Os sambistas antigos, os chamados da velha guarda, ligados aos africanos ou a seus descendentes quase todos baianos e de cor preta ou mulata — freqüentavam macumbas, candomblés e tinham seus terreiros preferidos. Daí encontrar-se em muitas de suas produções referências a meu pai de santo, meu orixá, afora o recurso de buscar rimas fáceis em termos africanísticos ou pseudo-africanísticos: Ôcu-babá gê-lê, saravá, etc. Característica que se tem comprovação abundante relembrando-se os sambas de Donga, Getúlio Marinho, Hilário Jovino e até mesmo do popularíssimo Sinhô.
Quando os musicistas brancos, já despegados das raízes negras que influenciavam o samba autêntico, relegaram a modinha e a cançoneta, criando o samba citadino (dos morros, do asfalto e das mesas dos cafés), tomaram novo rumo os motivos passaram a ser outros: o barracão, a pobreza do Com que roupa?, a crítica do Aí, Filomena, amores infelizes e glosas momentâneas. O africanismo deixou de surgir nas letras, embora o melódico e o rítmico ainda repousassem nele. Assim, ao se ver, um compositor de música popular, já aureolado pelo sucesso de suas produções — Ary Barroso — num terreiro de macumba era de se esperar que aquela sua incursão não fosse apenas curiosidade. E não foi. Trouxe do ritual que viu e ouviu, sugestões, temas que usou.
Uma macumba para Josephine
Em 1939, estando a famosa colored Josephine Baker no Rio, onde se exibiu em nossos principais centros noturnos, a revista O Cruzeiro e o vespertino Diário da Noite resolveram mostrar-lhe uma macumba. Da organização desse espetáculo ficaram incumbidos Heitor dos Prazeres, O professor Carlos Cavalcanti, Paulo da Portela, José Espinguela e mais alguns entendidos em samba e na prática dos ofícios das religiões negras. Não seria, a rigor, a realização do ritual, mas apenas o demonstrativo em que se juntaria uma exibição mista de sentido folclórico, o entoar de pontos e de sambas. Tudo com baianas e pastoras, gingando na coreografia propiciada pelo ritmo.
Para os conhecedores ou iniciados, os que freqüentaram os terreiros ou festas de santo dos famosos alufás ou orixás, talvez a reunião, além de profanar os mitos das crenças negras, deixasse a desejar. Tratava-se, porém, de proporcionar a uma leiga, embora precariamente, com os recursos possíveis para uma realização imediata, o conhecimento da macumba que ela sabia ter cultores não só na Bahia, mas também no Rio.
Heitor dos Prazeres que pela sua tradição no meio e convivência com tias, mães, e pais de santo foi investido como principal organizador da sessão, procurou desobrigar-se do melhor modo. Josephine assistiria a uma macumba, não legítima, verdadeira, mas capaz de empolgá-la.
No terreiro de Mãe Adedé
À falta de um local autêntico, Heitor e seus companheiros improvisaram no quintal da casa de Adedé, sua amiga residente na Rua Major Rego, no subúrbio leopoldinense de Ramos, o terreiro para a macumba. Foi para lá que na noite de 30 de junho de 1939 se dirigiu numerosa comitiva acompanhando Josephine Baker e integrada, entre outros, por Jorge Fernandes, Dircinha Baptista e Ary Barroso. Este último, embora tivesse a missão específica de irradiar pela Rádio Tupy as ocorrências do espetáculo afro de música e religião que ali seria apresentado, iria captar a musicalidade reinante.
Casando à função jornalística do momento a sensibilidade artística inata que já o marcava como um de nossos melhores compositores de música popular, Ary ouvia atentamente os pontos e aprendia sua linha melódica. Sentia, como agora ficou em moda dizer-se, a negritude dos cânticos e de seus versos onde se falava de divindades estranhas aos brancos, sempre ao jeito de lamento, numa réplica dos spirituals, mas igualmente conduzindo preces.
Viu, sem se impressionar muito, os cavalos receberem pretos velhos que baixavam saudando os presentes (“saravá meuze fio!”) e pediam pito e marafa. Fixava, no entanto, sua atenção, de modo especial, na expressividade do ambiente impregnado de música rústica marcada pelo bater constante do atabaque. O compositor branco recolhia do espetáculo sugestões, temas que viria a explorar.
Negros e macumba inspiram Ary
O que acima se articulou como possível resultante da visita de Ary Barroso ao terreiro de Mãe Adedé, de fato, aconteceu. O compositor, cuja ida à estação de Ramos seria, apenas, para fazer cobertura radiofônica da macumba que Heitor dos Prazeres e Carlos Cavalcanti proporcionaram a Josephine Baker, trouxe de lá inspiração e sugestões. E elas repontaram pouco depois. Em 1942 (segundo discografia de Almirante e de Mariusa, filha do saudoso musicista) Ary lançava um samba onde dizia: “eu vô fazê um despacho para arranjá outro amo...“. Logo a seguir, em 1943, surgia o Terra Seca, de grande sucesso, com o refrão: “trabaia, trabaia, nego”. E, sem muita demora, em meio da produção farta que o seu estro lhe permitia, um outro samba intitulado Xangô tinha a marca afro, mostrava as sugestões do terreiro de Mãe Adedé.
Claro está que Ary Barroso, versátil, de numerosa bagagem musical, não condicionou, após a ida a uma macumba, todas as suas composições aos pretos véios que viu incorporarem-se no terreiro de Ramos. Seus sambas e marchas conduzindo motivos vários, tiveram aspectos que subiram do primarismo musical, como o Dá nela, dá nela, visando ao sucesso carnavalesco, até o alegórico do Aquarela do Brasil. Não se negará, porém, que o despacho ou ebó como recurso para arranjar outro amor, assim como o negro moiado de suó ou Xangô (santo estranho a brancos), possivelmente, lhe foram sugeridos no terreiro de Mãe Adedé.
(O Jornal, 30/5/1965)
____________________________________________________________________Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.
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