudades
Deixou o barraco / E veio sambar...

O samba durou / A noite acabou
E pedro voltou / Mas seu barracão
Tristonho e vazio / Lá em cima do morro
Ele encontrou...

O tempo passou / Mas o pobre sambista
Não se conformou / A velha saudade
Bateu nom seu peito / Coitado, chorou...

Vivendo sozinho / Contando os zincos
Do seu barracao / Foi que Pedro Viola
Morreu abraçado ao seu violão...



Fontes: Discografia Brasileira - IMS; Instituto Moreira Salles.

O carreté do Coroné

O carreté do Coroné (coco, 1939) - Manezinho Araújo - Intérprete: Manezinho Araújo

Disco 78 rpm / Título da música: O carreté do coroné / Manoel Araújo (Compositor) / Manoel Araújo "Manezinho Araújo" (Intérprete) / Boêmios da Cidade (Acomp.) / Gravadora: Odeon / Gravação: 11/04/1939 / Lançamento: 08/1939 / Nº do Álbum: 11745 / Nº da Matriz: 6057 / Gênero musical: Côco / Coleção de origem: Nirez



Seu Coroné comprô um automovi
Que todo dia sobe na ladeira do Migué
Seu Coroné comprô um automovi
Que todo dia sobe na ladeira do Migué

Tem um espeio que só à luz do dia
Pode sua famia passeiá quando quise
E o carreté imbolando pelo chão
Eu vou é trabaiá no caminhão do coroné

Seu dotozinho comprou um carro forte
Otra coisa mais mió garanto que ele não qué
Seu dotozinho comprou um carro forte
Otra coisa mais mió garanto que ele não qué

Quando ele chega e si dana lá pra usina
Apertando a buzina enche o carro de muié
E o carreté imbolando pelo chão
Eu vou é trabaiá no caminhão do coroné

Lá na usina chego dois caminhão
Qui carrega da estação cana modi faze mé
Lá na usina chego dois caminhão
Qui carrega da estação cana modi faze mé

Seu dotozinho carrega a mulé dos homi
Tá bancando o lobsomi tendo o carro chevrolé
E o carreté imbolando pelo chão
Eu vou é trabaiá no caminhão do coroné

Seu Tolentino que é chefe de um angá
Deu a fia pra casá ao fio do coroné
Seu Tolentino que é chefe de um angá
Deu a fia pra casá ao fio do coroné

E todo dia ele pega o seu amô
arremexe no motô ensinando a ser chofer
E o carreté imbolando pelo chão
Eu vou é trabaiá no caminhão do coroné

Doje por diante vo largá o meu emprego
Por causa do chamego do dotô com essas mulé
Doje por diante vo largá o meu emprego
Por causa do chamego do dotô com essas mulé

Esses passeio nesses carro no escuro
Isso é negócio duro só mesmo quem tem ané
E o carreté imbolando pelo chão
Quero ve quem trabaia mais no caminhão do coroné...



Fontes: Discografia Brasileira - IMS; Instituto Moreira Salles.

É samba, sinhá!


— Negro, o que é esse batuque?

— É samba, sinhá!

Samba é um verbo conguês da 2ª conjungação, que significa adorar, invocar, implorar, queixar-se, rezar — ensina o filólogo Antônio Joaquim Macedo Soares em seus Estudos lexicográficos do dialeto brasileiro, na parte que trata Sobre palavras africanas introduzidas no português que se fala no Brasil. Samba é, pois, rezar. No angolense ou bundo, igualmente, rezar é casumba: na conjugação, o verbo perde a sílaba inicial do presente do infinito, de sorte que, além deste tempo e modo, em todos os outros o termo bundo é samba, e assim é também o substantivo adoração, reza, samba, mussambo. Dançar é, no bundo, cuquina; no congo, quinina. Como, pois, samba é dança? É, sem dúvida; mas uma dança religiosa, como é o candombe, uma cerimônia do culto, dança em honra e louvor de uma divindade — ensina ainda A. J. Macedo Soares.

Alfredo de Sarmento informa em Os sertões d'África, que samba provém de semba, umbigada em Luanda.Samba é nome angolense que teve sua ampliação e vulgarização no Brasil, consagrando-se no segundo lustro do século XIX, informa Luís da Câmara Cascudo, que revela ter sido feito por frei Miguel do Sacramento Lopes Gama, no jornal Carapuceiro, de 03 de fevereiro de 1838, no Recife, o primeiro registro da palavra samba, ao esbravejar, indignado, contra o Samba d'Almocreves. Na edição de 12 de novembro de 1842, registra o Carapuceiro — quem informa é ainda Cascudo — que "Aqui pelo nosso mato ? Qu'estava então mui tatamba ? Não se sabia outra coisa ? Senão a dança do samba".

Almirante, que é Henrique Foréis, fixa o aparecimento localizável do primeiro samba, ao contrário do que informa Câmara Cascudo, em 1889. Esse samba, segundo Almirante, foi feito sobre a mulata Sabina, que vendia laranjas à porta da Academia de Medicina, no Rio de Janeiro, e que, certo dia, foi proibida por um ministro de Estado, a continuar com a venda. As laranjas da Sabina, apareceu como se fosse tango (...), com vozes gêges e nagôs, na semi-escuridão da senzala. Os pretos em roda esmurram os atabaques, sacodem ganzás, batem rumpis, vibram agogôs e cabaças. Isso é samba. Uma negra entra na roda:

Penera, penera
Penerô
Penera, penera
Penerô

E tome uma punga, uma imbigada. Isso é samba. Guilherme de Melo, no seu livro A música no Brasil, dá a informação de que a transformação do samba africano em samba brasileiro não ocorreu na Bahia, para onde ele foi importado da África, pelos negros escravos, mas nos sertões do Maranhão, o que não deixa de ser uma revelação surpreendente. Diz ele: "Compõe-se este samba dos seguintes instrumentos: o perenga, atabaque de pequena dimensão que exerce o papel de cantante por ser o mais agudo; o fungador, que por ser o médio faz o contratempo; o socador, que por ser grave faz a marcação e, finalmente, o roncador, que por ser muito grande e produzir sons muito graves exerce o papel do contrabaixo ou bombardão e emite, compassada e alternativamente, sons tão profundos e cavernosos que parecem sair misteriosamente das entranhas da terra".

Esse samba ainda é conservado no Maranhão, mesmo na capital, com o nome de tambor de crioula. Com idênticas características existem o sarambete, semba, sorongo, saramba e quimbebe em Minas Gerais e Bahia; o cateretê, em São Paulo e estado do Rio de Janeiro, o coco de zambê, no Rio Grande do Norte. No estado do Rio de Janeiro, existiu o jongo, e, no município do Rio, o xiba. Em Pernambuco e em determinadas regiões da Bahia, o samba era samba mesmo.

Os negros escravos dançavam o samba, ao som do batuque, e cantavam o lundu, o quilombo e o quicumbre. Na coreografia do samba eram empregados passos chamados corta-jaca, miudinho e baião ou baiano. Os cânticos se chamavam congos ou taieras.

O samba continuou no norte, apareceu no sul o fandango, dançado ao ar livre como o samba de roda, ao som de violão, viola, viola de arame, cavaquinho, pratos e pandeiros. No centro, surgiram o caxambu e o sarambu. No nordeste, o maracatu, o cacumbi e o sorongo, cariantes do batuque, acompanhados pelas batidas do mulungu, atabaque, vuvu e por quissange, marimba, berimbau, ganzá e agogô.

