sexta-feira, março 23, 2012

O tema escravatura na música popular

Escravatura: tema de poesia condoreira e de música popular. Se a escravatura teve entre os que a combatiam a lira de Castro Alves anatemizando-a numa poética solene, faustosa, por isso mesmo classificada de épica e condoreira, contou também com bardos menores engajados na causa.

O cantor de Navio Negreiro, no entanto, por ser o mais vigoroso, o de maior destaque, deixou o seu nome solidamente ligado à campanha abolicionista. E, até hoje, vencido mais de meio século após a assinatura da Lei Áurea, seus versos ainda repontam em constantes evocações.

Mas o desaparecimento das senzalas, a libertação do trabalhador negro, não encerrou um tema, não matou um assunto capaz de inspirar, como vem inspirando, poemas e mesmo simples poemetos. Conseqüentemente, acabou sendo mote inesgotável para os cultores da música popular. Não só da de característica pura, sem burilamento, mas, do mesmo modo, dessa que, embora com algum revestimento de erudição, não perde sua marca para o povo. Daí muitos de nossos bons compositores: Ary Barroso, Heckel Tavares, Custódio Mesquita e tantos outros, terem explorado com bastante brilho tão rico e farto filão.

Castro Alves, o condoreiro

Poeta alegórico, de versos flamejantes, pomposos, recorrendo comumente a figuras de grande efeito literário, Castro Alves, a quem se deu a classificação de condoreiro para significar a altura de seus poemas, legou à posteridade sugestiva gama de aspectos da escravatura. A simples, mesmo despreocupada leitura de Navio Negreiro, Canção do Africano, Vozes d’África, etc., sugere caminhos, ilações para novos cantares. Sugestões que não passaram despercebidas e foram sabiamente utilizadas pelos compositores do gênero popular.

O vate baiano ferreteando a escravatura descrevia também, clara e precisamente, a sua ambiência: “... Lá na úmida senzala,/ Sentado na estreita sala,/ Junto ao braseiro, no chão,/ Entoa o escravo o seu canto,/ E ao cantar correm-lhe em pranto/ Saudades do seu torrão.” Evidentemente que tão nítido e exato quadro poderia ser tornado em canção popularesca acompanhando mesmo ipsis litteris versos e rimas, os quais, embora da lavra de um poeta de vôo alto, símile ao do condor, se ofereciam ao alcance de qualquer um.

A descendência fiel à origem

Trazida do continente afro pelas “legiões de homens negros como a noite”, a música entoada pelos escravos (a qual se deu a denominação genérica de samba) fixou-se em definitivo no Brasil. Isto se deveu em boa e notória parte aos descendentes próximos e mesmo um pouco distantes daquela gente tida como “alimária do universo”. Foram eles, negros brasileiros, depois mesclados em cafusos e mulatos, que continuaram cantando e dançando a moda de seus antecessores com quem aprenderam ou simplesmente espiaram como e o modo de o fazer.

Comprovação fácil e abundante do que acima ficou dito é encontrada no cancioneiro popular, mesmo o citadino, de fins do século dezenove e ainda no dos primeiros decênios do atual. Os sambistas da chamada velha guarda não só procuravam ser fiéis ao ritmo com o instrumental primitivo de percussão (ganzá, puita, tabaque, reco-reco, etc.) mas, igualmente, conservando a linha melódica. Afora isso, como querendo marcar bem a origem de seus cantares, punham em seus ver- sos termos e refrãos verdadeiros ou assimilados dos dialetos africanos: “Ocubábá gelê”, “quequê-quêrequê... ô gânga”, e o “ojô, ojô, cocorô”, usado por Donga e Pixinguinha em O Malhador; samba nascido em 1913 e revivido no Carnaval de 1963.


Escravos, tema sempre válido

Sucedendo à geração dos velhos sambistas, filhos, netos ou ligados a escravos e seus descendentes, uma outra, já rotulada de compositores populares, mas que ainda vinha nas pegadas da antecessora, sentiu a validez do tema escravatura. Alguns de seus componentes, com iniciação cultural e mesmo ralando pelo erudito, não deixaram morrer um assunto capaz de sempre ser trazido à tona em muitos de seus aspectos. Cantar-se-ia o sofrimento, o labor, a dedicação, o amor, a vida enfim do preto escravizado, juntando-se música e letra que a um só tempo retratasse e até alcandorasse o negro escravo.

Uma após outra, desfrutando a era da fonografia, encontrando campo propício à divulgação, foram surgindo sob várias formas canções populares em que a escravatura era o mote. Algumas, mesmo bem feitas, não lograram êxito que as consagrasse, outras, porém, aí estão dominantes, ouvidas em muitas audições das rádios e tevês, esgotando também os sucessivos lançamentos das chapas de diversas rotações onde são gravadas. Citar-se-á para simples e sucinto exemplo: Terra Seca (“Trabalha, negro, trabalha.”) de Ary Barroso, Algodão (“nêgo num cantava não...“), de Custódio Mesquita e David Nasser, e Mãe Preta, (“velha, encarquilhada, carapinha branca...“) de Caco Velho e Piratini.

Símbolos que as canções consagraram

Claro está que ao cantar das ruas, à música fácil de ser entoada e retida não se deve a consagração da mãe preta e do pai João, símbolos venerados e representativos da escravatura. Mais do que as histórias relatadas nos versos das composições populares glorificando o negro prevalece o documentário que Ruy Barbosa, em 1890, pedia fosse destruído para apagar a triste mancha de nossa história. Impõe-se também, ainda vigorosa e solene, a poesia épica, condoreira, de Castro Alves trazida até aos nossos dias e inapelavelmente revivida ao ensejo das comemorações do 13 de maio.

Tema inspirador de um sem número de canções, a escravatura no seu imenso drama que só veio a findar em 1888 com o gesto heróico e resoluto de Isabel, a Redentora, ele aí está ainda pedindo e sugerindo novos poemas nos quais música e versos despretensiosos revigorem sua eternidade. Manancial inesgotável dará sempre aos poetas — quer sejam condoreiros ou de vôo rasante o ensejo de bonitas e ternas composições na mesma trilha glorificante do negro, isto é, exaltando sua humildade, seu trabalho, sua dedicação.

(O Jornal, 10/5/1964)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

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