Assim, ao ritmo buliçoso de um sambinha, o musicista popular, tão correto “pagador de promessas” quanto o bizarro herói do filme que bem alto elevou nossa cinematografia, resgatava um compromisso assumido.
Simples homem do povo a quem dedicava suas produções, mandava levar àquela que lhe proporcionara uma graça, modesto “braço de cera”. Objeto contra o qual, sem dúvida, não surgiriam os mesmos embargos causados à enorme cruz que o ingênuo Zé do Burro tentou colocar diante do altar de uma das muitas igrejas da Bahia.
Seu sambinha, de letra e melodia fáceis, correndo de boca em boca, proclamaria, juntando-se a muitos outros de igual objetivo, os favores, as benesses que a Santa concedia a seus devotos, a quem lhe dirigia orações de súplica. Era, além do singelo cumprimento de uma promessa, a maneira pela qual despretenso compositor popular tornava público seu sentimento de gratidão.
O braço modelado em cera representava a parte de seu corpo atingida por enfermidade ou acidente que o privara de dedilhar o violão ou o cavaquinho ou, talvez, bater no pandeiro.
Restabelecido e já podendo manejar seu instrumento divulgava com música a graça alcançada.
Portugueses iniciaram, sambistas continuaram
Iniciados por portugueses, os festejos em louvor de Nossa Senhora da Penha da freguesia de Irajá tiveram as mesmas características das romarias que realizavam em sua terra. Para o então longínquo subúrbio, aonde se chegava conduzido pelos vagarosos trens da Leopoldina Railway, cuja estação de partida situava-se nas proximidades do antigo Jockey Club, ou em pequenas embarcações que atracavam no Porto de Maria Angu, afluíam nos domingos do mês de outubro muitas centenas de romeiros. Alguns levavam suas guitarras, seus bandolins, e todos com seus familiares, sobraçavam farnéis fartos de comedorias para o repasto ao ar livre regado por um bom “verdasco” ou “alvarelhão”. Tudo no exato costume luso que aqui continuavam.
Mais tarde, brasileiros comungando com os irmãos de além-mar, deles descendendo ou não, participavam também dessas festividades em que o cunho religioso se diluía e era profanado com manifestações pagãs.
“Faduchos” e bebedeiras enchiam de algazarra o imenso arraial que dava acesso à longa escadaria de trezentos e sessenta e cinco degraus através da qual se atingia a penha onde, na igreja ali erigida, oficiavam-se missas gratulatórias em louvor da Santa. Já então, viajando nos mesmos comboios morosos da companhia inglesa, conduzidos em carroças engalanadas com bandeirinhas de papel de cor e ramagens, ou montando “pangarés”, encontrava-se entre os romeiros grande número de patrícios nossos.
Conseqüentemente a música brasileira de cunho popular e a cerveja preta (“barbante”) substituíam ou mesclavam-se aos fados e ao vinho. O samba, ainda meio confundido com o lundu, o tanguinho e o maxixe, ia repontando na romaria luso-brasileira da festa da Penha.
O samba toma conta do arraial
Espúrio, perseguido pela polícia, realizado às escondidas, o samba nas suas manifestações precárias, em “rodas” (círculos de participantes, de acompanhantes ou assistentes) encontrou na festa da Penha local próprio para se realizar. Trajando roupas novas, ritual que criaram e observavam, os sambistas marcavam encontro no arraial para, em confraternização quase sempre de pouca duração, pois vários conflitos ocorriam entre eles com tiros e navalhadas — entoar os seus refrãos: “ô maiadô seu maia...”, “a lei mandô derrubá ê ê...”, etc. E a aguardente nos seus muitos apelidos (“branquinha”, “brasa”) animava os sambistas, Fortalecia suas pernas para as rasteiras, as “bandas”, a derrubada violenta que substituía a umbigada amena de que falam os folcloristas.
De burguesa romaria lusa, típica festa popular trazida por imigrantes ainda bem presos aos recreios de suas aldeias, a Penha nos seus folguedos do mês de outubro dedicados à Santa padroeira da localidade passou a ser romaria temida. As barracas espalhadas pelo arraial reuniam em suas mesas os sambistas destemerosos, de calça “boca de sino”, que com suas companheiras, também valentes, afeitas às brigas generalizadas, aos “rififis”, bebiam à farta e erguiam vivas a propósito de tudo. O mesmo acontecendo nos piqueniques onde, estendendo toalhas na relva, eram muito raras as famílias de portugueses que se arriscavam a prosseguir a tradição de um bródio campestre à moda da terra onde nasceram. O samba rude, grosseiro, simples toada tosca conduzindo uma frase, enchia o ambiente onde outrora se ouvia lângidos fados.
Começo do Carnaval
Quando o Carnaval começou a ter um cancioneiro próprio ou a ele destinado, atraindo os mais famosos compositores populares, os festejos da Penha, numa época em que a divulgação tinha apenas como único meio eficiente a imprensa, propiciaram aos sambistas, já então bem aceitos e integrados no convívio social, ótimo campo para lançar suas produções. Sinhô com o seu Grupo Fala Baixo, Caninha e sua turma, Donga, Pixinguinha, João da Baiana, Heitor dos Prazeres e outros apareceram no arraial entoando sob os aplausos da multidão que ali se reunia as suas músicas para o tríduo de Momo. Os do grupo cantavam e depois, aprendendo rapidamente, todos faziam coro consagrando, logo nesta primeira audição, a letra e melodia que iam animar a folia em fevereiro próximo.
Servindo de prelúdio ao Carnaval, espécie de festa das músicas a ele destinadas, a festa da Penha profanava o sentido religioso das comemorações em louvor da Santa que se venerava pelos seus milagres, pela bondade com que atendia a quem lhe dirigia orações. Os sambistas, entretanto, a seu modo, sem obediência ao que determina a certa e boa prática do catolicismo, demonstravam respeito e gratidão. Iam bem cedo às missas que se rezavam, levavam flores, e aqueles que faziam promessas as cumpriam, corretos e contritos. Houve mesmo um deles, o popularíssimo Cartola que tendo pedido “à Santa padroeira proteção, só não subiu a escadaria ajoelhado para não estragar o terno que lhe foi emprestado”.
Hoje simples quermesse
Hoje, sem a sua característica que lhe deu tradição, os festejos da Penha, ainda realizados nos domingos do mês de outubro, têm apenas o cunho de simples quermesse, dessas que no interior são realizadas ao ensejo de datas religiosas ou em louvor aos padroeiros de cidades ou vilas. Ainda se encontram no arraial as barraquinhas, os piqueniques familiares e os vendedores de cordões com balas e roscas que os poucos romeiros penduram no pescoço como em outros tempos. Falta, porém, a afluência numerosa e álacre que se recordou acima.
Aquilo que em diversas fases popularizou a festa da Penha, desde sua origem nitidamente lusitana até chegar a marcá-la como pródromo do Carnaval com o lançamento de sambas e marchinhas dos mais famosos cultores de nossa música popular, não mais se vê no arraial, nem em sua longa escadaria. Para consolar os saudosistas, não dei- xando morrer a tradição, há apenas agora, lá no alto, imponente, inteiramente iluminada à noite de todos os domingos de outubro, a igreja da venerada e milagrosa padroeira dos sambistas.
(O Jornal, 21/10/1962)
______________________________________________________________________Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.
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