quarta-feira, março 14, 2012

Zizinha, Lili, Dondoca e Dorinha

José Francisco de Freitas
Zizinha, a “santinha” de quem todos pretendiam “tirar uma casquinha”, foi personagem imaginária tendo a favorecê-la o diminutivo de seu apelido proporcionando rima rica e fácil. Lili, a que foi surpreendida quando era bolinada, igualmente fictícia, permitia também no tratamento íntimo de seu nome um versejar simples e espontâneo. E ainda com Dorinha, a que fazia o amante chorar ante sua indiferença ou não correspondência (igualmente criada pelo compositor) aconteceu o mesmo observado em suas antecessoras.

Já com a Dondoca, a que devia apressar o passo ameaçada por um beliscão na “pernoca”, a coisa foi diferente. Essa existia, e embora popularizada no Carnaval de 1927 sob a suposição de tratar-se de alguma melindrosa (hoje dir-se-ia brotinho), era uma cadelinha a quem José Francisco de Freitas tinha grande estima. Emprestou, pois, o nome pelo qual atendia para uma nova marchinha alegre, brejeira. Música que toda a gente cantou nos três dias do reinado de Momo enriquecendo a bagagem musical de seu dono e ensejando-o ser mais uma vez vitorioso na competição musical carnavalesca.

Passos, o prefeito, ajuda Freitas

Mostrando seus pendores musicais logo nos primeiros anos de idade, aos dez, precisamente, José Francisco de Freitas compunha a primeira música à qual deu o título Pereira Passos. Prestava desse modo sua homenagem ao operoso prefeito que modernizava o Rio rasgando novas ruas, fazendo surgir amplas avenidas. Teve então o pronto reconhecimento do governador da cidade que lhe proporcionou matrícula gratuita no Instituto Profissional Marcolino como gratidão ao garoto pobre e em cuja produção artística deixava nítida sua vocação musical.

No referido estabelecimento de ensino, a par do aprendizado da tipografia que lhe permitiu depois ingressar na imprensa Nacional e do estudo das matérias ali lecionadas, aprimorou-se no conhecimento da música. Seu professor, o consagrado maestro Francisco Braga, transmitiu-lhe um amplo cabedal de noções graças ás quais se tornou não só apreciável compositor, mas, ao mesmo tempo, exímio executante ao piano. Podia, por isso, divulgar em toda a expressão do que lançava na pauta as muitas composições de seu apreciado repertório.

Um pianista na Rua da Carioca

Dominando com muita técnica o teclado alvinegro, Freitinhas, como o tratavam nas rodas dos musicistas de sua época, ligou-se à Casa Carlos Wehrs, editora de todas (ou quase todas) suas composições. Passou a ser o pianista oficial do antiqüíssimo estabelecimento da Rua da Carioca, Ali, antes e depois de atender ao seu horário na Imprensa Nacional, era sempre encontrado “passando” partituras para os fregueses que as queriam conhecer antes de comprá-las, ou executando suas próprias músicas que já eram de franco sucesso.

Na temporada carnavalesca, principalmente, era mais assíduo. Quando ainda não havia o rádio e a divulgação das canções carnavalescas se fazia através das revistas teatrais ou executada pelos seus autores nas casas vendedoras de músicas, Freitas pontificava todas as tardes na Carlos Wehrs. Sentado ao piano colocado bem próximo à porta, dedilhava com mestria o instrumento e suas marchinhas buliçosas, saltitantes, faziam parar os passantes que formavam uma audiência numerosa e entusiasta. Essa mesma gente, já impregnada do vírus momesco, formava então um coral improvisado que entoava alto, sem cerimônia, a letra da composição que estava ouvindo.

Zizinha, Lili, Dondoca e Dorinha consagram o “marchista”

Quando José Francisco de Freitas, no Carnaval de 1925, lançou sua marcha Zizinha viu-a dominante com toda a cidade cantando: “Zizinha!,/ Zizinha!,/ Ó vem comigo, vem, minha santinha,/ Também quero tirar minha casquinha.” Estava iniciado o desfile de suas personagens fictícias. No ano seguinte era a Lili quem tinha sua vez de se popularizar, pois, por toda a parte, durante o tríduo foliônico todos afirmavam: “Eu vi!,/ Eu vi!,/ Você bolinar Lili, Lili/ Quando beliscava assim,/ Ela nervosa, enfim,/ Ficou ao ver-me ali.”

O êxito das duas marchas e, conseqüentemente, das “moças” que as intitulavam, levou Freitas a pensar numa terceira. E sua cachorrinha cujo nome apontava um punhado de rimas ficou sendo, por suposição do povo, a nova protagonista. Surgiu, pois, em 1927 a advertência: “Dondoca!,/ Dondoca!,/ Anda depressa! Que eu belisco essa pernoca.

Acompanhou-as, mais tarde (1929), registrando o mesmo sucesso de suas antecessoras Dorinha, cujos versos suplicavam: “Dorinha, meu amor.! Por que me fazes chorar?/ Eu sou um pecador/ Que vive só pra te amar.” Tinha-se, portanto, através de quatro mulheres não identificadas a consagração do “marchista” Freitinhas.

Perenidade do mito e da música

Tornando perene o mito de suas personagens, posto que até hoje, vencidos mais de trinta anos, Zizinha, Lili, Dondoca e Dorinha, ainda são evocadas e tornaram-se popularíssimas, José Francisco de Freitas viu consagradas também suas músicas. As regravações que delas vêm sendo feitas (principalmente as devidas a Altamiro Carrilho e sua bandinha) trouxeram-nas até nossos dias para seus contemporâneos e para a nova geração.

Formaram o documentário do farto e magnífico repertório de um autêntico compositor popular. Produções que, como acertadamente as definiu o cronista carnavalesco K. Noa (Antônio Veloso) em comentário no Diário de Notícias, nos dias de 1931: “. . . são harmoniosas e brejeiras, de música leve, saltitante e letra cuidadosamente escrita, sem pornografia ou ofensas diretas ou indiretas à educação do povo.”

Hoje, quando imperam em nossa música popular falsos valores à força de divulgação comercializada ou da “caetutagem” (divulgadores profissionais) desabrida, Freitinhas bem merece que se recorde seu nome e suas marchinhas. Todas elas com muito sabor de graciosidade e leva- das à preferência do povo em suas primeiras execuções feitas pelo autor no piano da tradicional Casa Carlos Wehrs ou nas noitadas dançantes do famoso rancho Ameno Rosedá.

Bailes que eram, desde 1924, sempre animados pela “excelente jazz-band do Maestro Freitas” como frisavam nos convites e nas notícias enviadas aos jornais.

(O Jornal, 17/3/1963)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

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