quarta-feira, março 28, 2012

O samba espancado e esnobado

Quando a roda do samba estava bem animada, todos os componentes entoando o coro, certinhos, numa boca só, a polícia aparecia resoluta, descendo o chanfalho, pondo a turma em fuga desordenada. Isto, porém não a intimidava. Na noite seguinte, às vezes poucas horas após, no mesmo local (Saúde, Morro da Favela, arraial da Penha) refazia-se o grupo. Martelando os tamborins, rufando os pandeiros, as cuícas gemendo, Insistiam no samba que os meganhas interromperam. Era assim a época heróica, valente, não se deixando intimidar. Sua gente espancada, mas persistindo sempre.

Depois, já poupado pelos agentes da lei, podendo entoar sua musiquinha fácil e seus versos primários, espontâneos, os sambistas tinham o desprezo da burguesia. Esnobavam seus cantares e glosavam-no maldosamente: “Samba de negro / Não se pode freqüentar. / Só tem cachaça / Pra gente se embriagar”.

O samba mesmo assim venceu. Formou suas escolas e deslumbrou patrícios e estrangeiros. Como se não bastasse, parecendo pouco o triunfo alcançado, o samba agora tem um dia que lhe é dedicado, e com chancela legal: o 2 de dezembro.

O samba e seus “catretas”

Trazido da Bahia pelos filhos da boa terra que vieram se radicar no Rio de Janeiro, o samba foi logo por eles transmitido a seus descendentes em todas as modalidades que lhe são peculiares. Os pioneiros, em cujo número estavam Hilário Jovino Ferreira, Tia Sadata, Tia Bebiana, Cleto, João Câncio e muitos outros com foros de catretas (corruptela de catedrático) ensinavam, criavam continuadores. Em pouco tempo baianas e cariocas que os seguiam igualavam-se no samba, corrido ou chulado, mostravam-se exímios no partido alto que é, como intuitivamente se deduz, o samba requintado, o fino.

Sambistas autênticos, iniciados como o foram pelas próprias genitoras, ainda temos o Donga (Ernesto dos Santos) filho de Tia Amélia, e o João da Baiana (João Machado Guedes) filho de Tia Presciliana.

A despeito de seus já vencidos setenta anos, das inovações e das bossas que procuravam desvincular o samba de suas exatas origens, tentando mesmo distorções do ritmo e da melodia, ambos resistem. Permanecem fiéis ao samba puro, castiço, escoimado de artifícios de música e de cadência, como representativos da Velha Guarda onde também avulta o nome de Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna Júnior).

Escolas põem o samba em desfile

Cessada a repressão violenta sob espancamento, já permitida sua existência nos terreiros dos morros, dos arrabaldes, nos desvãos da cidade, os intelectualizados foram ao encontro do samba. A imprensa se permitiu incluir em suas colunas o noticioso a ele referente e que alguns de seus repórteres (Vagalume, Orestes Barbosa, Enfiado, Marrom e poucos mais) o iam colher na fonte, no local. Vinham, a seguir, os livros com narrativas e informes: Na Roda do Samba, de Francisco Guimarães (o citado Vagalume) e Samba, de Orestes Barbosa. Tinha-se em letra de forma subsídios, um pouco da história do samba transmitida a quem O quisesse estudar ou simplesmente conhecê-lo.

Sempre em crescendo, o samba ia consolidando sua vitória. Os esnobes aceitavam-no, mostravam-se interessados pela música que já ouviam em casa na transmissão de seus fonógrafos, (mais tarde substituídos por fidelíssimas vitrolas) e depois nas emissões das rádios. Não bastava isso. As rodas denominaram-se pretensamente escolas e, com seus professores e alunos saíram em desfile com bateria e baianas. Fizeram a primeira exibição na Praça Onze de Junho, em pleno Carnaval, firmando tradição no logradouro.

Avançavam depois para o asfalto da Avenida Rio Branco juntando à exuberância rítmica de seus cânticos uma orgia de roupagens, de cores e de luz. O samba saía dos terreiros, descia dos morros e entrava avassalante, pomposo, rotulado de escola, na maior festa da terra carioca.

Do Congresso sai a “carta” e o dia

Longe o tempo em que vivia espúrio, esbordoado, e a indiferença da grã-finagem mantendo-o distante, o samba consciente de seu triunfo ousou a realização de um congresso. Levou-o a efeito no Palácio Pedro Ernesto (Assembléia Legislativa) de 28 de novembro a 2 de dezembro de 1962. Deu-lhe patrocínio não só a Confederação Brasileira das Escolas de Samba, mas também a Associação das Escolas de Samba e a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Desse conclave resultou a Carta do Samba, redigida pelo folclorista Edison A. Carneiro onde além de se firmar “a preservação das características do samba” permitia-se seu progresso desde que não ferisse a tradição. Sugeria-se, por fim, tivesse o samba o seu dia.

Antecipando-se às resoluções do Congresso, o deputado Frota Aguiar, logo no início de novembro, apresentava a seus pares o projeto de lei n.° 681 instituindo “o dia 2 de dezembro como data consagrada ao samba”. Percorridos os trâmites da praxe a proposição subia ao governador do Estado para tornar-se dispositivo legal. A esperada sanção, no entanto, não foi obtida. Num despacho onde dizia “não há razão para considerar outro Dia do Samba, além dos três já dedicados à nossa festa popular”, o chefe do Executivo da Guanabara apunha o seu veto duro a formal.

Mas os sambistas, de rija têmpera, antes esbordoados e esnobados, viram triunfar, dias depois, o seu desejo com a rejeição da negativa. Derrubado o veto pela Assembléia Legislativa, tinha-se a conseqüente promulgação da Lei n.° 554 que desde então dava ao samba uma data, um dia.

(O Jornal, 29/11/1964) 
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

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