sábado, março 24, 2012

Elizeth, campeã de “charleston”

Elizeth Cardoso
A famosa Kananga do Japão, sociedade recreativa e carnavalesca até hoje é relembrada, como o foi por Lamartine Babo na sua marcha-rancho Seja lá o que Deus quiser. Ali se disputavam quase sempre renhidos campeonatos de valsas e de maxixe figurado, pois era familiar. Ao ritmo, às vezes lento, outras vivo, vertiginoso, buliçoso, conduzido por Masson, Manoel-da-Harmonia, Bulhões, mais alguns pianistas dos melhores da época, os pares competiam em disputa de medalhas, taças ou diplomas. E incentivando os participantes havia sempre numerosa assistência aplaudindo, torcendo por seus favoritos.

Mas, naquela domingueira dançante levada a efeito no salão da desaparecida Rua Senador Euzébio, onde no número 44 a Kananga tinha sede, promoveu-se um concurso infantil de charleston. A dança norte- americana com sua coreografia exótica, agitada, estava em grande voga nos clubes e na cidade. Foi fácil, portanto, reunir um punhado de meninos e meninas para o torneio idealizado. Ao final, depois de uma exibição que empolgou a comissão julgadora e sob palmas de entusiasmo, foi proclamada vencedora a garota Elizeth, sobrinha do Juca (conhecido como Juca da Kananga), um dos dirigentes da agremiação.

A Kananga e sua fama

Adotando como denominação o nome que os dicionários de botânica informam ser o de uma árvore aromática da Ásia e pertencer à família das zingiberáceas, a Kananga do Japão passou logo a dominar entre suas co-irmãs. Surgiu como grêmio carnavalesco e desde seu início, quando na Rua Barão de São Felix, 189, arregimentou os mais denodados foilões. Um deles, o João Machado Guedes (João da Baiana), que em 1911 era o diretor de harmonia. Já os seus bailes naquele tempo atraíam vultosa concorrência e quando nos dias do reinado de Momo fazia as costumeiras passeatas, ou ia à lapinha no Largo de São Domingos, o povo não lhe regateava aplausos.

Sua fama, porém, que a tornou conhecida e fez sua tradição chegar ainda vigorosa ao presente 1964, mesmo depois de desaparecida há mais de vinte anos, vem, não há dúvida, do tempo da Rua Senador Euzébio, 44. Naquele modesto sobrado de salão amplo, tendo a dirigir suas festividades o Juca, o Paiva e o Julio Simões; 101 que verdadeiramente teve seu nome propalado tanto na zona norte como na sul da cidade. Por isso, os bailes que realizava, animados por pianistas exímios, inclusive o popularíssimo Sinhô, estendiam-se até 5 e 6 horas da manhã com a casa apinhada e em franca animação até o clássico galope final.

No baile com o titio

Morava em frente à Kananga onde o seu tio Juca era o maioral, a menina Elizeth. Já que — conforme declarou em recente entrevista — sempre foi “muito saliente”, pedia, e muitas vezes ia aos bailes, principalmente aos das tardes de domingos. Seu encantamento pela música, seu desembaraço mostravam, desde então, que ela poderia vir a ser, como aconteceu, uma das grandes intérpretes de nosso cancioneiro. Dançava com outras crianças e seu garbo, a correção dos passos, provocava elogios: “essa menina vai longe!”.

Às vezes, para mostrar a precocidade da sobrinha, Juca no intervalo das danças dessas domingueiras fazia-a cantar e Elizeth, sem acanhamento, exibia-se num recital cujo agrado chegava aos pedidos de bis. Cresceu, assim, no ambiente de música dos bailes da Kananga do Japão. Quando Jacob (do bandolim) a conheceu numa festa em casa de sua tia Ivone, na Rua do Resende, e a levou para a Rádio Guanabara, na Rua Primeiro de Março, 123, ela já tinha o aprendizado do salão da Rua Senador Euzébio.

Campeã de “charleston”

Originário da cidade da qual trouxe o nome, o charleston chegou ao Brasil e se adaptou como dança ao ritmo de nossas marchinhas brejeiras e carnavalescas. Na época em que a Kananga do Japão realizou o aludido campeonato infantil, José Francisco de Freitas já havia lançado a Zizinha. Foi pois, com essa música executada ao piano por Tojeiro, que a gurizada entrou em competição procurando cada qual executar com maior requinte os passos e espalhafatosos movimentos coreográficos Ao mesmo tempo que agitavam braços e pernas as crianças cantavam em conjunto: “Zizinha, Zizinha!, ò vem comigo, vem, minha santinha”.

Como em toda disputa deve haver um júri, comissão julgadora ou algo que se assemelhe na que se travou para ver qual a menina ou menino melhor dançarino de charleston isso não foi esquecido. Um grupo de adultos acompanhava atento a competição e proclamou vencedora a garota Elizeth, embora dona Délia, comadre do Juca, pretendesse ver vitoriosa sua filha Zaíra. O triunfo era incontestável e houve mesmo quem apontasse Elizeth como imitadora perfeita de Josephine Baker em todos os seus trejeitos da dança inventada pelos coloreds da Carolina do Sul.

Constância da Kananga

A menina que foi campeã de charleston é hoje um nome glorificado em nossa música popular sendo ora qualificada como a Divina, ora como a Magnífica. Elizeth Cardoso (que um jornalista disse “está para o samba como Ella Fitzgerald para o jazz, no grau de divindade, de monstro sagrado”), no entanto jamais esqueceu a famosa Kananga do Japão. A tradicional sociedade recreativa e carnavalesca onde foi campeã de charleston e foi madrinha de São Jorge — que entronizado no alto da escada, era o padroeiro da agremiação — traz-lhe sempre ternas recordações.

Quando um dia Lamartine Babo compôs essa bonita marcha-rancho intitulada Seja lá o que Deus quiser, Elizeth quis, com bastante interesse, incluí-la em seu repertório. Assim como a Canção do Amor tem lugar destacado entre as várias dezenas de suas interpretações primorosas, a do saudoso Lalá, falando das pastoras da Kananga do Japão, transporta-a ao salão da Rua Senador Euzébio.

Revive então, emocionada, a tarde de domingo em que com seu vestidinho curto, graciosa cantava: “Zizinha, Zizinha!, ò vem comigo, vem, minha santinha...”. E vencia um campeonato de charleston.

(O Jornal, 17/5/1964)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

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