O lundu, que os negros bantos trouxeram de Angola para a Bahia, desceu ao Rio de Janeiro, e dele nasceram a chula e o tango brasileiro, sem qualquer semelhança com o argentino. Misturando-se, mais tarde, o lundu com a rítmica da habanera e a andadura da polca, surgiu no Rio, o maxixe, que passou a ser dançado nos cabarés de baixa categoria e cantado nas revistas teatrais. Artur Ramos classifica o maxixe como a primeira dança nacional brasileira, e Luciano Gallet diz ter sido ele uma dança típica do Brasil.

No tempo do maxixe, a dança de batuque no Rio de Janeiro era a xiba, e samba era reunião de malandros, com violão, mulher e cachaça, principalmente nos botequins do bairro de Botafogo. Era também baile popular urbano e rural, sinônimo de pagodeira, função, fobó, arrasta-pé, forró, forrobodó, fungaga. Em Alagoas, tomava o nome de balança-flandre. Aos poucos, a xiba foi desaparecendo e o samba passou a ser dançado na cidade, em substituição ao maxixe, e tocado nas salas de espera dos cinemas, como atração. Renato de Almeida, em A música no Brasil, acentua que o samba substituiu o maxixe, sem oferecer coreograficamente o mesmo interesse e a variedade de passos e figuras da velha dança carioca.

Diz Guilherme de Melo que o samba chegou ao Rio de Janeiro com os ranchos, que nasceram das taieras cantadas nas procissões de São Benedito, na Bahia, tornando-se a predileção carioca. Foram mulheres baianas que chegaram ao Rio, como companheiras dos soldados remanescentes da Guerra de Canudos, que trouxeram o batuque do samba. Esses soldados e essas mulheres baianas passaram a residir no morro de São Diogo, e como elas eram da serra da Favela, o morro passou a ser chamado de morro das Mulheres da Favela e, mais tarde, apenas morro do Favela.

As velhas baianas

As baianas do morro da Favela ficaram velhas, passaram a morar nas ruas adjacentes da Cidade Nova, e vendiam quitutes baianos na atual praça Onze. Eram: tia Amélia, tia Presciliana de Santo Amaro, tia Mônica, tia Verdiana, tia Gracinda e a mais famosa, por ser a mais festeira, era tia Ciata, consoante informa Ari Vasconcelos. Essas mulheres eram mães de batuqueiros bambas, que deitaram fama na roda do samba. Tia Amélia era mãe de Donga. Tia Presciliana era mãe de João da Baiana. Tia Mônica era mãe de Pendengo.

Tia Ciata, cujo nome verdadeiro era Hilária Batista de Almeida, ensaiava rancho, fazia sessão de cabdombe e vendia os melhores e mais apimentados quitutes baianos em sua casa, na rua Visconde de Itaúna. Para as sessões de candombe, para ensaiar no rancho e entrar nas comidas, não saíam da casa de tia Ciata, os banqueiros e chorões Donga, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, João da Mata, Caninha, João da Baiana, Sinhô e Alvear.

Ari Vasconcelos informa que, em 1914, os cantores Baiano e Júlia, e o Grupo da Casa Edison, gravaram, em disco de cera, uma música com o nome de Samba. Em 1916, a gravadora Odeon, aproveitando a música de uma toada nordestina muito em voga (Olha a rolinha ? Sinhô, sinhô / Se embaraçou / Sinhô, sinhô), fez um disco com execução da Banda do Corpo de Bombeiros. No ano seguinte, o chefe de polícia, Aurelino Leal, que se dispôs a acabar com o jogo e com o amor a céu aberto no Rio de Janeiro, após sofrer violenta campanha do jornal A Noite, afirmou que não havia mais condições para a instalação de uma banca de jogo sequer na cidade. Castelar de Carvalho e Eustáquio Alves, repórteres de A Noite, para provar que o jogo continuava franco, montaram uma roleta do largo da Carioca, defronte da redação do jornal.

Foi aproveitando esse episódio que Donga e o jornalista Mauro de Almeida lançaram, com a música de Olha a rolinha / Sinhô, sinhô, o samba Pelo telefone, que fez furor no carnaval desse ano de 1917, gravado que foi pela voz de Baiano.

Pelo telefone

Pelo telefone não tem ainda a sua autoria suficientemente esclarecida. Há quem acredite que ele seja da autoria de Didi da Gracinda, de João da Mata, Mestre Germano, Caninha. O certo, porém, é que o samba se consagrou, por ter sido o primeiro a obter sucesso, e a sua autoria ficou sendo como de Donga (Ernesto dos Santos) e Mauro de Almeida. Pelo telefone teve muitas letras, mas a tradição conserva a que começa assim:

O chefe de polícia
Pelo telefone
Mandou-me avisar
Que na Carioca
Tem uma roleta
Para se jogar

Sinhô e Caninha, rivais no samba, trouxeram o samba, com a sua rivalidade, das batucadas do morro da Favela para a consagração do carnaval — informa Marisa Lira em Brasil sonoro, ressaltando que surgiu então o samba do partido alto, o verdadeiro ritmo do samba, que era lançado por um e pelo outro na festa da Penha, em outubro, como um desafio e eram repetidos nos dias de carnaval. Sinhô produziu então um samba que se tornaria clássico na música popular brasileira: Jura. É assim:

Jura! Jura! Jura!
Pelo Senhor
Jura pela imagem
Da Santa Cruz do Redentor
Pra ter valor a tua
Jura! Jura! Jura!
De coração
Para que um dia
Eu possa dar-te o meu amor
Sem mais pensar na ilusão
Daí então dar-te eu irei
O beijo puro na catedral do amor
Dos sonhos meus, bem junto aos teus
Para livrar-nos da aflição da dor

Sinhô e Caninha glorificaram o malandro em seus sambas. E o samba foi caminhando, ganhando novas nuanças, com as composições de Nilton Bastos, Aricles França, Candoca da Anunciação, João da Gente, Sá Pereira, Bequinho, Cartola, De Chocolate, Chico da Baiana, José Francisco de Freitas, Pixinguinha, Almirante, Baiano, Ismael Silva. Em 1929, apareceu uma moça, nascida na rua do Matoso, que recebeu o nome de Araci Cortes, que cantava com muita graça e brejeirice num circo de subúrbio, e gravou os sambas de Sinhô. Nos teatros de revistas cantava Otília Amorim. Sinhô descobriu em Mário Reis, um moço de sociedade, que com ele queria aprender a tocar violão, um cantor de muita bossa para criar os seus sambas. E Mário Reis, cantando os sambas de Sinhô, introduziu a música da gente dos morros nos salões da alta roda.

A primeira escola

Em 1928, no bairro do Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, foi formada a primeira escola de samba, a Escola de Samba Deixa Falar, por Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide, Marçal, Rubens, Geraldo Cara de Cão, Edgar Brancura — informa Sérgio Cabral em seu ensaio pioneiro Escolas de samba, publicado nas edições do Jornal do Brasil de 8 de janeiro de 1961 até às vésperas do carnaval. Francisco Alves ia cantando, à frente da Deixa Falar. Em 1929, Claudionor, Cartola, Gradim, Antonico, Carlos Cachaça organizaram a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Prazeres inventou as pastoras, e uma delas foi a cantora Carmem Costa. Na década de 1940, Herivelto Martins introduziu no samba o refrão esquindó, com uma composição com esse nome e essa grafia. O skindô que anda por aí deve ser outra coisa. As escolas de samba meteram apito, pratos de cozinha e frigideiras no samba. Sem falar no couro de gato, que teve as honras de um samba de Noel.

