Manuel Bandeira, um dos nossos maiores cronistas, acaba de publicar um interessante volume, "Chronicas da Província do Brasil" que é um agradável passeio entre as letras, as artes e recantos pitorescos da terra brasileira. O livro de Manuel Bandeira tem dois capítulos sobre João Baptista da Silva, o popularíssimo Sinhô.
O do enterro do autor de "Jura" é uma página sugestiva das mais curiosas do livro. Transcrevemos, nesta página, o outro capítulo, sob o título "Sambistas", em que o cronista narra um caso pitoresco e complicado de investigação da paternidade de um samba:
"Quando morreu o afamado Sinhô, escrevi para o "Diário Nacional" de São Paulo uma crônica em que recordava com saudade alguns traços curiosos da figura do rei do samba carioca. E contei uma cena a que tive o prazer de assistir em casa dos meus amigos Eugênia e Álvaro Moreyra.
Foi o caso que numa das extintas deliciosas quintas-feiras em que o casal recebia, apareceu o Sinhô e regalou os convidados não só com a sua conversação como com os seus sambas. Estava mal de voz, tossia muito (era a velha tuberculose que apertava o cerco), mas nenhum de nós teve a menor ideia de atribuir aquela tosse à terrível moléstia e, como era do mais elementar dever, poupar o doente.
O que nos desculpa daquela “descaridade” é que Sinhô para toda gente era uma criatura fabulosa, vivendo no mundo noturno do samba, zona impossível de localizar com precisão - é no Estácio mas bem perto ficam as macumbas do Encantado, mundo onde a impressão que se tem é que ali o pessoal vive de brisa, cura a tosse com álcool e desgraça pouca é bobagem. Assim quando Sinhô parava num acesso, ia-se buscar uma boa lambada de Madeira e o fato é que a tosse é que a tosse passava.
A acreditar no Sinhô, ele não tinha dormido na noite da véspera. Passara-a numa farra, e naquela manhã mesmo, ao regressar a casa, não fora bem recebido pelo seu bem, que naturalmente estava ralado de ciúmes.
Contou Sinhô que foi então para o piano e improvisou um samba, que entoou para nós ainda com as hesitações das coisas inacabadas. Era gostosíssimo e parecida do melhor Sinhô. (Ninguém duvidou que não fosse dele.) Lembro-me bem da toada e da letra do estribilho:
Já é demais,
Meu bem, já é demais!
Eu já notei que tu queres me acabar...
Fizemos o Sinhô repetir a toada um sem-número de vezes. Todos os presentes já o sabiam de cor e secundavam em coro quando chegava a hora do "já é demais". Foi isso em fins de 1929.
***
Há pouco mais de um mês um amigo meu, que se interessa atualmente por modinhas policiais, pediu-me umas informações, e para servi-lo andei correndo os olhos na literatura de cordel. Fui à toa à Praça Tiradentes onde, sob as arcadas do antigo São Pedro, havia um vasto estenderete do gênero. O café da esquina da Rua das Marrecas estava em demolição. Mas passando por lá de bonde verifiquei que nos andaimes da reconstrução os cordelinhos de engraxate resistiam bravamente à poeira. Lá pude arranjar uma pequena coleção de "liras" que remontavam até 1927.
Vim para casa e correndo a vista por aquelas páginas sujíssimas deparei num dos cadernos com o título "Já é demais". Abaixo dele vinha a informação: "Letra e música de seu Candu". Ora, lá estava o estribilho do samba de Sinhô:
Já é demais, meu bem,
Meu bem já é demais!
E hoje já notei
Que tu queres me acabar...
Verifiquei logo que o plágio não podia ser de seu Candu, porque a publicação era de 1927 (editor Menotti Carnaval, depósito Rua General Pedra, 169) e de resto havia ainda a indicação abaixo do título de que o "Já é demais" era choro do carnaval de 1925, o que estava aliás provadíssimo pelo contexto da letra todo cheio de alusões aos fatos revolucionários de 1924:
Lá no morro de S. Carlos
É lugar de pretensão.
Já botaram metralhadoras
Pra brigar com aviação.
Ainda não pude descobrir quem conhecesse a toada do choro do seu Candu. Em todo o caso está claro que Sinhô avançou no refrão de seu Candu.
***
Isso tudo me fez refletir como é difícil apurar afinal de contas a autoria desses sambas cariocas que brotam não se sabe donde. Muitas vezes a gente está certo que vem de um Sinhô, que é majestade, mas a verdade é que o autor é seu Candu, que ninguém conhece.
E afinal quem sabe lá se é mesmo de seu Candu? Possivelmente atrás de seu Candu estará o que não deixou vestígio de nome no samba que toda a cidade vai cantar. E o mais acertado é dizer que quem fez estes choros tão gostoso não é A nem B, nem Sinhô, nem Donga: é o carioca, isto é, um sujeito nascido no Espírito Santo ou em Belém do Pará."
Fontes: "Carioca" - Edição 77, de 10/4/1937; Yahoo Grupos: transcrição de Maria do Carmo - "In" Manuel Bandeira - Poesia Completa e Prosa, Editora Nova Aguilar S.A., RJ, 1983, págs. 463/465 (texto revisado).
Nenhum comentário:
Postar um comentário