sábado, março 24, 2012

Chopin e Debussy na música de Vogeler

Henrique Vogeler
Estudiosos da música popular brasileira, Vasco Mariz e Elza Cameu apontaram as composições de Henrique Vogeler como influenciadas ou conduzidas por Chopin e Debussy. Ele, em seu livro A Canção Brasileira, escreveu: “... sua música (de Vogeler), sempre romântica, revela forte influência de Chopin...“. Elza, secundando-o, numa conferência que realizou em dezembro de 1962, disse: “... A influência de Debussy se fez sentir até na música popular de piano.” Esclarecendo a seguir: “... Não em seus processos técnicos, é claro, mas no aproveitamento da célula conclusiva de La plus que lente, da qual Henrique Vogeler tirou toda a inspiração para o seu Linda Flor.

Tem-se assim que o nosso saudoso musicista (patrício apesar do sobrenome germânico trazido de seu genitor), não foi verde-amarelo puro, absoluto. Sua bagagem artística onde se encontra obras algo elevadas ao lado de outras bem populares, enfeixa muitas que teriam sido inspiradas pelos citados mestres. Compositor com escola, e não de caixas de fósforos ou de tamborilamento, talvez não sentisse tais sugestões. Mesmo indo à regência de orquestras e à partitura de operetas e burletas, tais como A Canção Brasileira, de Miguel Santos e Luiz iglezias, de grande sucesso no Teatro Recreio, é possível que sua erudição não lhe tolhesse as concessões ao popularesco. Veio, no entanto, a marcá-las com tonalidades trazidas de seus estudos e predileções.

Recordando Vogeler

Bom compositor, ainda que seu nome não tenha logrado a popularidade de tantos outros de menor valia, Henrique Vogeler deixou um bom punhado de músicas. Constantes todas, ou quase todas, do excelente fichário de Almirante, vão desde o samba buliçoso, de melodia fácil, passando por valsas, foxes, até a canção de muito sentimento brasileiro. Mas, afora essas, visto serem partes integrantes das peças a que ser- viram, deve haver outro igual punhado de concepção mais alta, pomposa. Citemos, para imediato exemplo, as que compôs para a peça fantástica A Passagem do Mar Vermelho, de Fonseca Moreira, e foi apresentada no Teatro Carlos Gomes em maio de 1921.

Não sendo apenas um produtor de músicas destinadas ao sucesso das ruas, já que quase sempre esteve integrado em companhias teatrais regendo suas orquestras, fazendo a partitura de peças, dele pouco se fala. Até mesmo a sua Linda Flor, depois tornada Iá-iá, que vem tendo gravações sucessivas (a mais recente na voz de Isaurinha Garcia), provoca apenas a citação de sua grande criadora: Aracy Côrtes. Tudo muito compreensível em se tratando de um compositor vindo de uma época de sobriedade publicitária e perdido em meio de centenas (talvez milhares) de colegas. Estes, ainda que muito atentos a auto-divulgação, não lhe conseguem roubar o valor.

“Iá-iá” substitui “Linda Flor”

A música mais popularizada de Henrique Vogeler é, sem dúvida, a Linda Flor que teve seus primeiros versos escritos pelo literato Cândido Costa. Bonitos inegavelmente, de apurada correção, cantavam: “Linda flor, tu não sabes, talvez, quanto é puro o amor que me inspiras. Não crês, nem sobre mim teu olhar veio um dia pousar.” E seguiam sempre ternos, no preciosismo do tratamento da segunda pessoa do singular, suplicando o interesse da mulher que era linda e era flor. Apesar do apuro da letra, de seu exato encaixe no ritmo e na melodia suave, lenta, ficou quase inédita sem repercutir como merecia.

Algum tempo depois, a habilidade de um famoso revistógrafo, Luiz Peixoto, que se permitia acumular ser também irreverente caricaturista e poeta com muito senso do gosto da gente comum, concebia e rimava um novo motivo. A boa terra, essa Bahia que vem inspirando tantos sambas, daria uma de suas filhas para ser a personagem da canção. Nasceu, então, na mesma música de Vogeler — essa que Elza Cameu apontou como sugerida pelo tema de La plus que lente, de Debussy — o poemeto: “Ai, iô-iô!, eu nasci pra sofrê, fui oiá pra você, meus óinho fechô.” Sem perder o caráter ingênuo, simplório, prosseguia: “... E, quando os óio abri, quis gritá, quis fugi..“. Tinha-se, agora, versos espontâneos, gostosos, destinados a êxito certo.

Aracy garante o sucesso

Com sua nova forma, a canção de Henrique Vogeler foi incluída na revista Miss Brasil com a qual a renomada parceria Luiz Peixoto-Marques Porto subia mais uma vez ao letreiro luminoso do velho Recreio Dramático. Estreando no elenco, Aracy Côrtes, a mulata, como a tratava a imensidão de seus admiradores, foi escolhida para cantar o número. Chamada a interpretar música e letra bem próprias ao seu feitio, ela que nessa época (dezembro de 1928) dominava o nosso teatro popular, fez toda a platéia delirar. Quando o regente J. Cristobal, atendendo à insistência de bis deu as clássicas batidas com a batuta na estante pensou que a repetição bastaria para satisfazer ao numeroso público, mas enganou-se. Teve que fazer o mesmo gesto ainda por mais duas vezes.

Desenvolta, consagrada pelos aplausos entusiásticos, calorosos, Aracy não se fazia rogada e cantava: “Ai, iô-iô!, eu nasci pra sofrê, fui oiá pra você, meus Óinho fechô...“. E se a atriz se deixava empolgar pelo sucesso que alcançava, também Vogeler via projetar-se triunfante a sua música. Já não era mais a Linda Flor orgulhosa de quem se suplicava um olhar, era a Iá-iá. Renascia a música de Vogeler, graças aos versos de Luiz Peixoto e ao charme de quem os cantava, para popularizar o seu nome em toda a cidade. Consolidava esse triunfo a crítica, como o fez o saudoso Abadie Faria Rosa no Diário Carioca: “... A Sra. Aracy Côrtes que estreava como estrela do Recreio, emprestou a vários números aquele seu cunho de atriz bem nossa, cantando um lindo samba do maestro Vogeler com um sabor verdadeiramente acariciante.

Influência, sugestão, assimilação

Em música, como em qualquer outra arte, é sempre possível que as predileções, a retenção inconsciente de frases melódicas, de trechos, ou mesmo de acordes venham a se refletir na obra produzida. São, portanto, válidas e merecem acatamento as observações de Vasco Mariz e Elza Cameu quanto às influências de Chopin e Debussy nas composições de Henrique Vogeler. Um ou outro repontando no ritmo, na tessitura melódica e talvez no todo de algumas obras — tendo-se em conta que ambos provocaram escolas pianísticas e Vogeler foi exímio executante desse instrumento — não afetaram a brasilidade de sua música.

O reparo, a apreensão feita de vestígios, de influências chopiniana e debussiniana nas obras de Henrique Vogeler têm procedência porque se referem a um compositor enfronhado na escrita da pauta. Fosse ele um maestro caixa de fósforos, que os temos muitos e fazendo música verdadeiramente bonita por simples inspiração, falar-se-ia em assimilação inconsciente.

O certo, o inegável, é que a Linda Flor, ou a Iá-iá na concepção através da qual ganhou popularidade, tenha ou não a influência de Frederico (Chopin) ou de Cláudio (Debussy) resultou bem brasileira e ao nosso gosto.

(O Jornal, 5/7/1964)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

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