domingo, outubro 15, 2006

A história da Bossa Nova - Parte 1

Flagrante da primeira noite da Bossa Nova, o show "A Noite do Amor, do Sorriso e da Flor", na faculdade de Arquitetura



A história da Bossa Nova é a história de uma geração. Uma geração de jovens artistas brasileiros que acreditaram no futuro e conseguiram realizar o sonho de levar sua música aos quatro cantos do mundo.

As primeiras manifestações do que viria a ser conhecido como Bossa Nova ocorreram na década de 50, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Ali, compositores, instrumentistas e cantores intelectualizados, amantes do jazz americano e da música erudita, tiveram participação efetiva no surgimento do gênero, que conseguiu unir a alegria do ritmo brasileiro às sofisticadas harmonias do jazz americano.

Ao se falar de Bossa Nova não se pode deixar de citar Antonio Carlos Jobim, Vinicius de Moraes, Candinho, João Gilberto, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Nara Leão, Ronaldo Bôscoli, Baden Powell, Luizinho Eça, os irmãos Castro Neves, Newton Mendonça, Chico Feitosa, Lula Freire, Durval Ferreira, Sylvia Telles, Normando Santos, Luís Carlos Vinhas e muitos outros.

Todos eles jovens músicos, compositores e intérpretes que, cansados do estilo operístico que dominava a música brasileira até então, buscavam algo realmente novo, que traduzisse seu estilo de vida e que combinasse mais com o seu apurado gosto musical.

Impossível precisar quando a Bossa Nova realmente começou. Mas é certo que o lançamento, em 1958, dos discos Canção do Amor Demais, com Elizeth Cardoso interpretando composições de Tom e Vinícius, e Chega de Saudade - 78 rpm, com o clássico de Tom e Vinicius de um lado e Bim-bom, de João Gilberto, do outro -, nos quais João surpreendeu a todos com a nova batida de violão, foi o resultado de vários anos de experiências musicais. Experiências empreendidas não só por João, mas por toda a turma que se encontrava nas famosas reuniões na casa de Nara Leão.

Após o lançamento, em 1959, do primeiro LP de João Gilberto, também chamado Chega de Saudade, a Bossa Nova rapidamente se transformou em mania nacional e em poucos anos conquistou o mundo.

Mas bem antes disso o Rio de Janeiro já vivia um raro momento de florescimento artístico, como poucas vezes se viu na história da cultura nacional. Não é à toa que os anos 50 são conhecidos como os "anos dourados". O Brasil vivia então um período de crescimento econômico que acabou se refletindo em todas as áreas. Em 1956, Juscelino Kubitschek tomou posse na Presidência da República com o slogan desenvolvimentista "50 anos em 5".

No mesmo ano, foram lançados os romances O Encontro Marcado, do mineiro Fernando Sabino, e Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, dois importantes marcos na história da literatura brasileira. Paralelamente, surgia na poesia um movimento inspirado no concretismo pictórico, cuja maior característica foi a valorização gráfica da palavra e do qual participaram nomes como os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Ferreira Gullar, entre outros.

Em 1957, estreava o filme Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos, um dos primeiros representantes do que viria a ser chamado Cinema Novo. Em 1958, a Seleção Brasileira de Futebol conquistava sua primeira Copa do Mundo, derrotando a seleção sueca por 5 a 2 e levando o povo brasileiro a cantar alegremente "A copa do mundo é nossa / Com brasileiro não há quem possa". Também em 1958, Jorge Amado lançava Gabriela Cravo e Canela e Gianfrancesco Guarnieri estreava no Teatro de Arena de São Paulo Eles Não Usam Black-tie, um marco na linguagem do teatro brasileiro.