O couro do gato

O samba, no Rio de Janeiro, descobriu o gato. O malandro sambista morou no couro do gato, mandou que o couro mais forte e mais harmônico para o choro do batuque era o do gato. E saiu pelo morro, pulando os telhados de zinco, com laços de arame na mão, caçando gatos. Orestes Barbosa informa como os malandros fazem a operação cirúrgica nos gatos, para lhes transformar o couro em cuíca e tamborim.

É assim: laçados os gatos, são feitos dois cortes nas patas dianteiras; sangrando-lhes os cortes com canudos de mamoeiro e o gato, morto e cheio de vento, fica como uma bola. Aí, então, é só dar um talho reto da goela ao fim do ventre, e o couro sai. Assim retirado, o couro é posto ao sol, conservado em cinza de fogão; dentro de oito dias, mais ou menos, esse couro de gato é mais um tamborim ou uma cuíca vibrando surda ao samba brasileiro:

Chora, couro de gato!
Fala, meu tamborim!

Os apelidos do samba

Sinhô, cujo nome verdadeiro era João Barbosa de Morais, se intitulou Rei do Samba. Noel Rosa foi o Filósofo do Samba. Araci Cortes, que foi batizada como Zilda de Carvalho Espínola, era a Alma do Samba. Luís Barbosa foi o Caricaturista do Samba, que hoje é título de Jorge Veiga. Mário Reis era o Samba de Smoking. Nonô, que era o pianista Romualdo Peixoto, foi o Chopin do Samba. Otília Amorim foi a Mulher-Samba. Caninha foi Doutor em Samba, o único a ganhar diploma como tal, dado pela Prefeitura do antigo Distrito Federal. Ismael Silva é o Cidadão Samba. Ciro Monteiro é o Senhor Samba. E Araci de Almeida é o Samba em Pessoa. Geraldo Pereira foi o maior dos sambistas. Monsueto é o Sambista de Verdade. Donga é a Tradição do Samba. Orestes Barbosa foi o Sambista da Cidade. Paulo da Portela é o Sambista Imortal. Almirante é o Arquivo do Samba.

Os tipos de samba

Há, atualmente, sete tipos de samba. A informação é de José Ramos, que as enumera: samba de escola ou de morro, samba de carnaval, samba de partido alto, samba-canção, samba-choro, samba de breque e samba de meio de ano. E explica que samba de escola ou de morro é o samba de enredo, destinado aos desfiles das Escolas de Samba. Samba de partido alto é o mais próximo do batuque e do samba de roda, à base de um estribilho ou refrão e de versos tirados de improviso, ou empregando quadras que se podem considerar folclóricas, pela sua sobrevivência na memória dos sambistas. Samba-canção, de ritmo variável, alguns chegando a confundir-se quase com boleros, foxes-blues e outros ritmos estrangeiros: certos compositores criaram, inclusive, as expressões sambalada e sambolero para definir esse tipo de samba fabricado. Samba-choro é aquele cujo ritmo se aproxima do chorinho. Samba de breque — diz ainda José Ramos — é o de paradas súbitas, em que se intercalam frases faladas. Samba de meio de ano é todo aquele que aparece fora de carnaval.

Num samba que foi o vencedor do carnaval de 1933, Caninha disse que:

Samba de morro
Não é samba, é batucada
É batucada

Ari Barroso, recentemente, afirmou que Samba sem telecoteco / Não é samba / Não é samba. João Roberto Kelly é da mesma opinião de Ari Barroso, e fez um samba dizendo que Samba que não tem telecoteco / Não é samba / É xaveco.

A voz dos críticos

Lúcio Rangel classifica, pela ordem, como os melhores sambas, estes dez: Agora é cinza, de Bide e Marçal; Jura, de Sinhô; Ai, ioiô (Linda flor), de Henrique Vogeler, Luís Peixoto e Marques Porto; Maria, de Ari Barroso e Luís Barroso; Só pode ser você, de Noel Rosa; Novo amor, de Ismael Silva; Divina dama, de Cartola; Deixa esta mulher chorar, de Brancura; Leva meu samba, de Ataulfo Alves; e Faceira, de Ari Barroso.

Os melhores letristas para Lúcio Rangel são: Noel Rosa, Sinhô, Evaldo Rui, Orestes Barbosa, Lamartine Babo, Almirante, Vinicius de Morais, Ataulfo Alves, Luís Peixoto, Haroldo Barbosa, Billy Blanco, Monsueto, Miguel Gustavo e Luís Antônio. Musicistas: Sinhô, Ari Barroso, Henrique Vogeler, Bide e Marçal, Gadé e Valfrido Silva, Noel Rosa, Cartola, Brancura, Wilson Batista e Haroldo Lobo, Nonô, Bororó, Ismael Silva e Nilton Bastos. Eis os melhores cantores de samba para Lúcio Rangel: Araci de Almeira, Mário Reis, Sílvio Caldas, Moreira da Silva, Francisco Alves, Ciro Monteiro, Luís Barbosa, J. B. de Carvalho, Araci Cortes e Marilia Batista.

Sérgio Porto, que é também Stanislaw Ponte Preta, considera como os melhores sambas: Agora é cinza, de Bide e Marçal; Jura, de Sinhô; Implorar, de Kid Pepe e Germano; A fonte secou, de Monsueto; Saudades de Amélia, de Ataulfo Alves e Mário Lago; Maria, de Ari Barroso e Lamartine Babo; Provei, de Noel Rosa e Vadico; Solução, de Raul Sampaio; Se você jurar, de Ismael Silva e Nilton Bastos; e Se todos fossem iguais a você, de Vinicius de Morais e Antônio Carlos Jobim.

Como melhores letristas, Sérgio Porto aponta: Noel Rosa, Evaldo Rui, Haroldo Barbosa, Billy Blanco, Lamartine Babo, Luís Antônio, Orestes Barbosa, Monsueto, Luís Peixoto e Vinicius de Morais. Musicistas: Cartola, Nélson Cavaquinho, Ismael Silva e Nilton Bastos, Ari Barroso, Vadico, Ataulfo Alves, Geraldo Pereira, Sinhô, Zé da Zilda, Bide e Armando Marçal, Haroldo Lobo e Wilson Batista. Estes são os melhores cantores na opinião de Sérgio Porto: Araci de Almeida, J. B. de Carvalho, Mário Reis, Ciro Monteiro, Jamelão, Moreira da Silva, Sílvio Caldas, Marília Batista, Miltinho e Luís Barbosa.

Ari Vasconcelos enumera os seguintes sambas como os melhores feitos até hoje: Agora é cinza, de Bide e Marçal; Jura, de Sinhô; Saudades de Amélia, de Ataulfo Alves e Mário Lago; Na virada da montanha, de Lamartine Babo e Ari Barroso; Feitiço da Vila, de Noel Rosa e Vadico; Ai, ioiô (Linda flor), de Henrique Vogeler, Luís Peixoto e Marques Porto; Se você jurar, de Ismael Silva e Nilton Bastos; Deixa esta mulher chorar, de Brancura; Divina Dama, de Cartola; e Longe dos olhos, de Cristóvão de Alencar e Djalma Ferreira.

