Carro-chefe do Clube dos Fenianos no Carnaval de 1934. |
Passada a refrega onde, como se diz na gíria pitoresca carioca, ‘o pau comeu solto e desembaraçado’, o grêmio alvirrubro prosseguiu sua passeata para cumprir o itinerário anunciado previamente pelos jornais. Mas, findo o tríduo momesco, no sábado seguinte, 23 de fevereiro, numa nota publicada na imprensa e endereçada “a S. Exa. o Sr. Ministro da Marinha e ao público relatava a lamentável ocorrência da terça-feira gorda. Fazia-o denunciando que os seus carros foram destruídos e os seus sócios agredidos a punhal, cacete e navalha por marinheiros, seguidos por alguns oficiais de Marinha e por um oficial superior da Guarda Nacional”. Acusação que, no dia seguinte, tinha formal contestação pelo comandante do Corpo de Marinheiros Nacionais, capitão-de-mar-e-guerra Rodrigo da Rocha.
Republicanos brasileiros inspiram-se na Irlanda
Desejosos de implantar no Brasil um sistema de governo que acabasse com as castas, com os ‘testas coroadas’, alguns republicanos buscaram nos irlandeses o modelo para a sua luta. Começaram por adotar a mesma denominação de ‘fenianos’, provinda do termo gaélico fiann e sob a qual os insurretos comandados por Cromwell enfrentavam a Inglaterra. E, no dia 8 de dezembro de 1869, na residência do Sr. Chuck, na rua da Assembléia, 39, era fundado o Clube dos Fenianos, que mascarava seus propósitos como sendo, apenas, recreativo e carnavalesco. Logo a seguir, para caracterizar bem a camuflagem, realizava seu primeiro baile num salão da referida rua, número 110. Empossava também, em 2 de agosto de 1870, a primeira diretoria presidida por José de Barros Penha.
Começava ao mesmo tempo sua campanha pró instalação da República e antiescravista, realizando em sua sede, já na rua do Teatro, 35, reuniões que tinham a participação de Silva Jardim, Lopes Trovão e outros líderes. Adotaram, então, como distintivo, as cores vermelha (guerra) e branca (do trevo shamrock usado pelos irlandeses). Criavam, ainda, o escudo do clube no qual, até hoje, embora modificado, estão o barrete frígio, o Sol e a harpa, simbolizando a liberdade, a luz e a harmonia.
Um ‘poleiro’ com muitos gatos
Humildes, no obstante a galhardia com que enfrentavam os potentados da época, deram ao local onde conspiravam um nome capaz de, casando a rebeldia à galhofa, mostrar sua disposição de luta. Segundo informe do veterano José Salgado, corroborado por outros velhos Fenianos tais como o Major Nunes Sobrinho e Pirolito (Arlindo Neves), atual presidente do clube, foi Lopes Trovão o criador da denominação. Falando da sacada da sede, trepado num caixote, teve a seguinte tirada oratória: “já que não temos uma tribuna para, de igual para igual, enfrentar nossos adversários, enfrento-os daqui, deste poleiro”. Batizava-se assim, para sempre, O reduto da brava gente feniana.
Local estratégico para os republicanistas que tinham os seus comícios nos largos de São Francisco de Paula e do Rocio (praça Tiradentes) dissolvidos por cavalarianos da Guarda Urbana, a sede era ótimo refúgio. Com duas entradas, uma pela rua do Teatro e outra pela Sete de Setembro, permitia a fuga, a debandada, quando policiais ali surgiam para dissolver suas reuniões clandestinas. Por essas duas portas, galgando com rapidez os degraus, vários gatos, certamente com fome, apareciam solicitando com miados lamuriosos algo para comer. Atendidos naquilo que imploravam ‘pandulho’ pesado, iam ficando e, bem tratados, acabaram, numerosos, indo a mais de uma centena, tornando-se em ‘móveis e utensílios’. Conseqüentemente os fenianos ganharam o apelido de ‘gatos’.
Um conflito turba o desfile
Fazendo seu primeiro Carnaval externo em 1870, juntamente com a Euterpe Tenentes do Diabo, Estudantes de Heidelberg, Inimitáveis e outras agremiações carnavalescas, os Fenianos assim prosseguem até hoje. Desse modo, em 1901, com um bonito préstito composto de 14 carros alegóricos e de crítica feitos pelo famoso cenógrafo Carrancini (que mais tarde foi substituído por Fiúza), os ‘gatos’ realizavam seu desfile.
Com as alvoroçadas ‘bichanas’ encarapitadas nos carros e jogando beijos aos que aplaudiam o cortejo, realizavam na terça-feira, 19 de fevereiro, sua passeata de encerramento da ruidosa festa de Momo na urbe carioca.
Já na rua do Ouvidor, ao cruzar a Gonçalves Dias, um grupo turbulento, que os Fenianos em nota pública, assinada pelo secretário Chester, disseram ser integrado por marujos, tentou obstar a passagem do clube. No ‘bafafá’ fácil de se imaginar, mulheres gritando, ‘gatos’ e atacantes em luta com cacetes, punhais e navalhas (consoante a nota citada), o préstito parecia não poder continuar a cumprir seu itinerário. Os ânimos, porém, foram serenados e as vistosas alegorias rebrilhando à luz dos fogos-de-bengala continuaram seu trajeto lenta e festivamente, puxadas por duas ou três parelhas de muares.
Depositários da tradição carnavalesca
Quase somando um século de existência, o Clube dos Fenianos tem no seu histórico não apenas vitórias nos prélios dos chamados dias gordos do reinado de Momo, mas, principalmente, cívicas e patrióticas. O distúrbio que tumultuou seu desfile em 1901 não o fez desertar das lides foliônicas, como queria o ardoroso ‘gato’ Manuel Cavanellas quando solicitou numa assembléia realizada em 21 de fevereiro do citado ano que “o clube nunca mais percorresse as ruas da cidade”.
O incidente, esclarecido de modo pleno pelo almirante Wandenkolk, Chefe do Estado Maior da Armada, que contestou a interferência nele de sua corporação, foi inteiramente esquecido. Para brilhantismo de nossa festa máxima, assegurando ao nosso Carnaval o título de ‘o melhor do mundo’, Fenianos, ao lado dos Tenentes e dos Democráticos, são os depositários da tradição carnavalesca carioca.
Com seus préstitos alegóricos, hoje pequenos e modestos, mas que dão continuidade aos outrora realizados por artistas como Carrancini, Fiúza, André Vento, Manoel Faria e outros, revivem as glórias dos áureos tempos. Trazem gratas recordações do ‘poleiro’ na rua do Teatro e na travessa Flora (agora São Francisco de Paula) onde pontificavam Minó, Bouvier Virosco, Chabi, Faz Tudo e muitos mais. Confirmam, também, a crença de que os ‘gatos’ têm sete vidas.
(O Jornal, 26/01/64)
_____________________________________________________________________Fonte: Figuras e Coisas do Carnaval Carioca / Jota Efegê: apresentação de Artur da Távola. —2. ed. — Rio de Janeiro: Funarte, 2007. 326p. :il.
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