quarta-feira, março 28, 2012

O Entrudo e o zé-pereira

Baile de fantasia no Cassino Fluminense com os figurões políticos em 1864 - "Semana Ilustrada"

A época do Carnaval varia de ano a ano porque está condicionada ao regime das festas móveis ou variáveis no tempo, estatuídas pela Igreja Católica Românica. A base de suas grandes solenidades rituais é a chamada Páscoa da Ressurreição, que jamais deve coincidir com a Páscoa dos judeus, na qual se deu, no mês de nizã ou março, a paixão de nosso senhor Jesus Cristo.

A fim de evitar essa coincidência em qualquer tempo, a Igreja, sabiamente, determinou celebrar a Páscoa da Ressurreição no 1º domingo posterior ao 14º dia da lua que vem após 21 de março. Se compreende isso desde que se tenha em vista que os hebreus se regiam por um calendário lunar e não pelo calendário solar adotado pelos povos cristãos. Assim, cronologicamente, a Páscoa da Ressurreição sempre cairá no 1º domingo seguinte à lua cheia imediatamente posterior ao equinócio da primavera, fixado no dia 21 de março.

Em virtude dessa determinação, se 21 de março for sábado e lua cheia, o dia 22 será o Domingo de Páscoa, caso em que este ocorre o mais cedo possível. Se a primeira lua cheia, isto é, o 14° dia lunar, após o equinócio, for 29 dias depois de 20 de março, por conseguinte, em 19 de abril e esse dia for domingo, o de Páscoa só poderá ser 25 de abril, caso em que ocorre o mais tarde possível. Daí se verifica que o Domingo de Páscoa ou Domingo da Ressurreição somente pode cair entre duas datas extremas: 22 de março e 25 de abril.

Ora, o Domingo de Carnaval, Domingo da Qüinquagésima ou Domingo Gordo cai sete domingos antes do da Ressurreição. Por isso, muitas vezes, se realiza o Carnaval em fevereiro e, noutras vezes, em março.

É o Carnaval festa de fundo pagão, com remotas raízes nos orgíacos festejos de Babilônia, denominados Sacae. Nele se dá liberdade ao instinto da carne: Carne Vale. Só a carne vale e se manifesta nessa comemoração dionisíaca. Ou o nome vem do carrus-navalis, carro naval de triunfo netuniano usado nesses festejos, que duraram em Flandres e na Alemanha até o século 13, relembrando as invasões dos normandos ou viquingues.

Mas, logo que seu tumulto se apaga, após três dias de intensa liberdade, a segunda e a terça-feira, a voz da Igreja, na Quarta-Feira de Cinza, lembra aos desvairados a fatalidade da morte: Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris (Te lembres, homem, que és pó e ao pó voltarás). Assim é a terça-feira de Carnaval espécie introdução às cerimônias litúrgicas que se iniciam na Quarta-Feira de Cinza. Se dizia, em latim, que era o dia do Introitus, isto é, daquela introdução. A palavra introitus se corrompeu a entrudo e, por extensão, se passou a denominar, antigamente, ao Carnaval, Entrudo e, como era inveterado costume, se usar, durante ele, brincadeira com água, hoje a palavra tomou a acepção restrita de Carnaval molhado.

Nos bons tempos de antanho se atirava água, às pessoas que passavam na rua, das janelas e balcões das casas, com jarro, balde, bacia. Havia foliões que punham à porta de sua moradia pipas e tonéis cheios, nos quais, ajudados por outros, mergulhavam os transeuntes desprevenidos. Em compensação, depois do banho, lhes serviam quitute e bebida. Devemos considerar isso reminiscência dos antigos banhos lustrais ou de purificação ritual pra se entrar em vida nova. Ainda aí a palavra introitus encontra significativa aplicação. Perdido o sentido primitivo, esses banhos se tornaram mera brincadeira, às vezes finalizando em conflito e grossa pancadaria, quando quem era molhado a força não estava disposto a suportar o brinquedo, o achando, apesar da tradição, de péssimo gosto.