Ari Vasconcelos acha que Noel Rosa, Jorge Faraj, Aldo Cabral, Ataulfo Alves, Mário Lago, Lupicínio Rodrigues, Assis Valente, Evaldo Rui, Marino Pinto e Pedro Caetano são os melhores letristas. Musicistas: Sinhô, Noel Rosa, Ari Barroso, Cartola, Lamartine Babo, Ismael Silva, Nilton Bastos, Wilson Batista, Bide e Ataulfo Alves. Estes são os melhores cantores de samba na opinião de Ari Vasconcelos: Araci de Almeida, Sílvio Caldas, Mário Reis, Luís Barbosa, Vassourinha, Carmem Miranda, Dircinha Batista, Ciro Monteiro, Orlando Silva, Sílvio Caldas e Moreira da Silva.

Sérgio Cabral aponta como os melhores sambas: Agora é cinza, de Bide e Marçal; Jura, de Sinhô; Três apitos, de Noel Rosa; Alô, padeiro, de Haroldo Lobo e Wilson Batista; Fita meus olhos, de Cartola; Saudades de Amélia, de Ataulfo Alves e Mário Lago; Ai, ioiô (Linda flor), de Henrique Vogeler, Luís Peixoto e Marques Porto; Falsa baiana, de Geraldo Pereira; Notícias, de Nelson Cavaquinho; e Faceira, de Ari Barroso e Luís Peixoto.

Eis os melhores letristas na opinião de Sérgio Cabral: Sinhô, Noel Rosa, Ataulfo Alves, Evaldo Rui, Geraldo Pereira, Orestes Barbosa, Lamartine Babo, Luís Peixoto, Monsueto e Haroldo Barbosa. Musicistas: Sinhô, Ari Barroso, Cartola, Ismael Silva e Nilton Bastos, Bide e Marçal, Wilson Batista, Noel Rosa, Nélson Cavaquinho, Gadé e Valfrido Silva, e Ataulfo Alves. Os melhores cantores apontados por Sérgio Cabral: Araci de Almeida, Marília Batista, Ciro Monteiro, Sílvio Caldas, Luís Barbosa, Moreira da Silva, Mário Reis, Jamelão, Jorge Veiga e Roberto Silva.

José Ramos, que às vezes usa o peseudônimo de Tinhorão, destaca como melhores os seguintes sambas: Agora é cinza, de Bide e Marçal; Arrasta a sandália, supostamente de Balaco (Osvaldo Vasques) e Aurélio Gomes; O orvalho vem caindo, de Noel Rosa e Kid Pepe; Não tenho lágrimas, supostamente de Max Bulhões e Milton de Oliveira, com verdadeira autoria atribuída a Wilson Batista; A tua vida é um segredo, de Lamartine Babo; Emília, de Haroldo Lobo; Saudades de Amélia, de Ataulfo Alves e Mário Lago; Antonico, de Ismael Silva; Notícia, de Nélson Cavaquinho; e Tiradentes, de Mano Décio da Viola, feito de encomenda para o enredo do desfile da Escola de Samba Império Serrano, do ano de 1945. As suposições e atribuições sobre a autoria dos sambas são do próprio José Ramos.

José Ramos acha Noel Rosa, Evaldo Rui, Orestes Barbosa, Assis Valente, Lamartine Babo, Ataulfo Alves, Lupicínio Rodrigues, Jorge Faraj, Haroldo Lobo e Mário Lago os melhores letristas que o samba teve ou ainda tem. Musicistas: Custódio Mesquita, J. Cascata, Lamartine Babo, Assis Valente, Cartola, Nélson Cavaquinho, Ataulfo Alves, Wilson Batista, Ismael Silva e Nilton Bastos. Eis, para José Ramos, os melhores cantores: Araci de Almeida, Mário Reis, Francisco Alves, Orlando Silva, Ciro Monteiro, Moreira da Silva, Roberto Silva, Marilia Batista, Isaurinha Garcia e Carmem Costa.

Édison Carneiro acha que os melhores sambas são: Agora é cinza, de Bide e Marçal; O xis do problema, de Noel Rosa; Saudades de Amélia, de Ataulfo Alves e Mário Lago; Camisa amarela, de Ari Barroso; Praça Onze, de Grande Otelo e Herivelto Martins; Café Society, de Miguel Gustavo; Bamboleô, de André Filho; Tenha pena de mim, de Haroldo Lobo; Ai, ai, meu Deus, de Babau e Ciro de Souza; e Madalena, de Ari Macedo.

Para Édison Carneiro, são estes os melhores letristas: Noel Rosa, Mário Lago, Haroldo Lobo, Lamartine Babo, André Filho e Monsueto. Musicistas: Sinhô, Cartola, Ismael Silva e Noel Rosa. Como melhores cantores, Édison Carneiro aponta Araci de Almeida, Mário Reis, Moreira da Silva e Jorge Veiga.

Você partiu
Saudade me deixou
Eu chorei
O nosso amor
Foi uma chama
Que o sopro do passado
Desfaz
Agora é cinza
Tudo acabado
E nada mais
Você partiu
De madrugada
E não me disse nada
Isso não se faz
Me deixou
Cheio de saudade
E paixão
Não me conformo
Com a sua ingratidão

Esta é a letra de Agora é cinza, considerado o maior samba de todos os tempos, segundo Lúcio Rangel, Sérgio Porto, Sérgio Cabral, Ari Vasconcelos, José Ramos e Édison Carneiro, adoradores do samba, defensores intransigentes da pureza e da autenticidade do samba como manifestação popular brasileira. Alcebíades Barcelos, o Bide, integrou, tocando afoxé, por várias vezes o Conjunto da Velha Guarda, de Pixinguinha, e é, no momento, componente da equipe rítmica da Orquestra da Rádio Nacional. Armando Marçal, seu parceiro do samba Agora é cinza, era um crioulo, marceneiro de profissão, que morreu tuberculoso.

Fonte: Masson, Nonato. "É samba, sinhá". Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 1961.

Cristina Buarque

Cristina Buarque
Cristina Buarque (Maria Christina Buarque de Hollanda), nasceu em 23/12/1950, na cidade de São Paulo, SP. Filha do sociólogo e historiador Sérgio Buarque de Holanda e de Mária Amélia Alvim Buarque de Holanda, é irmã caçula dos cantores Miúcha, Chico Buarque e Ana de Hollanda. Sua casa era freqüentada por intelectuais amigos de seus pais, como Vinícius de Moraes e Mário de Andrade.

Em 1952, sua família mudou-se para a Roma, na Itália, onde seu pai foi lecionar, retornando depois ao Brasil. Por volta de 1965, formou um quarteto vocal, com duas irmãs (Ana Maria e Maria do Carmo) e uma amiga (Helena), que se apresentava em shows em colégios paulistanos e em alguns programas esporádicos na televisão, acompanhando às vezes o irmão Chico.

Sua primeira gravação foi em 1967, no LP Paulo Vanzolini - Onze sambas e uma capoeira, selo Marcus Pereira, no qual cantou Chorava no meio da rua (Paulo Vanzolini).

Em 1968, seu irmão, Chico Buarque, chamou-a para dividir com ele a faixa Sem fantasia (Chico Buarque), do LP Chico Buarque Volume 3. Essa gravação alcançou relativa popularidade.