Em 1959, era lançado o movimento neoconcreto nas artes plásticas, do qual fizeram parte Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lígia Pape, entre outros. Em 1960, Juscelino Kubitschek inaugurava a nova capital do país, Brasília, que possivelmente teve a primeira música de Bossa Nova em sua homenagem, composta por Chico Feitosa. Billy Branco havia feito um sambinha jocoso, Não Vou, Não Vou Pra Brasília, e Chico musicou uma letra que falava da vida na nova cidade. O tema, chamado Paranoá, nunca foi gravado, mas encontra-se preservado numa gravação particular feita na época, com o próprio Chico Fim de Noite cantando. Foi neste contexto que surgiu o movimento que viria a revolucionar não só a música brasileira, mas toda a produção musical internacional.

Ainda nos anos 40, a grande novidade musical foi o lançamento, em 1946, de Copacabana um samba-canção de João de Barro e Alberto Ribeiro, gravado pelo cantor Dick Farney com claras influências da música americana. A composição foi a precursora do que se chamou samba moderno, cujos grandes intérpretes foram o próprio Dick Farney e Lúcio Alves.

A suposta rivalidade destes dois grandes cantores era alimentada pela imprensa e por seus fã-clubes. No início dos anos 50, eram eles, com suas vozes aveludadas, os maiores ídolos da juventude brasileira. Ao lado de Ary Barroso, Johnny Alf, Garoto, Dolores Duran, Luiz Bonfá e Tito Madi, entre outros, influenciaram decisivamente a formação da geração que se consagraria através da Bossa Nova.

Na área de composição, quem mais havia ousado era o romântico Custódio, morto precocemente aos 35 anos, em 1945, autor de Mulher, Velho Realejo e Saia do Caminho, seu maior sucesso, e Noturno, composição de harmonia muito elaborada, de bela linha melódica e considerada, na época, um verdadeiro teste de interpretação para qualquer cantor ou cantora.
Custódio, que compôs cerca de 700 canções, gravadas pelos grandes nomes da época, como Orlando Silva e Sílvio Caídas, já tentava misturar os recursos do jazz e da música erudita aos elementos da música brasileira.

Também era moderno gostar de conjuntos vocais como os Garotos da Lua, do qual João Gilberto foi crooner, e os Quitandinha Serenaders, que contavam com Luiz Bonfá ao violão. Ou ainda Os Cariocas, então em sua formação original: Ismael Neto, Severino Filho, Badeco, Quartera e Valdir. Todos eles também demonstravam uma sensível influência da música americana, mais elaborada e de certa forma mais elegante.

Dick Farney, nome artístico de Farnésio Dutra da Silva, chegou a ser apelidado de "o Frank Sinatra brasileiro", tal a qualidade de sua voz. Logo após o lançamento de Copacabana, Dick, um apaixonado pela música americana, especialmente por Sinatra, Mel Tormé e Dick Haymes, embarcou para os Estados Unidos a fim de tentar a carreira por lá, cantando também em inglês.

Em 1948, o cantor voltou ao Brasil, mas sua carreira já estava irremediavelmente influenciada pela música americana. Nos anos seguintes ele gravaria sucessos como Marina e Alguém Como Tu. No verão de 1949, foi fundado na Rua Dr. Moura Brito, na Tijuca, o primeiro fã-clube do Brasil: o Sinatra-Farney Fã-Clube, do qual faziam parte nomes como Johnny Alf, João Donato e Paulo Moura. Lá, além de ouvir fervorosamente sucessos de seus dois ídolos, eles também começavam a "arranhar" os seus instrumentos. Voltando para a América, Dick tornou-se amigo dos mais conhecidos instrumentistas do jazz como Dave Brubeck, uma de suas principais influências no piano.

Na década de 50, já amigo de diversos músicos americanos e com respeitado conceito entre eles, Dick Farney tocava no Peacock Alley, um requintado bar do hotel Waldorf Astoria, em Nova York. Como os freqüentadores do bar em sua maioria não falavam português, Dick apresentava a música Copacabana com uma versão em inglês. Na época, Ipanema ainda não era cantada em prosa e verso, sendo o bairro de Copacabana o verdadeiro cartão-postal do Rio de Janeiro, o que despertava a curiosidade, na letra em inglês, da canção que havia sido no Brasil um grande sucesso do cantor.