Ilustr. de Momo - Rio de Janeiro, 1862
Com o tempo o costume se amenizou, os baldes e tinas foram abandonados, se passando ao uso menos bárbaro de limões e laranjinhas feitos de leve camada de cera, recheados de água perfumada ou colorida, atirados, de longe, às pessoas descuidadas. Mais tarde, com a aplicação da borracha de seringueira ao uso industrial, as laranjinhas de cera tiveram de ser substituídas por outras do mesmo formato, porém com fino invólucro elástico. As vítimas desse entrudo não se aborreciam tanto com as que os ensopavam com água-de-cheiro como com as que traziam colorantes, que manchavam chapéu e roupa. Isso provocava rixa e barulho, muitas e muitas vezes com gravidade.

Se deram novos e melhorados meios pro entrudo. Se adotaram as pequenas bisnagas de borracha com canudo de metal ou de metal flexível, de vários feitios e tamanhos, as quais, apertadas pelos dedos, esguichavam, quase como um vaporizador, líquidos perfumados aos que tomavam parte na lide carnavalesca. Isso esteve em grande voga na era de 1900. Mas apareceram malvados que carregavam as bisnagas com molho de pimenta ou ácido fênico, produzindo queimaduras e até cegueiras. A polícia, então, proibiu, terminantemente, o uso de tais objetos.

Todavia o velho Entrudo teimava em não morrer, reformando seus processos e rejuvenescendo anos afora. Às bisnagas sucederam, inicialmente, os tubos de cloretil e, afinal, os de vidro e metal dos chamados lança-perfumes, que são coisa de ontem. Houve anos em que se gastaram tantos milhões deles nos carnavais cariocas que suas fábricas de França enviaram representantes especiais pra estudar as admiráveis condições desse mercado no Brasil. Se fundaram, depois, fábricas nacionais que exploraram essa lucrativa indústria. Finalmente, os viciados começaram a procurar no éter contido nos tubos de lança-perfume a embriaguez, quer nas vias públicas, quer nos bailes em recintos fechados, de modo que as autoridades se viram forçadas a proibir o uso.

Morreu, assim, já em nossos dias, metalizado, perfumado e industrializado o velho Entrudo nascido nas bacias e tonéis de água de nossos avós. Nos últimos tempos de sua existência tivera a colaboração inocente do papel colorido sob a forma de confete e serpentina, e de espanador pra fazer cócega, denominado mamãe-sacode.

O emprego de laranjinhas e limões-de-cheiro ou de água-de-cheiro começou no Rio de Janeiro, na época da independência. Se atiravam esses projéteis carnavalescos até nos teatros. As crônicas do primeiro reinado registram um episódio interessante, que ocorreu no então real teatro de São Pedro de Alcântara, no Rossio, hoje substituído por um monstro moderno de alvenaria e crismado como João Caetano. Foi no Carnaval do ano da graça de 1825.

A atriz Estela Sezefredo, então famosa, trêfega, muito jovem e muito divertida, ousou lançar um desses limões na pessoa de sua majestade, o imperador dom Pedro I, sendo, incontinenti, presa e metida nas grades do antigo Aljube, ao pé do morro da Conceição, pra, no silêncio e na solidão, meditar um pouco sobre a estouvada brincadeira.

Estela Sezefredo era natural do Rio Grande do Sul e começou a carreira como dançarina daquele teatro, tendo pronunciado o discurso na festa oficial de reabertura, em 1 de dezembro de 1824, quando ali se representou Engano feliz, de Rossini. Tendo vindo de sua terra natal com 12 anos de idade, em 1822, pois nascera em 14 de janeiro de 1810, contava somente 15 anos ao praticar a pequena loucura carnavalesca que a levou à cadeia. Deixou de ser bailarina e estreou como atriz com 23 anos, em 1833, na comédia Camila. Alcançou êxito ruidoso, desde então, no palco. Se casou com o grande ator João Caetano dos Santos, passando a se chamar Estela Sezefredo dos Santos. Enviuvou em 1863 e pretendeu, embora já maior de 50 anos, voltar a ganhar a vida como atriz, não obtendo mais êxito. Faleceu na maior miséria, em Niterói, em 13 de março de 1874.