Na início década de 1970, apresentou-se no Bar Violeiro, na barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, junto com João do Vale e Miúcha. Em 1974, lançou seu primeiro LP Cristina no qual interpretou Quantas lágrimas, (Manacéia), o seu grande sucessos, a música a tornou mais conhecida do grande público. Já nesta época começou a de resgatar a obra de antigos sambistas e membros das escolas de samba, como Candeia.

No ano de 1976, lançou o seu segundo LP, Prato e faca. Em 1977, participou do disco Tiro de misericórdia, de João Bosco, faixa Vaso ruim não quebra (João Bosco e Aldir Blanc) e do LP Pelas ruas, de Carlinhos Vergueiro, na faixa Teimosia (Carlinhos Vergueiro). Em 1978 gravou pela Continental o LP Arrebém, com participações das irmãs Miúcha e Piii na faixa Você só... mente (Noel Rosa e Hélio Rosa), e da Velha-Guarda da Portela na música Muito embora abandonado (Mijinha e Francisco Santana). Em 1979 participou do LP Clementina e convidados, da cantora Clementina de Jesus, lançado pela EMI/Odeon, dividindo com ela a faixa Tantas você fez (Candeia).

Em 1980, gravou pela Ariola o LP Vejo amanhecer, que teve a participação do conjunto Época de Ouro na faixa Cantar, de Godofredo Guedes, pai do cantor e compositor Beto Guedes, além da música-título de Noel Rosa. Em 1981 lançou o LP Cristina, com Vida de rainha (Alvaiade e Monarco), e participação de Clementina de Jesus em Quando a polícia chegar (João da Baiana). Ainda neste ano, participou do disco em homenagem a Geraldo Pereira, gravando a música Pode ser? (Geraldo Pereira e Marino Pinto).

Em 1985, participou do disco As flores em vida - Nélson Cavaquinho, cantando Aquele bilhetinho (Nélson Cavaquinho, Augusto Garcez e Wilson Canegal). Neste mesmo ano lançou, em parceria com Mauro Duarte, o LP Cristina e Mauro Duarte, pelo selo Coomusa (Cooperativa Mista dos Músicos Profissionais do Rio de Janeiro), onde regravou Quantas lágrimas.

No ano de 1987, gravou um compacto duplo com Mauro Duarte, no qual os dois cantam Resgate (Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro), e Deixa eu viver na orgia (Cristina e Mauro Duarte). Em 1988 participou do LP Candeia, lançado pela Funarte, interpretando a faixa Morro do sossego (Candeia e Artur Poerner). Em 1989 participou do disco Homenagem a Paulo da Portela, outra vez em dueto com Mauro Duarte, cantando Quem espera sempre alcança.

No ano de 1990 lançou no mercado japonês o CD Resgate, lançado na Brasil novembro de 1994. Em 1995 lançou, com Henrique Cazes, o CD Sem tostão... A crise não é boato - canções de Noel Rosa. Em 1998, gravou no disco Eterna chama/ Candeia, duas parcerias inéditas de Marquinhos de Oswaldo Cruz e Candeia, Luz de verão e Vem pra Portela, registradas por Cristina em fita K7 na casa de Candeia na década de 1970, posteriormente letradas por Marquinhos de Oswaldo Cruz. Neste mesmo ano de 1998, participou do CD Chico Buarque de Mangueira, no qual cantou em várias faixas.

Em janeiro do ano 2000, participou ao lado de Monarco do show O poeta da morte. Neste mesmo ano lançou o CD Ganha-se pouco, mas é divertido, com composições de Wilson Batista. Em 2001 gravou, com Henrique Cazes, o CD Sem tostão 2... A crise continua. Ainda em 2002 participou da caixa de quatro discos Acerto de contas de Paulo Vanzolini, lançada pela gravadora Biscoito Fino, na qual Falta de mim, noite longa (Paulo Vanzolini e Toquinho), Mente e Morte é paz (ambas de Paulo Vanzolini).

Em 2007 Cristina lança o CD Cristina Buarque e Terreiro Grande Ao Vivo, em parceria com o Grupo Terreiro Grande, cantando sambas tradicionais como vem fazendo desde o início de sua carreira. Logo no primeiro semestre do anos seguinte lança em parceria com o grupo Samba de Fato pela gravadora Deckdisc o CD duplo O Samba Informal de Mauro Duarte, no qual resgata grande parte da obra do sambista, sendo que 18 das músicas registradas são inéditas.


Fontes: Cantoras do Brasil; Dicionário Cravo Albin da MPB.

Mário de Andrade e o samba carioca

Embora essencialmente paulista, poderia Mário de Andrade ter deixado um estudo definitivo sobre o samba carioca, do ponto-de-vista estético ao social. Houve mesmo uma época em que ele pensou em reunir em livro uma espécie de panorama — escreveria um ensaio analisando o conteúdo musical do samba, Vinícius de Morais se ocuparia da lírica, e uma terceira parte, tratando da história e dos vultos principais da nossa música popular, seria feita, na falta de melhor colaborador, pelo autor deste artigo.

Infelizmente, e para desgraça minha, que perdi a oportunidade de me colocar lado a lado com os dois grandes poetas, o projeto ficou apenas nas conversas inconseqüentes.

Interessado em qualquer manifestação artística, realizando estudos minuciosos de história literária, ensaios excelentes sobre artes plásticas, além de sua obra de ficcionista e de poeta, deixou, ainda assim, Mário de Andrade, o que melhor se escreveu sobre as nossas danças dramáticas, ensaios agora reunidos em três atentados volumes, completados graças à dedicação de uma sua antiga discípula, a folclorista Oneida Alvarenga.

E deixou, também, para o prazer de todos os que estudam a nossa música popular, alguns escritos dispersos em que aborda o tema samba. Como nossos outros folcloristas, não sei porque, Mário de Andrade preferiu o estudo de certas manifestações musicais observadas em pequenos núcleos da população, ao grande samba, cantado e dançado por milhões de brasileiros, embora influenciado pelas modas internacionais, como tinha que ser.

Preferiu os caboclinhos, de João Pessoa ou do Rio Grande do Norte, o boi-bumbá, do Amazonas, e as congadas, de Vila de Lindóia. E, no entanto, poucos sentiram o samba carioca como ele! Lembro-me das cantorias que fazíamos, os da roda, quando os cartões de chope tornavam-se mais volumosos. E Mário, que então residia no Rio, era sempre o provocador de tais manifestações.

Sem ser um especialista, era um enamorado do samba malicioso e cheio de ritmo que se fazia naquele tempo com mais constância do que hoje. Em um de seus trabalhos menos conhecidos — A pronúncia cantada e o problema do nasal brasileiro através dos discos — não assinado, publicado nos Anais do Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada, revela-se um familiar das gravações populares, acha que o "senhor Mário Reis é bem assim tipicamente nosso que o seu par" (Francisco Alves), que o "senhor Antônio Moreira da Silva apresenta uma voz de timbração deliciosa", que o samba Chora, nega, cantado por Sílvio Caldas, é perfeitamente pronunciado. Só uma vez se engana Mário de Andrade: é quando se refere à brasileiríssima voz do senhor H. Tapajõs", quando comenta um trecho cantado por um irmão deste, Paulo Tapajós.

