Abigail Parecis, jovem cantora brasileira que triunfou em Nova York, conquistando a admiração do público “yankee”, como intérprete da música típica nacional, tem uma carreira artística tão brilhante quanto curiosa.
Índia, nascida na aldeia de uma tribo semi-civilizada dos Parecis, no Oeste do Paraná, revelou desde a infância acentuado pendor pela música, cantando admiravelmente melopéias selvagens a que infundia colorido estranho.
A cantora Pepa Delgado, que foi, outrora, um nome em evidência nos círculos de arte do país, atraiu para a civilização a pequena índia, que, então, se chamava Yara, e sua mãe, Arajuayara, levando-as ambas para Curitiba. Mudou-lhe o nome para Abigail, educou-a carinhosamente, ensinou-lhe um punhado de lindas canções e a fez, finalmente, iniciar a carreira teatral.
Mais tarde, Abigail Parecis aperfeiçoou os estudos musicais com o maestro italiano Filippo Alessio, diretor da Escola Nacional de Canto e de Arte Cômica, que a adotou como filha. O maestro Alessio, que foi o mestre de muitos artistas que hoje gozam de largo renome e que há dezessete anos vive no nosso país, difundindo o “bel canto”, encontrou na jovem índia todas as qualidades necessárias para plasmar uma grande artista.
Em pouco, a filha das selvas paranaenses se tornava soprano de mérito, enfrentando o repertório lírico com brilho e desembaraço. Depois de uma série de êxitos artísticos nos palcos paulistas, a artista resolveu empreender, em companhia de seu mestre e pai adotivo, uma “tournée” aos Estados Unidos, onde impôs ao mesmo tempo o seu nome de artista e o prestígio da nossa música.
Não foi sem grandes dificuldades que a apreciada artista patrícia conseguiu vencer em Nova York. A música brasileira não encontrava acolhida. Para se fazer ouvir teve que interpretar o "Coração indeciso", de Nepomuceno, com letra em castelhano, como se fosse música espanhola. Agradou em cheio e, então, revelou o subterfúgio de que se valera, convencendo os críticos nova-iorquinos de que a nossa música era digna de figurar nos programas de concerto nos salões e estúdios de rádio.
Estreou, dias depois, no Roerich Museum, com um concerto que lhe valeu esplêndidos elogios da crítica musical, recebendo a alcunha de "Brasilian wightingale” (rouxinol brasileiro). No Metropolitan Opera House, deu uma audição em que, além do programa de músicas brasileiras, constituído por composições de Nepomuceno, Hekel Tavares, Catullo, Mignone e Jayme Redondo, executou também vários trechos líricos, inclusive o famoso dueto do "Guarany", com a colaboração de Lenatelli, o notável tenor italiano.
Falbo, o mais severo crítico da grande cidade americana, entusiasmou-se com o talento artístico de Abigail Parecis. “A artista brasileira, — escreveu, — possui dons excepcionais. Ouvimo-la na ópera dramática, com o vigor e a expressão de uma artista consumada. Na ópera ligeira evidenciou delicadeza de nuance e sutileza de colorido extraordinárias. E na canção popular é uma artista diferente, com uma voz cheia de encanto e de emoção”. E assim terminava: “Não perdi minha noite”.
Abigail Parecis tornou-se, assim, vitoriosa em Nova York, a imensa cidade onde entrou cheia de medo e apreensões, atordoada pelo barulho dos subways, deslumbrada pela perspectiva monumental dos skyscrappers...
Animava-a o desejo de elevar o nome de seu país, pela divulgação daquilo que ele tem mais de belo: a sua música incomparável. E conseguiu, com êxito, a realização desse patriótico desígnio.
Contratada pela National Broadcasting Company, divulgou, pela rádio, em repetidas audições, as nossas músicas, o mesmo acontecendo nas horas de arte realizadas pelo Brazilian Coffee Comittee, nas festas em propaganda do nosso café. E agora firmou novo contrato com a Nevilie O’Neill International Incorporated, tendo vindo ao Brasil para renovar o seu repertório, no qual incluirá tudo o que de mais interessante tenha aparecido nos nossos meios musicais, nestes últimos tempos.
Abigail realizou em Nova York, um trabalho artístico interessante, que o público brasileiro apreciou, ignorando, porém, que fosse da jovem índia paranaense. Foi a sincronização do filme "Noivado de ambição", apresentado nas nossas telas com diálogo em português. A sincronização (dublagem) da película foi feita em Long Island, sob a direção do nosso patrício Henrique de Almeida Filho, pastor evangélico. Coube-lhe o papel desempenhado por Nancy Carroll.
Com tirocínio do teatro de comédia e possuidora de temperamento artístico privilegiado, deu ao papel um relevo invulgar, sobrepujando no diálogo a própria artista americana, conforme opinião dos técnicos do estúdio.
O trabalho de sincronização foi árduo e difícil, durando dois meses. Começava às oito horas da manhã e terminava depois de meia noite, havendo nesse lapso de tempo apenas rápidos intervalos para que os artistas tomassem ligeira refeição. E saíam do estúdio com um rolo de diálogos para decorar para o dia seguinte. Os diálogos eram enfadonhamente repetidos dez, vinte, trinta Vezes, com frequentes alterações, até se ajustarem ao movimento labial dos artistas que filmaram a película.
O salão do estúdio ficava às escuras, para que fosse exibida a cena do filme a sincronizar, exigindo o trabalho um intenso esforço visual.
“Quando terminamos, — disse-nos Abigail Parecis, — eu estava sofrendo da vista e magra como um vime...”.
O filme foi exibido com grande sucesso, em todo o Brasil. Mas não houve, nem nos letreiros, nem na reclame, a menor referência à Abigail Parecis. Dizia-se mesmo que se tratava de um filme “falado em português, por Nancy Carroll”. Isso deu motivo a que a artista patrícia, convidada para trabalhar em novas sincronizações, recusasse as propostas que lhe fizeram.
— A própria Nancy Carroll não falava tão bem em português?
Abigail não tem vaidades. Ama a sua arte como toda artista, mas não faz da arte como tantas outras um espelho em a mime e exalte a própria pessoa. Só um orgulho nela se surpreende relativo ao seu trabalho: o que lhe vem de propagar e fazer admirada a música do seu país. Quando refere a vitória da música brasileira, anima-se. A voz lhe soa mais viva. Os olhos cintilam com estranho fulgor. O ritmo do gesto é entusiástico. Fala de Nepomuceno, de Villa-Lobos, de Hekel e da impressão dos norte-americanos, ouvindo os trechos iluminados da nossa vibrante inspiração tropical. Exulta, emocionada.
Não fosse a artista fruta da selva brasileira, alma e carne do Brasil ...
Fonte: Noite Illustrada n° 83, de novembro/1931