O infatigável e probo historiador da cidade do Rio de Janeiro, Vieira Fazenda, desenterrou, da poeira dos arquivos, alvarás, avisos e posturas municipais sobre o Entrudo carioca desde o século 17. O Entrudo continuou aqui no século 18 mas com proibição absoluta, de acordo com as próprias ordenações do reino, do uso de máscaras e embuçados, sob penas variadas: Prisão, multa, açoite e até degredo.

O Carnaval de rua, com préstitos alegóricos, como o conhecemos, parece datar, no Rio de Janeiro, de 1854, ano em que se fundaram as duas primeiras sociedades carnavalescas da cidade: Veneziana e Sumidades Carnavalescas. Os primeiros bailes à fantasia realizados em 1846.

Durante o segundo reinado surgiu no Rio, e se alastrou nas províncias, nova modalidade do Carnaval, a zabumbada ou zé-pereira, antepassado dos cordões e Ranchos, com uma cantiga, cujo estribilho andava na boca de toda gente:

Viva o zé-pereira
que a ninguém faz mal!
Viva a pagodeira
no dia do Carnaval!


O criador desse novo Carnaval existiu de verdade. Era o português José Nogueira de Oliveira Paredes, sapateiro na rua São José 22, antigo caceteiro miguelista em Portugal, que ali participara das famosas rebeldias populares: A Patuléia e a Maria da Fonte, vindo, fugido dos liberais vencedores com dom Pedro I, dar com os ossos no lado de cá do Atlântico. Mal se anunciava o Carnaval e reunia uma dúzia de patrícios que comiam e bebiam à boa maneira lusitana e saíam ruas afora, batucando tambor, tocando zabumba e cantando:

Viva o zé-pereira
que a ninguém faz mal!
Viva a bebedeira
no dia do Carnaval!


A zabumbada de Paredes e seus companheiros obedecia a ritmo tão certo e espalhafatoso que ninguém podia imitar. Sua passeata nas ruas públicas atraía verdadeira multidão de acompanhante. Muitos pretenderam imitar, capitaneando bando de tocadores de bombo e outros instrumentos de pancadaria, mas sem que lhe levassem as lampas na famosa toada.

Vieira Fazenda nos dá conta da origem do nome de zé-pereira prà batucada de José Nogueira de Oliveira Paredes assim: "Uns dizem que, em certas localidades de Portugal, é o bombo conhecido por zé-pereira. Outros querem, e é mais provável, que, na primeira noitada de bom sucesso, os companheiros de Paredes, na força do entusiasmo e influenciados pela vinhaça, trocaram o nome do chefe e davam vivas a Zé Pereira em vez de Zé Nogueira".

Como quer que seja, Zé Nogueira ou Zé Pereira presenciou seu triunfo na ribalta, quando a célebre companhia teatral Heller levou, no Rio, a cena uma paródia dos Pompiers de Nanterre sob o título sugestivo de O zé-pereira Carnavalesco, tendo Paredes comparecido ao espetáculo de cartola e sobrecasaca, e chorando em público, de alegria.

José Nogueira ou Zé Pereira, criador do verdadeiro Carnaval de rua do Rio de Janeiro, inventor do rancho ou cordão, iniciador da batucada, morreu dum ataque de apoplexia na véspera dum carnaval, depois de examinar cuidadosa e carinhosamente, em sua oficina de sapateiro, os bombos e tambores de seu bando folião, instrumentos de sua fama, cuja integridade zelava com amor paternal e aos quais chamava, emocionadamente, meus queridos amigos. Fora, em verdade, o rei da batucada.

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Fonte: O Entrudo e o zé-pereira, Gustavo Barroso - Revista O Cruzeiro, 18/2/1950.

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