Numa viagem ao Rio, em 1958, Dick deu um memorável concerto de jazz no auditório do jornal O Globo, apresentando-se com o baixista Xu Viana e o baterista Rubinho. Entre os temas de jazz, tocou sua versão de Copacabana com a letra em português e inglês, o que foi o sucesso da noite. O concerto foi gravado ao vivo e virou um LP no qual curiosamente a faixa Copacabana não se encontra. Dick Farney foi um dos primeiros cantores a procurar uma nova maneira de interpretar o samba. "Por que não existe um samba que a gente possa cantarolar no ouvido da namorada?", perguntava ele.

Logo em seguida, uma turma de adolescentes do Flamengo resolveu criar o Dick Haymes-Lúcio Fan Club, para homenagear o fundador do grupo Namorados da Lua. Lúcio Ciribelli Alves, nascido em Cataguases, Minas Gerais, também era um amante da música americana, principalmente do jazz, que começou a ouvir ainda criança, na Tijuca. Estimulado pela família, Lúcio participou de um programa infantil na Rádio Mayrink Veiga, Bombonzinho. Deste, passou para o Picolino, na mesma rádio. De lá foi para a Rádio Nacional, onde, no programa Em Busca de Talentos, ganhou o primeiro prêmio. Daí em diante, Lúcio não parou mais de cantar. Fã de conjuntos vocais como Pied Pipers, Moderneer's e Starlighter's, aos 14 anos fundou o grupo Namorados da Lua, do qual era crooner, violonista e arranjador. Com o grupo vocal, inscreveu-se no programa de calouros de Ary Barroso, conseguindo o primeiro lugar. A partir daí, os Namorados gravaram mais de 40 discos em 78 rotações e apresentaram-se em cinemas e cassinos durante alguns anos.

Em 1947, Lúcio foi convidado para integrar, em Cuba, o grupo Anjos do Inferno. De lá, com o grupo, foi para os Estados Unidos, onde, assim como Dick Farney, também muito aprendeu. Logo Carmen Miranda convidava os Anjos para acompanhá-la. Lúcio, no entanto, preferiu abandonar o grupo e voltar para o Brasil, encantando seus fãs com sucessos como Foi a Noite, De Conversa em Conversa e Sábado em Copacabana.

Apesar das inovações na área de interpretação, trazidas principalmente das experiências de Lúcio Alves e Dick Farney no exterior, no início dos anos 50, as músicas consideradas modernas eram do tipo dor de cotovelo, embora com as harmonias já mais trabalhadas, como em Ninguém Me Ama, do lendário jornalista Antonio Maria. Muito ligada à natureza exuberante do Rio de Janeiro e à excelente música que se produzia na América e chegava através de discos e programas de rádio, como o notável Em Tempo de Jazz, apresentado por Paulo Santos na Rádio JB, a nova geração, alegre e irreverente, criada nas areias limpas das praias de Copacabana e Ipanema e sedenta por novidades, queria retratar sua própria experiência, seus sonhos e estilo de vida.

Naquela época, as boas famílias consideravam cantar e tocar violão atividades menores e desestimulavam qualquer tipo de iniciativa de seus filhos neste sentido. Roberto Menescal, filho de uma tradicional família de arquitetos, lembra que, quando começou tentar profissionalizar-se, foi tocar com seu conjunto num baile ao qual seus irmãos mais velhos também compareceram como convidados. Depois de muita dança, chegou a hora do jantar: os convidados foram para as mesas e os músicos, inclusive Menescal, recolheram-se à cozinha, que era o lugar reservado para eles. "Foi um escândalo na família", recorda Menescal.

Os rapazes normalmente eram direcionados a seguir carreiras como direito, engenharia ou arquitetura. As garotas podiam até tocar violão, enquanto esperavam um marido adequado. Mas os pais de Nara Leão, Jairo e Tinoca, eram uma exceção. Eles recebiam com prazer os amigos da filha para reuniões musicais em que se trocavam acordes e idéias, tudo regado a muito refrigerante e sucos de frutas. O apartamento em que moravam, na Avenida Atlântica, entrou para a História como o principal reduto da nova turma da Bossa Nova. Nara, que tinha 12 anos em 1954, aprendia violão com um professor chamado Patrício Teixeira. Roberto Menescal, seu amigo da turminha da rua, bicava as aulas, já que sua família não via com maior interesse suas tendências para a música. "A Nara era uma cabeça muito mais adiantada do que a gente", conta Menescal. E logo logo toda a turma começou a se interessar por música.