Também na segunda edição do Compêndio de história da música, a única acrescida de discografia parcial no fim de cada capítulo, fornece Mário de Andrade uma relação de discos que, se não são todos os melhores no gênero, servem perfeitamente para dar uma idéia do nosso samba. Infelizmente, os discos são citados apenas pelos números, antecipados pelas iniciais da etiqueta que os editou, o que torna a indicação praticamente nula para um leitor comum. Com algum esforço, consegui identificar vinte e quatro, dos vinte e sete arrolados por Mário. São os seguintes, na mesma ordem em que figuram no Compêndio, sendo que as iniciais significam: V - Victor; P - Parlophon; e O - Odeon.

V-33471
Benedito, samba de Paulo Rodrigues, cantado pelo autor. Seu Manduca Esfarrapado, batuque de Ari Barroso, cantado por Paulo Rodrigues. É uma das peças mais curiosas de Ari Barroso, como que anunciando a fase da Aquarela do Brasil.

V-33376
Homem que chora e Deixa a véia vadiá, pelos Batutas Rio-clarenses. Interessante notar que Mário, tão cioso da pureza do seu samba rural paulista, aqui comete pecado contrário. Indica um disco em que o elemento rural interfere violentamente em um gênero urbano.

P-13273
A. B. Surdo, marcha maluca, de Lamartine Babo, cantada por Olga Jacobino. É da lua, samba de Inácio e Paulo, cantado por I. G. de Loyola. Disco sem nenhuma expressão, apesar de a marchinha ser de autoria de dois bons compositores populares — Lamartine Babo e Noel Rosa, que não vêm citados na etiqueta. I. G. de Loyola é pseudônimo do barítono Inácio Guimarães.

V-33524
Tava na roda do samba e Deixa a nega pená, dois excelentes sambas gravados por Almirante e seu Bando de Tangarás.

V-33492
Há! Hu! Lahô, samba do partido alto, e Patrão, prenda o seu gado, chula raiada. Dois npumeros admiráveis, da melhor tradição carioca. Tocados pelo Grupo da Velha Guarda, dirigido por Pixinguinha, Donga e João da Baiana.

V-33423
Sem você e Mangueira, sambas cantados por Otília Amorim, das cantoras populares mais citadas por Mário de Andrade, e talvez a de sua predileção.

O-10715
Deixa essa mulher chorar, samba de Sílvio Fernandes, e Quá, quá, quá, samba de Lauro dos Santos. O primeiro disco da dupla Mário Reis e Francisco Alves. O primeiro samba, de autoria de Brancura, é um clássico carioca, até hoje tocado e regravado.

V-33413
Eu sou feliz e Nego bamba, sambas de J. Aimberê, cantados por Otília Amorim.

V-33404
Desgraça pouca é bobagem, samba de J. Aimberê, e Vou te levar, marcha de C. J. Epiro e V. de Lima. Novamente a cantora predileta. Interessante que não há uma só gravação de Araci Cortes, citada nas diversas discografias organizadas por Mário de Andrade.

V-33424
Chorei, nega e Teu desprezo, sambas cantados por Sílvio Caldas.O cantor já havia gravado Santa padroeira, de Ari Barroso e Noel Rosa, bem superior aos dois citados.

V-33211
Cais dourado, toada de J. B. da Silva, cantada por Breno Ferreira, e Sinhô do Bonfim, samba de Joraci Camargo. O primeiro é de Sinhô, o José Barbosa da Silva (e não João, como escreve o senhor Vasco Mariz), o segundo é do conhecido teatrólogo. Mário de Andrade deixou-se levar pelo motivo da letra.

O-10632
Amor de malandro, samba de Francisco Alves, e Novo amor, samba de Ismael Silva. O primeiro´é também de Ismael, que o vendeu a Chico Alves. Positivamente, Mário de Andrade conhecia os sambas, mas não a gravação que citou, de João Gabriel de Faria, o Rei do Assobio; os discos originais são infinitamente superiores; Amor de malandro, cantado por Francisco Alves (Odeon, 10424), e Novo amor, cantado por Mário Reis.

P-12916
Gavião calçudo, samba de Pixinguinha e, Bambolelê, embolada do norte, pela Orquestra Típica Pixinguinha-Donga, cantada por Patrício Teixeira.

P-12865
Promessa, samba de Pixinguinha, e Não te quero mais, samba de Dario A. Ferreira, pela Orquestra Típica Pixinguinha-Donga, cantado por Benício Barbosa. Promessa é uma das mais belas composições de Pixinguinha, só comparável aos seus choros.

O-10346
Jura, samba de Sinhô, e Água de coco, samba de Sá Pereira; o primeiro, instrumental, pela Orquestra Pan-American, o segundo, cantado por Francisco Alves. Má indicação de Mário de Andrade, principalmente porque cita o que se segue.

O-10278
Jura, samba de Sinhô, e Gosto que me enrosco, do mesmo autor, cantados por Mário Reis. É a melhor gravação do Jura, mesmo considerando as de Araci Cortes, Francisco Alves e a segunda de Mário Reis. Heitor dos Prazeres afirma que o segundo samba é de sua autoria.

O-10293
Eu não sou arara, samba de Donga, Pé de mulata, samba de Pixinguinha, cantados por Patrício Teixeira com Orquestra dos Oito Batutas. Novamente os dois consagrados compositores populares.

O-10100
Não quero saber mais dela, samba de Sinhô, em dueto por Francisco Alves e Rosa Negra, e Me faz carinhos, samba de Francisco Alves, cantado pelo mesmo. Rosa Negra era estrela de uma companhia de revistas. Me faz carinhos é o primeiro samba de Ismael Silva gravado. Como no outro — Amor de malandro — figura apenas o nome de Alves, que o comprou do verdadeiro compositor.

O-10113
O bobalhão, charleston-carnavalesco, de Sinhô, e A malandragem, samba de Francisco Alves, cantados pelo mesmo. Note-se o pitoresco da classificação que o autor deu ao primeiro número. Já antes havia classificado de romance uma peça chamada de Carinhos de vovô.

O-10250
Que vale a nota sem o carinho da mulher, samba de Sinhô, e Rayon d'Or, polca de Ernesto Nazareth. O primeiro, cantado por Vicente Celestino, o segundo, instrumental, pela Orquestra Pan-American. Do samba de Sinhô há gravação anterior e muito melhor que é, aliás, o disco de estréia de Mário Reis e em que o cantor é acompanhado ao violão por Sinhô e Donga (Odeon 10224).

O-10719
Não vai no candomblé, samba, e Não quero teu amor, samba, o primeiro de Elói Antero Dias, o segundo de Getúlio Marinho da Silva, ambos pelo Conjunto Africano.

V-33459
Cadê Viramundo, batuque, e Bambaia, cateretê, ambos de autoria de João P. B. de Carvalho. Embora seja disco de valor, nenhuma das faces traz samba. Pelo Conjunto Tupi.

V-33565
Ai que dor e Como eu te amei, sambas de André Filho, pelo Trio T. B. T., composto dos irmãos Abner e Abdaná Trajano e Jaime Brito.

