O então Interventor da cidade, doutor Pedro Ernesto Baptista, concedeu o dignificante documento aos que compuseram música e letra na produção vitoriosa e não apenas a ele Caninha o Visconde, principalmente carnavalesco, não convivendo assiduamente com a gente do samba, pois o seu habitat era o Clube dos Tenentes do Diabo e o Cordão da Bola Preta, embora pudesse também se proclamar “Sambista Oficial”, jamais deu importância ao diploma.
Antes, com Raul Malagutti, Aristides Prazeres, Jessé Menezes e outros, já havia feito marchinhas e sambas, que se não lograram triunfar em competições oficiais ou oficiosas tiveram grande divulgação nos fandangos das agremiações citadas bem como nos de suas coirmãs.
Vamos conhecer o Visconde
Nascido (né, diria o confrade Ibrahim Sued) Horácio Dantas, com esse nome foi aluno do Colégio Pedro II onde teve como colega, entre outros, o saudoso Virgílio de Mello Franco. Mais tarde, convidado por Humberto de Campos (o Conselheiro XX) para colaborar na revista A Maçã criou então o pseudônimo Visconde de Bicohyba com o qual veio a se popularizar nos redutos dos soldados de Momo. No grêmio dos Tenentes e dos Bolas ninguém o conhecia a não ser pela alcunha que criara para sua atividade literária. Era, apenas e intimamente, o Bicohyba.
Boêmio, dotado de esplêndido senso humorístico, ao qual aliava boa cultura geral, escolheram-no, na caverna (nome que tem a sede do Clube dos Tenentes do Diabo), para, juntamente com Marquezinho (Marques da Silva), ser o redator de O Baêta, jornal que se denominava “vibrante pasquim carnavalesco”. No Cordão da Bola Preta fizeram-no, igualmente, um dos principais colaboradores de O Rabo, órgão oficial desse famoso grêmio. Seus escritos, sempre maliciosos, ferinos, tornavam as duas publicações em leitura agradabilíssima e divertida como se constata até hoje nos raros exemplares guardados nos arquivos das entidades que as editavam.
Carnavalesco de “quatro costados”
Horácio, que se fez o “nobre” Visconde de Bicohyba (numa adaptação do nome científico da myristica officinalis: bicuíba) foi no seu tempo, de mil-novecentos-vinte-e-poucos a quarenta, um verdadeiro carnavalesco de “quatro costados”. Topava qualquer farra e dentre os participantes, todos da mesma fibra, era o mais animado. Quase sempre tinha a iniciativa das brincadeiras, como aquela de servir de defunto num enterro realizado em pleno Carnaval com caixão, coroa e todo o ritual fúnebre para ser levado em charola até o Bar Nacional, na Galeria Cruzeiro.
De outra feita, ainda no tríduo momesco, fantasiou-se de Gandhi, envolvido num lençol e conduzindo uma cabritinha. Depois de ingerir em demasia “umas e outras” acabou perdendo o animal que prometera trazer de volta para um lauto almoço na caverninha (casa onde morava com outros carnavalescos na Rua Carlos Sampaio, 22). Pernambucana, a cozinheira e administradora da alegre república bem como Polaca, Lascada, Gigante, Mazorato e outros que ali residiam viram frustrado o opíparo “bródio”, mas tudo correu à conta dos riscos possíveis embora não previstos.
Um Visconde que fazia sambas
Amigo da gente do samba (Pixinguinha, Donga, Patrício Teixeira, Benedicto Lacerda, etc.), já tendo composto com Raul Malagutti o Vi Baio-Baio, com Aristides Prazeres e Lascada o Eu sou baêta, com Jessé Menezes o Eu não quero mais, afora outros, Caninha o convidou para parceiro. Fizeram os dois o É Batucada, que alcançou o primeiro lugar no concurso realizado no Teatro João Caetano em 26 de janeiro de 1933 e teve o patrocínio da Prefeitura do então Distrito Federal. Além de abiscoitar o polpudo (naquele tempo era) prêmio de um conto de réis, a parceria Caninha e Bicohyba recebeu o diploma de que tanto se envaidecia o De Moraes.
Interpretada por Moreira da Silva, que vinha de obter grande sucesso como criador de Arrasta a sandália, a composição mereceu calorosos aplausos. Toda a assistência, empolgada cantou o coro: “Samba de morro? não é samba, é batucada./ É batucada! É batucada!”. E o júri, integrado, entre outros, por Herbert Moses, pelo cronista carnavalesco Picarêta (Romeu Arêde) e pelos maestros J . Octaviano e Rossini de Freitas, deu o seu justo veredictum classificando-a em primeiro lugar.
Um humorista busca a morte
Boêmio, carnavalesco de “quatro costados”, sambista com diploma oficial, Horácio Dantas que se fez o nobre Visconde de Bicohyba para escrever numa revista galhofeira e maliciosa, embora sua alegria comunicativa buscou ele mesmo a morte. Certo dia, em casa da irmã que residia em Botafogo, sem que ela e seu cunhado Fábio vissem, ingeriu forte dose de veneno morrendo quase que instantaneamente. Realizou o gesto trágico sem deixar informe algum e surpreendendo a todos que o supunham feliz, na plena satisfação de viver.
Desertando da vida aos quarenta e poucos anos, deixou uma lacuna sensível no Carnaval carioca que o tinha como seu grande animador no clube rubro-negro (Tenentes do Diabo), no Cordão da Bola Preta e em todas as manifestações de nossa principal festa. Mas como também no reinado de Momo a folia “não pode parar”, apesar de sentirem sua falta, as morenas a que ele e Caninha aludiram na sua composição vitoriosa, continuam indo “pro samba bonitinhas, de sandálias e de saiote de preguinhas”.
(O Jornal, 28/4/1963)
______________________________________________________________________Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.
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