Nas famosas vitrolas Philips, escutavam juntos discos como Julie Is Her Name, da cantora americana Julie London (cuja maior atração era o violonista Barney Kessel), o violonista mexicano Arturo Castro, o trompetista americano Chet Baker, cujo estilo cool de cantar era muito inspirador, e os pianistas George Shearing. Errol Garner e André Prévin. Outro programa imperdível para eles era assistir aos musicais da Metro. Menescal lembra o dia em que foi assistir a Cantando na Chuva, com Nara. "Quando saímos do cinema estava chovendo, e foi a glória. Envolvido pelo clima e pela música do filme, estava em Copacabana me sentindo o próprio Gene Kelly e a Nara, a Debbie Reynolds".

Um episódio engraçado envolvendo o cinema Metro aconteceu com Menescal. Na época, os carros era um sonho quase inatingível para muitos adolescentes, principalmente os carros conversíveis. Um amigo de Menescal, Gustavo, comprou um Studebaker branco, com rodas cromadas e capota conversível azul-marinho, automática. Menescal, que já tocava um violãozinho, teve a idéia de irem os dois com carro e violão para a porta do Metro, a fim de esperar a saída da sessão das quatro e impressionar as garotas.

Estava tudo planejado: eles ficariam parados na porta do cinema, bem à vontade, como quem não quer nada. Assim que se abrissem as portas, Gustavo apertaria o botão da capota, que se abriria lentamente mostrando os dois com o violão no banco de trás. Seria difícil para qualquer garota resistir a tal espetáculo. E lá se foram os dois. Tudo teria corrido muito bem não fosse o fato de o violão ter sido deixado na parte traseira, perto do porta-malas do carro. Na hora H, Gustavo apertou o botão e, conforme a capota foi baixando, também foi esmagando lentamente o instrumento. Eles ainda tentaram impedir a catástrofe, mas era tarde demais: todo mundo realmente parou, mas para olhar o violão sendo destruído. "Foi a maior vergonha", lembra Menescal.

Carlos Lyra também morava em Copacabana, na Rua Bolívar, e começou a tocar violão aos 19 anos, por causa de uma perna quebrada quando servia no Exército. Sua mãe, com pena dos quatro meses de imobilidade receitados pelos médicos, resolveu presenteá-lo com um violão. Carlinhos começou a estudar com o método de Paraguassu e, mais tarde, quando saiu do Exército, teve aulas de violão clássico com um sargento da Aeronáutica chamado José Paiva. "Foi ele quem me ensinou a fazer arpejos, escalas e a tocar com uma postura correta, muito necessária na Bossa Nova", conta o compositor. Quando entrou para o Colégio Mallet Soares, Carlos Lyra conheceu Roberto Menescal e Luís Carlos Vinhas e com eles formou um trio estranhíssimo: dois violões e um piano. Mas ainda era tudo levado na brincadeira. O colégio Mallet Soares era a escola certa para eles: até os professores tocavam violão e alguns chegavam a estimular os alunos a matar aula para fazer um som. "Tínhamos um professor chamado César que tocava violão muito bem, e saía com a gente para tocar", conta Lyra. Foi no Mallet Soares que ele começou a compor. Maria Ninguém, clássico da Bossa Nova, foi criada durante as aulas de Francês de dona Iolanda.

Além das reuniões na casa de Nara Leão, a turma também freqüentava os bares e boates onde se apresentavam Dick Farney, Lúcia Alves, Johnny Alf, Tito Madi, João Donato e Dolores Duran. "Eles foram os precursores da Bossa Nova, prepararam o terreno para a gente" reconhece Lyra.