A segunda edição do Compêndio, de 1932 (L. G. Miranda Editor, São Paulo). A terceira, que aparece com o título de Pequena história da música, já vem sem a discografia que "encarecia muito o livro e era de pouco uso em nossos tempos de guerra, e em que o comércio de discos é incerto e fraco". Mas, em 1936, realizando um pequeno estudo para a Divisão de Cooperação Intelectual, do Ministério das Relações Exteriores, volta Mário de Andrade a apresentar uma discografia de música popular brasileira. São 38 discos distribuídos entre os diversos gêneros populares. desta vez, o samba é representado, apenas, por seis discos, os já citados V-33404, 33413, 33211 e mais os seguintes:

V-33808
Ao voltar do samba e Alvorada, sambas de Silval Silva, cantados por Carmem Miranda, realmente um dos melhores discos da cantora.

V-33927
Triste cuíca, samba de Noel Rosa e Hervé Cordovil, e Tenho uma rival, samba de Valfrido Silva, cantados por Araci de Almeida. É o primeiro disco para a Victor da cantora que até hoje melhor interpretou o samba carioca.

Há ainda, um terceiro, não identificado. Desta lista reduzida, Mário tirou todos os sambas de Sinhô, Pixinguinha e Donga, inexplicavelmente. Aliás, a publicação do Itamaraty consta de, apenas, quinze páginas mimeografadas, sendo que, apenas três e meia são ocupadas pelo artigo introdutório de Mário de Andrade. Nas restantes, vêm relações das instituições públicas que se ocupam de música popular e folclórica, a citada discografia, diversas bibliografias, inclusive uma de música popular e, finalmente, a direção de alguns músicos e folcloristas brasileiros que se ocupam de música popular.

E é melancólica a bibliografia especializada da nossa música popular! Não há, sequer, uma monografia sobre determinado gênero. E hoje [1961], quase 25 anos passados, a situação continua a mesma. É verdade que Orestes Barbosa publicou um livro delicioso, Samba, sua história, seus poetas, seus músicos, seus cantores (Livraria Educadora, Rio de Janeiro, 1933), livro de cronista cintilante, que reúne em suas páginas as impressões do autor, naquele estilo vivo e sincopado, muito pessoal, mas livro sem nenhum valor, digamos, científico, razão pela qual nem foi citado por Mário de Andrade. Também a senhora Mariza Lira publicou um Brasil sonoro, em que se ocupa de todos os gêneros folclóricos e populares, visão ampla mas pouco profunda, tal como o senhor Vasco Mariz, em livro recente, A canção brasileira.

Enquanto o jazz norte-americano encontra quem o estude em seus aspectos mas variados, contando, hoje, com uma bibliografia das mais vastas, de pelo menos duzentos volumes, enquanto o jazz, como o nosso samba, música urbana, é devassado e interpretado, sendo, por isso, cada vez mais divulgado, nossos folcloristas de gabinete ficam na acadêmica discussão — o samba é folclórico, é popularesco ou popular?

Às definições mais ou menos fantasistas da palavra samba, às suas origens etimológicas, podemos ajuntar as definições dos próprios sambistas: "O samba nasce no coração." "O samba é a confissão de um malandro." etc. É muito fácil, mas é melancólico. Positivamente, Mário de Andrade não quis fazer o estudo definitivo sobre a mais popular música do Brasil.

Fonte: Rangel, Lúcio. "Mário de Andrade e o samba carioca". Correio do Povo. Porto Alegre, 25 de fevereiro de 1961.

A música dos vice-reis da Guanabara

Dominava ainda a cidade a alegria e a sátira das modinhas e lundus de Domingos Caldas Barbosa (1740-1800), filho de pai português e mãe escrava da Angola.

O descaso da época guardou apenas as letras das Cantigas de Sereno Selinuntino com que Caldas Barbosa ingressou na Arcádia de Roma, alta e meritória honra. Perderam-se as relíquias musicais. Devem andar em retalhos e fragmentos na memória do povo.

Foi quando em 16 de outubro de 1763, Dom José ou melhor Marquês de Pombal reuniu o governo do Brasil no Rio de Janeiro, nomeando para primeiro vice-rei Dom Antônio àlvares da Cunha, o conde de Cunha.

Foi um governo infeliz. Pior ainda, era o ajudante oficial de sala e até o próprio bispo dom Frei Antonio do Desterro.

O povo sofria e a oposição popular desabafava-se, cantando o lundu, pregando-o nas paredes das casas, nos muros das igrejas, e assim dizia o que era preciso dizer.

Cantou-se por toda a parte, embora às escondidas, o lundu tremendo de muitas cópias e um arrasador estribilho:

Já não se canta o lundu
Que o não o quer o senhor bispo
Mas, eu já pedi licença
Da Bahia ao arcebispo.

E hei de cantar
E hei de dançar
Saracotear

Com as moças brincar
E impunemente
Cantando o lundu
Ao bispo ferrenho
Direi uh! uh! uh!

Ontem como hoje o povo era feito da mesma massa.

Mas o ponto de partida da música característica do estado da Guanabara foi a chamada "música de barbeiro". Porque até então a música que se tocava nas festas religiosas ou públicas, em instrumental, canto e dança era de influência jesuítica e mais tênue ameríndia. Salvo a intromissão do negro que reviveu nas senzalas os seus ritmos e festas.

Essa música dos barbeiros, era uma espécie de filarmônica formada por negros ensaiados na rua da Alfândega pelo mestre de barbeiros, um tal Dutra.

As figuras vestiam-se grotescamente. Jaqueta de brim branca, calça preta, ajustada e meio curta, chapéu branco de palha com a copa em funil e abas caídas. Andavam descalços.

Tocavam as músicas em moda: modinhas, lundus, fados, tiranas, habaneras e fandangos.

Os que não sabiam de cor, liam-nas pregadas com alfinetes nas costas dos companheiros.

Foi daí com os esticados, remelexos e quebradinhos que a música abrasileirou-se.

A modinha é a expressão mais genuína do Brasil de antanho. Originária das serranilhas galezianas, modificada no Brasil das canções românticas portuguesas do século XVI ou quem sabe até nascida na Bahia e harmonizada em modo menor e sempre inspirada em tema lírico.

A modinha teve um fulgar estranho, cantava-se nos salões e nas serestas. Muitos poetas de valor relevante e musicistas célebres como José Maurício, Francisco Manuel da Silva (autor do Hino Nacional) e tantos mais fizeram modinhas.

Muitas se celebrizaram. A mais antiga pertence a coleção Langsdorff.

Temos, porém, popularíssimas como: Perdão Emília, Na casa branca da serra, Gentil Carolina, Sempre te amando, Mucama, Casinha pequenina, A mulata (Xisto Bahia e Melo Morais Filho), Bem te vi (Melo Morais e Miguel Emídio Pestana) e muitas e muitas outras.

A modinha continuava puramente européia.

O lundu, ritmo que animava as festas das colheitas no Congo africano, passou a ser música simples, mais marcação que harmonia como se nota no velho lundu de Pai João e alguns mais.

Tornou-se de uma variabilidade incrível. Ritmo bem marcado, foi depois se complicando em síncopes, pequenos apressados, rubatos quase imperceptíveis para acomodar versos mal feitos sobre todos os assuntos.

Foi por assim dizer a sátira do tempo, a crítica maldosa da época.

Laurindo Rabelo, Paula Brito, Fagundes Varela, João Cunha, Casemiro de Abreu, Bruno Serra, Sátiro Bilhar e muito mais.

O ritmo assemelhava-se ao da polca que nos chegou depois.

O lundu satirizou tudo.

