quinta-feira, maio 30, 2013

A aventura de Plácida dos Santos

A cantora Plácida em 1906.
Como teriam surgido em Paris a música e a dança típicas do Brasil? E quem primeiro as teria levado à capital do mundo?

A escritora Sylvia Moncorvo, muito gentil, veio nos dizer que, tendo feito a sensacional descoberta, estava habilitada a responder àquelas duas perguntas. Duvidávamos disso? Pois, então, que fôssemos, em sua companhia, à residência do Professor Bruno Lobo, ali em Ipanema, porque tudo ficaria esclarecido!

Aceitamos o oferecimento e seguimo-la. A Sra. Bruno Lobo, requintadamente gentil, nos recebe com marcante fidalguia. Seu lar é um ninho de poesia aromática, construído num jardim suspenso. Domina o bairro, espreitando, como sentinela perdida, do alto de formosa colina. Não parece casa de médico; parece atelier de pintor nababo, pródigo na distribuição das cores. Palestra-se nesse ambiente de encantos, até que se serve o café.

E o caso da música brasileira?

A Sra. Bruna Lobo nos apresenta a uma senhora idosa, de excelente bom humor, olhos ainda iluminados, e dentadura tão alva e tão perfeita, como nunca se vira em senhora dessa idade. Todavia, a desconhecida não oculta os anos já vividos.

— Tenho setenta!

— Setenta? - voltávamos com espanto.

E ela vaidosa, já:

— Sim, setenta. O espírito, porém, ainda não completou dezoito!

E ri alegremente, imprimindo à garganta tonalidades cristalinas.

Só então ficamos sabendo quem era a dona daqueles dentes alvos, a proprietária daquele espírito moço e folgazão. Era a atriz Plácida dos Santos, que ainda nas primeiras décadas da República tanto deslumbrara a plateia carioca, apresentando-se como intérprete da canção "crioula".

— Fui eu, disse-nos ela, quem primeiro cantou em Paris a música brasileira!

E passou a nos relatar os pormenores e as peripécias de sua viagem ao Velho Mundo.

— Foi em 1889, começou Plácida dos Santos. Filha de grande general gaúcho, não tive a sorte no meu primeiro matrimônio, de modo que, para poder viver honestamente, lancei-me ao teatro, aproveitando o fio da voz harmoniosa e a plástica sedutora. Obtive êxito, de início. Mais tarde, sai em excursão pelos Estados, com o empresário Silva Pinto. Vi-me aclamada pelas plateias do interior. Ao regressar, uma cançonetista internacional, filha da Martinica, a Dzelmá, me disse no Teatro Santana:

— "Com essa voz e com essa plástica, se fosses a Paris, arranjarias fortuna!"

Retruquei-lhe que ainda era principiante e não encontraria quem me auxiliasse... Dzelmá, porém, era irredutível. Em Paris, toda gente encontrava emprego. Que eu fosse, porque não me arrependeria. Calei-me. Dentro do cérebro, porém, aquela ideia me ficou a martelar. E, dias depois, quando Dzelmá me comunicava seu embarque, decidi seguir também. Fui à casa, na Rua Bella de São João, arrumei a roupa, mandei chamar um "belchior" e liquidei o quarto! Três dias depois, tomando passagem a bordo do "Ville de Pernambuco", da Chargeur Reunis, seguia eu, em companhia da cançonetista internacional, levando, apenas, para minha permanência em Paris, uma libra esterlina!

Sucedeu, porém, que, quando o navio parou em Pernambuco, me apareceu velho conhecido de minha mãe, um negociante opulento, de largos recursos. Tinha ido levar a bordo um comendador. Ao despedir-se do amigo, recomendou-me, com vivo interesse. Que nada me deixasse faltar! O comendador prometeu-lhe dar cumprimento à palavra. O navio saiu, e já viajava durante quase trinta dias, sem que o comendador saísse do beliche. Um dia, à hora da mesa, o comandante, que se agradara muito de mim, disse-me:

— “Pas des fruits, ma petite brésilienne!”.

