quinta-feira, janeiro 17, 2013

Nosso Sinhô do Samba - Parte 6

Sinhô era vaidoso como uma mulher bonita. Embora feio, bexiguento, de físico maltratado, trajava bem, às vezes até com certo capricho. Por muito tempo usou chapéu de copa alta, marca registrada dos elegantes da época. Se o tempo esfriava, aparecia com vistoso sobretudo de gola virada. Quando morreu, trazia punhos (ainda em uso). Um deles, lustroso, como era moda, ficou sujo de sangue da hemoptise. Também gostava de usar colarinho em pé, o que já motivara as alfinetadas de Pixinguinha no samba Já te digo.

Sua vaidade era natural diante dos seus triunfos. De poucas letras, sem quase nada haver estudado, inclusive música, Sinhô com pouco mais de trinta anos era popular, querido, discutido.

Foi no seu tempo o compositor popular de maior evidência em todo o Brasil. Vencedor na legítima significação do vocábulo, sem a ajuda de microfones, de telas de aparelho de tevê, de publicações especializadas, o que é importante.

Possuía lábia especial para as mulheres, que seduzia a seu modo. Teve o amor de brancas, morenas, louras e francesas falsas ou autênticas. Algumas mercenárias do amor se lhe dedicaram de corpo e alma. Seus versos, trôpegos ou no, maliciosos ou ingênuos, eram cantados em todo o Brasil. Privava da intimidade de gente de alto nível social; freqüentava boas rodas. Intelectuais o admiravam e o exaltavam. José do Patrocínio Filho, com quem tinha pontos estreitos de afinidade, como perspicazmente observa Manuel Bandeira (até no físico e nas petas, acrescentamos), era um dos seus amigos e incensadores. Mas enquanto Zeca do Pato era culto e viajado, o sambista seria um Zé do Pato sem verniz e sem leitura. Isso, ao contrário do que podia parecer, aumentava-lhe o prestígio.

Luís Peixoto, que foi amigo dos dois, conta que Sinhô freqüentava a roda do jardim Teatro Recreio, ainda nos seus tempos reduto de boêmios e artistas. E por mais de uma vez assistiu aos exageros de Zeca com referência ao sambista. Numa noite, depois de Sinhô cantarolar um dos seus novos sambas sob o enlevo dos presentes, Zeca, teatral como sempre, ajoelhou-se-lhe aos pés, exclamando:

— Homero! Homero!

Tudo isso deveria espicaçar os brios do cafuzo e torná-lo por vezes insolentemente vaidoso, como Bandeira observou na noite do velório daquele seu extremado admirador, o fabuloso José do Patrocínio Filho.

Mas se alguns que o conheceram figuram-no como vaidoso em excesso a ponto de se tornar intratável, não são poucos os que lhe elogiam o gênio e a sinceridade. Augusto Vasseur, que foi talvez o seu maior amigo, só tem elogios para o compositor que lhe dedicou algumas das suas produções. Foi Sinhô, aliás, quem iniciou Vasseur no Rio, apresentando-o, quando retornou ao Rio, a Cícero de Almeida, da orquestra da sala de espera do Cinema Avenida, onde se engajou a princípio ‘dando uma canja’, isto é, substituindo os músicos faltosos e depois integrando definitivamente a equipe.

O temperamento apaixonado do sambista muito deve tê-lo feito sofrer e por isso mesmo inspirá-lo e torná-lo quase voltado para os motivos de amor e paixão. Escravizava-se fácil e não tinha dúvidas a respeito do domínio feminino a que se jungia ainda que esperneando. Sabia que não adiantava. No samba Burro de carga (ou Carga de burro — 1927) já dizia com acentuada dose de sensatez:

Podes saltar!
Podes falar como quiser
Pois muita força
Tem o amor de uma mulher!

Deus fez o homem
E disse num sussurro!
Tu serás burro de carga
E a mulher carga de burro.

Não adianta
O homem se esconder
Quando a hora é chegada
O burro camba sem querer.

Mas tal como na música, Sinhô era brigão nos seus amores. E misturava quase sempre lirismo com agressividade. Na marchinha — gênero brejeiro por excelência — tinha delicadezas de tons suaves, como em A Juriti (1925):

Por que será
Meu beija-flor
Que a Juriti
Não esquece a dor?

Entretanto saía de repente do diapasão sentimental e engrossava. Na marcha Fala baixo:

Não é assim
Assim não é
Não é assim
Que se maltrata uma mulher.

E em 1924, com o samba Já-já:

Se essa mulher fosse minha
Apanhava uma surra já-já
Eu lhe pisava todinha
Até mesmo eu lhe dizer chegá

Mudava de tom com a mesma versatilidade com que mudava de amores no começo da sua carreira de compositor:

Não quero teima nem discussão
Meu doce bem minha paixão
Hei de vencer os carinhos teus
Com a luz dos meigos olhos meus. (1)

 Observem que os olhos meigos não são ‘dela’, mas ‘dele’. E logo o estribilho contundente:

Olá olé
Tu bem mereces
Um pontapé.

Essa brusca variação de tom, que era característica dos poemas de Carnaval, é comum na produção do sambista. Variação não apenas melódica mas de linguagem e às vezes até de motivo. Em Cabeça de promessa (1924) de título já estranho pelo menos para os de hoje, o marchista entra de sola:

Não tens razão
Oh! meu amor!
Deixa de história
Ó cabeça de promessa
Sem valor.

Essa ‘cabeça de promessa’ deve ser ‘ex-voto’ e possuir significado especial. Gíria da época ou apenas um dos encaixes íntimos, particularíssimos do compositor.

