domingo, março 18, 2012

Maestro Piló das serenatas

Nelson Piló
Mesmo que não houvesse uma lua cheia, bem redonda, estivesse ela no crescimento ou na míngua, havia a serenata. Violões ao peito, todos certos, afinados, acompanhavam o cantor permitindo-se, de quando em vez, nos momentos propiciados pela melodia, alguns acordes de floreios, aquilo que os seresteiros chamam de obrigação. E na quietude das ruas de Belo Horizonte eram ouvidas vozes que se alternavam entoando o Ontem ao luar, a Flor do Mal, A Lágrima, o popularíssimo Peixe vivo ou o velhíssimo Perdão Emília.

Dessas noitadas boêmias, álacres, que aconteciam de preferência aos sábados e nas vésperas de feriados, participavam Nelson Piló, Juscelino Kubitschek, Pedro Aleixo, Alberto Deodato e vários companheiros. O primeiro, musicista de renome na cidade, os seguintes já lançados na política na qual vieram a ascender, um deles à presidência da República, os outros às casas do Congresso. PiIó, modesto, tímido, ficou fiel ao violão, grafando símbolos nas linhas e nos espaços da pauta, passando ensinamentos a seus alunos. À sua ambição, curta, bem pouca, bastava isso.

Aprendeu música na “Caixa’d’água”

Garoto, aos oito anos, Nelson Victorio Emanuel Piló, filho de Saul Piló e Zaíra Piló, sentia-se atraído para o violão. Nascido num lugarejo de nominado Serra, arrabalde da capital mineira, seus pais matricularam no na escolinha de Dona Vera. Ali deveria aprender as vogais, as consoantes, o clássico vovô-vê-a-ave. Aquilo, entretanto entediava-o. Achava tudo muito cacete, enfadonho. Seu desejo era dedilhar o pinho, fácil, com desenvoltura, como o faziam os violeiros nas exibições levadas a efeito num boteco das proximidades de sua casa.

Acompanhado por sua genitora até a porta do colégio fingia encaminhar-se para a sala de aula, mas, escondendo-se, fugia para um recanto conhecido por Caixa-d’água onde, ávido de penetrar os mistérios da música, devorava as lições de um Método Prático. Comprara o livro com os trocados que lhe dava o Aurélio, operário metalúrgico, para quem, diariamente, levava a marmita com a bóia preparada pela mamãe. Com os parcos conhecimentos adquiridos nas perguntas feitas a seu irmão Homero, mais velho e que sabia tocar violino, conseguia identificar notas, chaves, acidentes, etc.

O professor recusou o aluno

Aos 13 anos, já familiarizado com a escrita musical através dos acura dos estudos que fazia no seu refúgio da Caixa-d’água onde, certo dia, foi surpreendido e fez jus a uma boa surra, ganhou de sua tia (não se recorda qual, pois eram muitas) um bonito violão. De posse do instrumento, na alegria de que imediatamente se sentiu possuído, correu ao botequim no qual se reuniam os violeiros do lugar e pediu ao Jovelino, um dos mais exímios dentre eles, para dar-lhe aulas práticas. “Não ensino nada!”, respondeu grosseiramente o professor que o menino Piló tinha em perspectiva.

Ferido no seu maior desejo, mas não se sentindo vencido, o garoto, envergonhado diante dos que ali estavam, contendo o choro iminente, retrucou decisivo: “Não faz mal! Eu vou aprender sozinho e vou tocar pra você ver.”

Saiu resolvido a realizar o que prometera com tanta segurança e desde então, com assiduidade e dedicação, ficava até altas horas da noite dedilhando o violão para cumprir um dia, o mais breve possível, sua promessa solene, feita na queimação que lhe causara a recusa. Pouco tempo depois, sobraçando o instrumento, aparecia no boteco surpreendendo Jovelino realizava, embasbacando-o e a toda assistência, o seu primeiro recital.

E o violão tornou-se “companheiro inseparável”

Aprimorando-se teórica e praticamente na execução do instrumento, sabendo dele tirar todos os efeitos sonoros, Piló, ainda jovem, atraía a atenção, não mais no precário lugarejo em que nascera e vivera os seus primeiros anos. Projetava-se em toda a Belo Horizonte, onde, aliando à sua função de fotogravador da Imprensa Oficial, a de professor de violão, era solicitado a participar de horas de arte, a realizar recitais. Isto afora as apresentações regularmente feitas nas rádios Mineira e Guarani, sempre que lhe permitiam seus compromissos com os cinemas Floresta, América e outros de cujas orquestras fez parte.

Artista consagrado, as rodas intelectuais não poderiam ignorar seu nome e, forçosamente, atraí-lo para seus saraus de boêmia que tinham como complemento as tradicionais serenatas belo-horizontinas. Desse modo Piló e outros violonistas acordavam os pacatos burgueses da capital mineira com os agudos de melodiosas modinhas cantadas nas esquinas à luz dos lampiões ou da venerada Lua quando esta não fazia forfait.

Essa ronda canora iniciada ao findar da noite e estendendo-se até a ameaça do nascer do Sol, teve muitas vezes, a participação de Juscelino Kubitschek, de Pedro Aleixo, de Alberto Deodato e outras figuras das quais sempre se fala de seus pendores musicais.

Um autodidata de substância teórica

Violonista emérito, sem nunca ter freqüentado escola ou recebido ensinamentos de professores, Nelson Piló, graças ao seu grande amor à música, conseguiu tornar-se profundo conhecedor de teoria. Atualmente (aos 49 anos) integrando o cast da Rádio Nacional (onde foi admitido em 1935 por Paulo Tapajós, então diretor de broadcasting) tem ali a função de orquestrador e arranjador. Autor de um punhado de canções bonitas, dentre as quais deve-se citar a sinfonia Ao amanhecer, dedicada à Brasília, continua o menino modesto, tímido, que se refugiava na Caixa-d’água para aprender música.

Amigo de Dilermando Reis, que veio a conhecer por intermédio de Renato Murce, exalta-o como grande violonista, proclama-se seu admirador. Quando a Casa Arthur Napoleão quis fazer a transcrição para violão de algumas das músicas de Ernesto Nazareth foi buscá-lo na sua humilde vivenda do subúrbio de Vicente de Carvalho para realizá-la. Do mesmo modo, a coletânea do repertório de Catulo da Paixão Cearense que ora está sendo publicada, pela tradicional editora sob a orientação de Guimarães Martins, é de autoria de Piló a transcrição para violão-solo.

Trabalhos, todos eles, que bem revelam o valor de um musicista simples sem vaidade, falando a custo, quase envergonhado, de seus trabalhos.

(O Jornal, 2/6/1963)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

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