quarta-feira, março 21, 2012

“Amor” morreu sem fita amarela

Amor (Getúlio Marinho)
“Amor morreu com pouco choro, pouca vela e sem fita amarela”. Um sambista, já da época em que tal designação era atribuída a todos os compositores de música popular, pediu um funeral simples: “quando eu morrer não quero choro, nem vela...“. E formulou seu único desejo: “quero uma fita amarela gravada com o nome dela.” Solicitação humilde, possível de ser cumprida, mas a qual, no entanto, deixaram de atender. Houve copiosos prantos, círios iluminaram seu corpo inerme e fitas de várias cores, cada qual com determinado nome, enfeitaram seu ataúde.

Um outro sambista, vindo dos tempos heróicos em que os chanfalhos dos meganhas dissolviam suas rodas de partido alto, raiado ou pesado, talvez esperasse merecer tudo isso: choro, vela e fita amarela. Deram-lhe, é verdade, mas pouco, parcimoniosamente. E assim, Getúlio Marinho, o Amor, morreu sem seus admiradores banhados de lágrimas, com apenas as clássicas velas de chama mortiça. E a fita que externava a saudade de Déia, sua companheira, era roxa, na cor convencional e de praxe.

“Amor” e sua tradição

Ao morrer, nos seus setenta e três anos bem vividos, sempre ligado ao samba que o atraiu desde menino e levado pelo próprio pai (conhecido pelo apelido de Marinho que Toca) Getúlio, o Amor, deixou firmada sua tradição. Não somente nas dezenas de músicas que ficaram gravadas em discos nas vozes de cantores famosos (Francisco Alves, Patrício Teixeira, Moreira da Silva, Luiz Barbosa), mas, principalmente, pela expressão melódica e rítmica de cada uma delas. Foi de fato, um dos autênticos valores da bossa velha, ou da velha guarda, ainda em plena validez, pois que a nova não conseguiu torná-la superada.

Criado nas casas das sempre rememoradas tias Bebiana, Gracinda, Assiata, e da não menos importante Calu Boneca, ali aprendeu e pôde, mais tarde, ser um verdadeiro sambista, sem artifícios ou contrafações. Recolheu também nos terreiros que freqüentou e no convívio com pais de santo de grande reputação (João Alabá, Assumano, Abedé) um punhado de pontos que transportou para os estúdios das gravadoras e teve como intérpretes Eloy Anthero Dias e Moreira da Silva. Deu desse modo, esplêndida contribuição para os estudiosos das seitas religiosas africanas e do folclore em geral.

“Cidadão Samba”, justo e merecido

Sambista na exatidão do termo, projetou-se igualmente nas lides carnavalescas como mestre-sala (baliza) e foi dos mais renomados entre os que na sua época exibiam-se com as garbosas porta-estandartes dos vários ranchos existentes. Exímio na coreografia, hoje totalmente deturpada nas escolas de samba que substituíram nos seus conjuntos a elegância, o donaire dessa personagem por um misto de acrobacia e exotismo dançante, jamais o esqueceram aqueles com os quais competiu: João Paiva, Olympio, Theodoro, todos ainda em atividade.

Portanto, quando por iniciativa da antiga entidade que congregava as escolas foi resolvido eleger-se cada ano o Cidadão-Samba, figura representativa de nossa música típica e alvoroçante, Getúlio Marinho teve, justa e merecidamente, a incumbência de em 1940, personificá-la. A primeira escolha recaíra, anos antes, no saudoso Paulo da Portela que, depois de sucedido por vários outros, viu um verdadeiro baluarte ostentar a dignificante faixa. Então, à frente de um triunfal cortejo que teve a participação de 44 escolas, o Cidadão-Samba Getúlio Marinho da Silva, recebeu a consagradora homenagem dos carnavalescos cariocas.

“Calma Gegê”, marchinha, depois ditério

Autor de inúmeros sucessos (Pula a Fogueira, Apanhando Papel, Na Favela, etc.) um deles feito em parceria com Eduardo Souto, avultou e, tomando conta da cidade, tornou-se em ditério das ruas. A princípio era a marchinha chistosa gravada por Jayme Vogeler e cantada antes, durante e depois do Carnaval: “Tenha calma, Gegê/ Tenha calma Gegê,/ Vou ver se faço/ Alguma coisa por você.” Depois, vitoriosa num concurso patrocinado pelo Correio da Manhã, em 1932, sobrepujando o O teu cabelo não nega, dos irmãos Valença e Lamartine Babo, passou a ser o dito, o gracejo em uso por toda a gente: “Calma, Gegê!”.

Sempre atento aos modismos, buscando no populário temas e títulos para suas peças nos teatros da Praça Tiradentes, três revisteiros, Djalma Nunes, Alfredo Breda e Amador Cysneiros, viram na frase atraente chamariz. Estreava, conseqüentemente, no palco do Recreio, ainda no eco da folia, em março de 1932, Calma, Gegê! interpretada por um elenco que tinha como estrela Otilia Amorim, dona de um público numeroso e sempre prestigiando suas exibições. Poucos anos mais tarde, ainda em voga o ditério, o Democrata Circo, em 1934, na Rua Figueira de Meio, apresentava em seu palco-picadeiro Tenha calma, Gegê!. A locução brejeira, feliz achado de Getúlio Marinho e seu parceiro Eduardo Souto, visando irreverentemente o chefe do novo governo instalado no país, estava consagrada ad eternum.

Pioneiro dos ranchos e das escolas

Doente, havia já bastante tempo, Amor (apelido que Getúlio Marinho trouxe da Bahia, onde nasceu) estava afastado dos meios do samba e do Carnaval. Ele que se iniciara nos ranchos com o renomado Hilário Jovino Ferreira e como mestre-sala formara no Rei de Ouro (1899), Quem fala de nós tem paixão (1915), Flor do Abacate (1917), Reinado de Siva (1920) e tantos outros ranchos, via pesaroso o declínio dessa modalidade recreativa nos festejos do tríduo de Momo. Saudou com entusiasmo o crescimento das escolas, mas lamentava que, pouco a pouco, deixassem de ser um cortejo de legítimos sambistas para se tornar em vistosos shows onde, felizmente, a melodia e o ritmo ainda estavam incólumes no martelar dos tamborins e no gemer das cuícas.

Pioneiro, da velha guarda do samba, morreu sem ter nos seus funerais as homenagens a que fazia jus e são prodigalizadas a outros valores surgidos na época do fastígio de nossa música popular. Uns poucos companheiros estiveram presentes ao seu enterramento e à missa que em sufrágio de sua alma, Planicéia Sampaio Ferreira (Déia), sua companheira de muitos anos, mandou rezar.

O Amor, confirmando o título acima, morreu com pouco choro, pouca vela e sem a fita que outro sambista determinou fosse amarela apenas para ter uma rima fácil, a calhar.

(O Jornal, 5/4/1964)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

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