Em Achou ruim faz meio-dia, título que já é uma agressão, o sambista em 1923 sentencia pitorescamente, ao que parece com endereço certo:

Sabes bem
Que é preciso simpatia
Para galgar a fidalguia
Desta terra
Onde a trova é debatida
E esquecida
Como a canção perdida.

De quando em vez Sinhô invertia os papéis e de suplicante amoroso passava a carrasco, a durão, desdenhando e desalentando apaixonadas teóricas ou não. Como em Cabeça inchada (1923), marcha de título esquisito, em cujos versos o compositor parece fazer advertência cruel mas de certo modo racional:

Muito te enganas
Dê no que der
Eu sou de quem eu quero
E não de quem me quer.

E esta a dor
Que se parece
Com a dor que a própria dor
Desconhece.

A flor mais bela
o malmequer
Eu sou de quem eu quero
E não de quem me quer.

Essa a filosofia amorosa do sambista. Preferia amar a ser amado. Os versos em que pese ao título amalucado e extravagante como quase sempre ocorria são caprichosos. Além do apelo ao malmequer para a rima perfeita, observa-se o jogo de palavras da estrofe-estribilho com parecenças até de Fernando Pessoa, de quem nunca terá ouvido falar o sambista do Rio.

São uma constante na produção sentimental de Sinhô essas alternativas. Já em Deixa deste costume, samba de 1919, o compositor versejava:

Hei de acabar
Com este costume
Que você tem
Falando de mim
Dizendo horrores
Me querendo bem.

Ai... o amor
um capitoso vinho
Que nos embriaga
Com um só pinguinho.

E quase repetindo as rimas pobríssimas:

Você há de saber
Que esse costume
Não fica bem
Porque toda gente
Sabe a paixão
Que você me tem.

Ai! como é bom
Viver aconchegadinho
Gozando a vida
Com mais carinho.

Como um resmungão amoroso, Sinhô está sempre reclamando ou advertindo de que nada lhe acontecerá de mal porque tem boa ajuda. Santo forte. No samba democrático do Carnaval de 1924, O Garoto, repete-se o aviso:

Há muito vens batalhando
Pra me ver aborrecido;
Desistas dessa idéia
Pois que é tempo perdido.

Ë loucura procurar
Minha estrela derrubar
O guia que Deus me deu
Só ele o pode tirar (2)

Não faças como o garoto
Que, a mando do vizinho,
Pedrejou minha gaiola
E matou o passarinho.

O cronista Vagalume (Francisco Guimarães) no seu livro Na roda do samba relata que, certa noite, foi em busca de Sinhô no teatro para levá-lo a uma festa que precisava de pianista. Sinhô logo se prontificou. Mas só iria depois do espetáculo.

— Por quê? — indagou o cronista.

— Porque sou o autor da música. Se ao terminar os espectadores me chamarem à cena, como vai ser?

Vagalume fez-lhe ver que sendo aquela a 174a representação ninguém iria chamá-lo mais à cena.

— Como não? o que você pensa. O público é exigente. De repente cisma e começa a chamar: Sinhô! Sinhô! Seu eu não estiver no teatro olhe o fuzuê formado!

E não foi.

O episódio reflete na sua ingenuidade a vaidade do compositor que se sentia inflado aos ventos dos aplausos populares. E como esses foram sempre generosos a seu favor, na praça pública, na rua, nos salões ou nos teatros, Sinhô viveu muito tempo embriagado do sucesso, do prestígio emanado do povo que nunca lhe faltaria com seu entusiasmo e vibração.

Sua vaidade se estimulava inclusive pela propaganda das suas composições que, inspirada ou não por ele, era rasgada, exagerada mesmo. Algumas das edições tinham capa com modelo próprio, como as da Casa Viúva Guerreiro & Cia., figurando um bloco carnavalesco de que apareciam as figuras principais, com um fantasiado à frente empunhando estandarte com os dizeres: ‘Evohé — Carnaval de 192... ‘Novidades do Rei do Samba — Sinhô’.

Também algumas edições da Casa Carlos Wehrs ostentam na capa a famosa caricatura do sambista ao piano, com a coroa na cabeça. O samba A Medida do Senhor do Bonfim (1928-1929) de relativo êxito, era anunciada como ‘sucesso mundial’. Quem fala de mim tem paixão carrega a designação ‘samba maioral’. Na edição de Jura (A Guitarra de prata), de 1929, Sinhô é chamado ‘O Rhapsodo Nacional’ e lá está o slogan: — o maior sucesso do mundo.

Sob a influência de tanto sucesso e de tanta promoção, por vezes excessiva, com o seu nome no cartaz e no programa dos teatros, conhecido de todos, cantado nos salões e assobiado nas ruas, Sinhô tinha que ser apaixonadamente vaidoso.

É ainda Francisco Guimarães quem informa dele ter recebido a resposta a seguir quando lhe deu parabéns pelo êxito do samba A Favela vai abaixo:

— Meu Tio Guima, eu escrevi esse samba em represália aos muitos que há por aí dizendo mal da Favela, que eu tanto adoro. Ela vai abaixo e eu lhe dou o meu adeus, deixo gravada a minha saudade e a minha gratidão àquela escola onde eu tirei o curso de malandragem.


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(1) "Minha Paixão" (1923). (2) Estrofe repetida mais tarde (1928) no samba "Tesourinha".

Fonte: "Nosso Sinhô do Samba" / Edigar de Alencar - Edição FUNARTE - Rio de Janeiro 1981.

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