E eu lhe retruquei: — “Não faz, mal: o comendador tem em seu camarote muita fruta. Irei arranjar algumas para o jantar”. E, com esse pretexto, fui visitar o titular, arrancando-o do beliche. E como realmente me deu muitas frutas, eu, por uma questão de delicadeza, entretinha-me, durante algumas horas, a palestrar com o velho. A viagem estava a terminar. Ele se pos a indagar dos fins de minha viagem. Inteirei-o de tudo.

— “Dispõe de recursos?” — perguntou-me. Respondi-lhe que não. Possuía uma libra, mas já a tinha gasto, a bordo. Minha bagagem, assim iria ficar detida. Ele sorriu, balanceando a cabeça, como se estivesse dizendo, intimamente — “que doidinha!”.

O caso, porém, é que, quando chegamos ao Havre, o comendador, no momento em que dele me despedia, deixou ficar em minha mão um papel branco, que percebi, imediatamente, ser dinheiro. Não tive tempo, porém, de verificar quanto era. Ao descer as escadas de bordo, deslumbrei-me: mil francos! Gritei contente, anunciando aos quatro ventos o sucedido. Dzelmá afirmou-me que aquilo valia uma fortuna.

Assim, cheguei rica em Paris! Hospedei-me num hotel modesto da Rua Doux e, dias depois, fui levada à redação do “Gil Blas”. O redator teatral me recebeu com grande simpatia. Contei-lhe as minhas dificuldades, em bom francês, pois, tendo sido educada em um colégio de religiosas francesas, aprendi muito bem o idioma. Ele se admirou disso. E, como simpatizou comigo, prometeu lançar-me no teatro. Cantei, para que ficasse conhecendo minha voz. Seu entusiasmo crescia, à medida que meu repertório ia sendo cantado. No dia seguinte, deu o jornalista esta notícia, que me surpreendeu:

“Notável cantora brasileira, em excursão pela Europa, tomará parte no festival de caridade, que se realizará no “Embassateur”, em benefício das vítimas do cholera morbus".

E deu meu nome, como sendo o da tal “notável cantora”!

No dia do festival, em que tomavam parte duas “estrelas” de grande projeção no mundo artístico de Paris, Pollis e Theresa, apresentei-me no palco. O teatro enchera-se completamente. A colônia brasileira, os membros da Legação, os funcionários do Consulado, todos, todos, lá se foram postar, dispostos a aplaudir a “notável cantora brasileira”. E o redator do “Gil Blas”, que era o mais entusiasmado, levou seus amigos, declarando-lhes que “nunca tinham ouvido eles voz mais harmoniosa”!

É bem de ver o enleio em que me achava. A costureira vestiu-me com elegância tal que eu própria não me reconhecia ao espelho! Chega, afinal, a hora do espetáculo. Pollis sai à cena e canta. Aplausos delirantes. Depois, entra Theresa. O teatro quase vem abaixo. Fazem-se outros números intermediários, enquanto não entra o meu.

Plácida posa para a Noite Illustrada (abril/1933)
As duas “estrelas” percebem que estou acovardada. Animam-me. Com aquele corpo, alguém poderia fracassar em Paris? Que entrasse, sem receio, porque o triunfo era seguro! Os cartazes anunciavam, porém, uma “atriz crioula”, e o publico, naturalmente, supôs que ia ouvir uma negra, de grandes beiçolas. Ao ver-me, a plateia deixou escapar um — “oh!” — de admiração. Compreendi tudo e dominei-me. Cantei com desenvoltura e agrado geral. Bisaram-me todos os números.

E ao fim do espetáculo, quando saímos à plateia, a fim de recolher obulos, obtive féria maior que as reunidas pelas duas afamadas cantoras francesas. No dia seguinte, estava eu contratada para o “Folies Bergeres”, onde dancei o maxixe brasileiro, estilizado, sem os excessos e os requebros anti-estéticos, tão ao sabor de nossos dançarinos.

— E aí está, concluiu Plácida dos Santos, como uma brasileira embarca para Paris com uma libra esterlina e de lá regressa, ao cabo de cinco anos, com um começo de fortuna!

Vive Plácida dos Santos de lecionar francês e, para isso, penetrou no mundo elegante carioca.

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Fonte: “A Noite Illustrada”, de 02/04/1933.

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