O "choro", de pura origem carioca, era um que muito especial que se emprestava a todas a todas as modalidades dançantes. A valsa sestrosa, a polca saltitante ou a quadrilha movimentada mesmo sem ser choro podia ser interpretada com um cunho tão particularmente brasileiro que se dizia "choro" ou "chorinho". Parece incrível mas, é a expressão da verdade até Heitor Villa-Lobos aderiu ao choro como toda a gente.

Um grande flautista carioca, Joaquim Antônio da Silva Callado, boêmio querido pelos seus dotes musicais, ia com outros "chorões" do tempo animando os "arrasta-pés" ou "assustados" da estalagens e cabeças-de-porco da época com interpretações originais.

Popularizou-se rapidamente.

De técnica instrumental perfeita foi chamado para exercer o cargo de primeiro professor de flauta do Conservatório Nacional de Música.

Dom Pedro II entusiasmado com suas audições impecáveis agraciou-o com a comenda da Ordem da Rosa.

Calado, nas suas interpretações "chorosas", lançou um ritmo original, o ritmo brasileiro. Fez escola.

Chiquinha Gonzaga (Francisca Edwiges Neves Gonzaga) cujo avô fora padrinho de Calado, seguiu-lhe as pegadas. Fixou nas suas composições sincopadas a tentativa Calado.

De inspiração inesgotável tendo vivido 87 anos, a nossa primeira maestrina alegrou três gerações compondo em todos os gêneros, milhares de música e perto de uma centena de partituras teatrais com vários sucessos retumbantes.

Foi a primeira mulher que regeu orquestra em cena aberta.

Graças ao famoso Corta-jaca (Gaúcho) de sua autoria, em 1914 a nossa música popular ingressou nas reuniões aristocráticas do Palácio do Catete. A compreensão artística de Nair de Teffé, esposa do presidente Hermes, incluiu-o na última recepção palaciana. Foi, um passo gigantesco para a ascensão da música popular.

Todos sentiam que o ritmo brasileiro estava lançado e fixado por essa força nova que o marcara na música do povo do Rio de Janeiro. Havia nele algo de mais rico, de precioso, de insuperável, que era esse ritmo nosso, inconfundível.

Foi então que surgiu o maxixe. Fusão da polca irrequieta e da habanera ondulante ao calor da sincope africana, o maxixe refletia o nosso temperamento tropical.

Tinha de tudo um pouco. Lúbrico, em excesso, era número picante das revistas licenciosas e a dança lasciva dos bailes carnavalescos.

Como, onde e quando nascera? Ainda é ponto controvertido. Repudiado pelas famílias conservava-se entre a boemia e o Zé de Terceira.

Muitos autores buscavam na expressão tango brasileiro um sucedâneo para o termo que não era bem aceito.

Estava a findar-se o século, quando apareceu um moço — Ernesto Nazareth. Pianeiro apreciadíssimo pelo dedilhado assombroso. Talento musical invulgar.

Deixando-se influenciar pela obra chopiniana compôs mais principalmente — tangos brasileiros, de um repinicado novo, excelente, bem brasileiro. Tanto que às vezes revela Calado em suas produções.

Fez uma preciosa obra pianística e era de técnica tão apurada que só um exímio executor a interpreta com perfeição.

Verdadeiras obras primas para piano, Ernesto Nazaré, fez de suas composições perfeitas interpretações entre a música ligeira e a popular.

Depois de um certo marasmo na música popular Catulo da Paixão Cearense, poeta sertanista de inspiração e rimas prodigiosas, repentista admirável, influenciou grandemente na modernização da modinha.

Quer a toada como a letra de nossas músicas são ricas, por vezes, tão belas que nos assombram. A melodia então é tão bonita, tão torturada, a síncopa ou a sétima abaixada embelezam-na de tal forma que é difícil escrevê-la. Em geral, quem inventa, quem cria nem sempre a escreve. Esse trabalho gigantesco de fixação e embelezamento na nossa música popular cabe a esse verdadeiro gênio musical que é o nosso Pixinguinha (Alfredo Viana).

É ele o autor feliz das mais lindas harmonizações da música carioca.

Não que não crie também e o execute melhor ainda. Pixinguinha, porém, de atividade e modéstia incríveis, vai escrevendo a música de quase todos os compositores, dando um quê extraordinário a tudo que faz.

A instrumentação carioca vem sem querer no Braz Macacão, de Catulo Cearense, quando o caboclo enumera:

Rebeca, frauta, pandero
Crarineta, violão
Uma bandão de cavaquinho
Um oficreide, um gaitero
Que era um cabra mesmo bão Caxambu...
Só falta o recorreco que que não me dava ao acaso do metro.

O som das cantigas das baianas da Favela, da Bahia, que dançavam na casa da tia Ciata ou Aciata encontraram ecos nos moços boêmios daquela geração.

Ernesto Santos — Donga — filho da primeira diretora de rancho, os ouviu com João da Baiana, com J. B. Silva.

Quis trazer o samba que se cantava ali para as ruas do velho Rio. Fez seu samba — Pelo telefone — editou, gravou com o João Gonzaga da Casa Edson e ficou dono do primeiro samba carioca.

Foi, pois, esse grande "chorão" que fez parte dos Oito Batutas, que teve toda uma vida dedicada à música, quem lançou no Rio de Janeiro o samba carioca. J. B. Silva — o Sinhô — deu-se indevidamente por dono do samba. Ótimo compositor, pianeiro da Kananga do Japão, tocando em várias sociedades continuou a compor, a fazer lindas músicas das quais a mais bela foi — Jura — um mimo de melodia que a grande Araci Cortes interpretou magnificamente.

O batuque, o jongo eram músicas do povo, como o era toda a música das serestas. Os chorões e os seresteiros, compositores e intérpretes foram encantando nossa gente com a fascinação de suas produções. Veio o rádio. A propagação se tornou maior. O samba continuou a evoluir.

Um moço modesto e culto, poeta muito inspirado, revelou o lamento dos oprimidos em sambas, que são verdadeiras sátiras de grande filosofia, ritmados, originais, estilizados — Noel Rosa, nome que logo se tornou querido. Em pleno apogeu de uma carreira artística vitoriosa, ceifou-o a morte, deixando um grande vácuo.

Interpretações inimitáveis: Francisco Alves, Carmem Miranda.

Ele brasileiro de voz maravilhosa. Ela, a pequena notável, foi início de uma grande época. Ninguém os substituiu ainda.

Surgiu Ari Barroso, nome acatadíssimo nos meios musicais da cidade.

Ari Barroso compondo, compondo muito, compondo lindamente tornou-se o mais inspirado compositor da nossa terra desde que pintou-a na música em Aquarela do Brasil. Não pára, continua a inspiração a rondar-lhe a inteligência a deixar que produza para a glória da música popular.

Nos tempos atuais quando maior é a luta e a competição, surgem numa alvorada de sons as figuras de Vinicius de Morais e Antonio Carlos Jobim, tentando dar à música popular um tom novo de brasilidade, algo de estranho, muito expressivo, originalíssimo que é bossa-nova do estado da Guanabara.

E nessa luta titânica de produção apuradora, nomes e intérpretes surgem ou desaparecem mas, fica sempre como um marco o esforço do povo em tornar a música do estado da Guanabara, o centro cultural do Brasil, a mais linda e rica música popular do mundo.

(Lira, Mariza. A música popular dos vice-reis do estado da Guanabara. Diário de Notícias.(Rio de Janeiro, 26 de junho de 1961).