Orestes Barbosa |
Naquele tempo os sambas dos morros não desciam para a cidade. Não havia, ainda, as escolas, os blocos. Apenas os ranchos e os cordões mostravam por ocasião do Carnaval um pouco da música simples, bonita quase sempre, que nascia lá em cima onde os barracos de latas de banha, desengonçados, pareciam remexer-se, sambar também.
Um dia, já moço, jornalista, quis mostrar à cidade a poesia e a música pobre e espontânea que alegra a gente humilde dos morros com quem ele convivera, e trouxe para as colunas dos jornais, em reportagens vivas, bem fiéis, os flagrantes das favelas que se espalham pela cidade, trepadas nos morros, espiando as avenidas onde os automóveis correm, onde as lâmpadas fazem uma féerie deslumbrante.
Foram ele e Carlos Pimentel os primeiros cronistas dos morros. E, hoje, quando um sem número de jornalistas e grã-finos arroga a primazia de ter iniciado a popularização, na cidade e nos grills dos cassinos, dos sambas, das batucadas e das escolas que os lançam, Orestes no seu linguajar pitoresco exclama com ironia: “É! Agora o vagão desce do morro cheio de incentivadores, mas vem rodando nos trilhos que eu coloquei!”
É desse cronista, criado no morro, amigo dos morros, que vamos relembrar algo de sua meninice, do seu tempo do “tasca balão” e da bola de meia.
O Filho do Capitão Orestes
No Morro do Arrelia havia um garoto esperto, ladino. Sabia ler e escrever. Freqüentava a escola do bairro e, nas horas de folga, empinava sua pipa, participava duma pelada, colaborava na confecção dos sambas que ali eram cantados.
Ao lado de Flávio Costa, dos irmãos Cavada, de Bráulio Monteiro e outros, martelava o tamborim, batia pandeiro, fazia gemer a cuíca e um samba saía, entoado, coeso, para encher o silêncio da noite no morro da gente pobre do Andaraí.
As letras dos sambas tinham, todas, a sua revisão. E os sambistas aceitavam as emendas, os retoques que o filho do Capitão Orestes, “menino preparado”, fazia nas suas produções.
— Eu botei: “os coração amargurado chorando suas mágoa” — dizia um sambista — e ele emendou. Disse que é corações porque tem um negócio de plural que eu não sei o que é. Mas deve ter porque ele entende disso.
— Mete lá o plural que Orestes mandou porque tá certo! — respondia o outro, também sem entender, mas confiando na corrigenda que o filho do capitão fizera.
E assim o garoto, tido como sabichão entre os compositores, sentia prazer em estudar para ensinar, remendar a inspiração dos sambistas e, desse modo, ia se afeiçoando aos musicistas e poetas toscos que nada entendiam de plurais, que não sabiam porque os verbos tinham tempos e modos, mas conseguiam alinhavar, mesmo “ingramaticalmente”, um hino exaltando a fidelidade de sua cabrocha ou versejar um lamento para chorar a malvada a quem ele queria bem e se “foi prum outro alguém”.
A primeira Escola
Aquelas rodas de samba e de batucada que se formavam no terreiro, mesmo nas noites em que as nuvens vedavam o clarão da lua, lançaram a semente, prepararam os mestres das escolas que mais tarde desceriam as encostas do morro para virem à Praça Onze de Junho mostrar os seus corpos docente e discente e daí, anos após, entrarem nos salões chiques que escancaravam suas portas para recebê-las festivamente.
O Bloco Depois te Explico, cujo sucesso no tríduo de Momo foi dos maiores, apresentou-se nas pugnas carnavalescas como a primeira escola que descia o morro com a sua bateria e o seu coro “cantando numa boca só” os sambas do Arrelia.
Um outro bloco, uma outra escola — Braço é Braço — trazia depois, em outros carnavais, as melodias daquele populoso morro do Andaraí para as ruas asfaltadas da urbe maravilhante.
Esses grupos tiveram como seus iniciadores Orestes Barbosa, Flávio Costa, Euzébio, Reynaldo de Oliveira e mais alguns que participavam das rodas de samba do Arrelia. Os mestres, os “bacharéis” fundaram as primeiras escolas e os alunos acorreram pressurosos ao chamado dos tamborins.
Orestes não desceu com as escolas. Ele desceu primeiro, muito antes delas, para a cidade onde iniciou uma nova vida. As escolas vieram depois trazidas pelo reclame que ele, dedicado aluno e mestre, a um só tempo, fazia pelos jornais, pelo rádio, de todos os modos.
Propagando o samba
Já no jornalismo, com várias obras nas mostras das livrarias, Orestes não esqueceu o samba, a gente simples de sua meninice.
Subiu aos morros. Não só o do Arrelia, onde de calças curtas entoava as batucadas. Galgou outros, com tiras de papel na mão fazendo anotações para depois vir desenvolvê-las em letra de forma nas colunas da imprensa. Favela, Mangueira, Salgueiro, todos tiveram um pouco da história de suas escolas transmitido a muitas centenas de leitores pela pena do “filho do Capitão Orestes”.
Seus livros: Na Prisão, Bam-bam-bam, Samba, escritos em linguagem simples, sem artifícios, mostraram facetas, revelaram ainda o garoto que foi criado no morro e que fazia de mestre-escola entre os poetas rudes, enfeitando as produções desses vates rústicos com vírgulas e pontos que a eles parecia bobagem mas que o menino dizia ser tão necessários quanto os plurais e as concordâncias, também pelos sambistas dos morros julgados pernosticismo dos “seus dotôres da cidade”.
O amigo dos morros
Muitos anos são passados. Mais de duas dezenas de dúzias de meses empurraram para muito longe esse tempo em que no morro havia um garoto esperto, traquinas — “o filho do Capitão Orestes”.
As fábricas de tecidos do bairro do Andarai, que então apitavam como locomotivas anunciando o princípio e o fim do trabalho diário, têm agora sirenes que levam mais longe, bem lá em cima do Morro do Arrelia onde moram os seus operários, esse mesmo aviso.
Outros sujos, outros blocos, outras escolas, descem agora o morro.
O menino Orestes hoje está na redação de um jornal. Palestra no Nice com os sambistas e cançonetistas da cidade, mas não esqueceu o morro. Dele fala com orgulho. Com saudade recorda a sua gente.
Quando já moço voltou ao Arrelia para fazer uma reportagem ainda encontrou, envelhecido embora, o Seu Candinho, o Flávio Costa e poucos outros guris do tempo em que ele fazia parte da bateria que dava ritmo e “enfezava” o samba.
O “filho do Capitão Orestes” guarda da sua infância vivida entre aquela gente pobre, humilde, a mais grata recordação. Os barracos de latas velhas que o vento facilmente põe em perigo no seu equilíbrio, falam-lhe mais ao espírito que os sólidos arranha-céus da cidade.
E, por isso, Orestes jamais esqueceu o Morro do Arrelia. Fez-se amigo também dos outros morros porque eles devem ter uma história igual à daquele onde foi garoto, onde tascou balões, onde soltou papagaios, onde foi sambista...
(Revista da Semana, 12/10/1940)
______________________________________________________________________Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.
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