No meio da década de 50, algumas casas noturnas eram o esconderijo da boa música. Num pequeno barzinho numa rua atrás do cinema Rian, chamado Tudo Azul (pela cor dominante de sua decoração interior), Tom Jobim era o pianista efetivo, e figuras conhecidas da noite do Rio não deixavam de aparecer por lá.

Naquele local, Rubem Braga fez a célebre apresentação de Vinícius de Moraes a Lila Bôscoli, com a famosa introdução: "Vinícius de Moraes, apresento-lhe Lila Bôscoli. Lila Bôscoli, apresento-lhe Vinícius de Moraes. E seja o que Deus quiser". E foi. Os dois acabaram se casando.

Havia também o Clube Tatuís, em Ipanema, onde, além das atividades esportivas, a grande atração eram as jam sessions. O violonista Candinho sempre tocava ali e volta e meia Tom Jobim aparecia para uma "canja". Também as serenatas noturnas nos barquinhos do Posto 6 e os arrastões no Posto 5 eram programas obrigatórios para eles.

Nas tardes de domingo, um grupo de músicos, entre eles Gusmão, Freddy Falcão, Durval Ferreira, Maurício Einhorn e Pecegueiro tocavam música moderna no Hotel América, na Rua das Laranjeiras. Os fins de semana musicais no Clube Leblon, com Eumir Deodato, Pecegueiro, Jayme Peres, Waldemar Dumbo e Ed Lincoln, era outro local de encontro entre diversos músicos que viriam a ser importantes nomes da Bossa Nova.

Menescal conheceu seu futuro parceiro Ronaldo Bôscoli numa reunião musical na casa do veterano compositor Breno Ferreira, autor de Andorinha Preta. Menescal era amigo do filho de Breno. Sérgio Ferreira, às vezes ia à casa do colega para observar o que faziam Breno e seus amigos. Menescal ia, olhava, gostava e aprendia. "Mas ainda não era a música que eu queria. Na verdade eu queria uma coisa que ainda não sabia o que era", lembra. Numa dessas reuniões, cansado da rodinha que se formara na sala, Menescal resolveu sair para pegar uma cuba-libre - a famosa mistura de rum com refrigerante, a bebida da Bossa Nova -, quando em outro aposento escutou um som diferente. "Era a música com que eu sonhava exatamente o que eu queria ouvir. Só aqueles acordes já me abriram a cabeça."

A música vinha da varanda. Curioso, Menescal chegou mais perto. Quem tocava era o violonista Elton Borges, e o jornalista Ronaldo Bôscoli cantava Fim de Noite, uma de suas primeiras composições com Chico Feitosa. Menescal ficou ali escutando, maravilhado. No dia seguinte, na casa de Nara, não parava de falar sobre a música. Mas ele não sabia nem o nome de Ronaldo e somente um ano mais tarde voltariam a se encontrar. Bôscoli passava na praia e foi abordado por Menescal, que o convidou a conhecer a turma na casa de Nora. Ronaldo concordou e disse que ia aparecer com um amigo, Chico Feitosa.

Na noite marcada, todos esperaram alvoroçados escutar a novidade. Mas o tempo passava e ninguém chegava. Já tinham perdido as esperanças, quando finalmente, já no fim da noite, chegaram Chico e Elton, o que bastou para Chico ser definitivamente apelidado de Chico Fim de Noite. Eles começaram a tocar, enquanto Nara Leão anotava rapidamente todas as músicas. A partir dali, começaram a se reunir não apenas para escutar, mas para produzir música. Logo Ronaldo Bôscoli e Nara Leão se tornaram namorados e noivos, numa história de amor que terminaria poucos anos mais tarde, quando Ronaldo se apaixonou pela cantora Maysa.

Chico Feitosa e Ronaldo Bôscoli se conheceram em 1954 e logo se tornaram parceiros. Fim de Noite foi apenas uma da série de composições criadas pelos dois no primeiro apartamento que dividiam, na Rua Otaviano Hudson, em Copacabana, que também faz parte da história da Bossa Nova. Ali moravam oficialmente Chico e Ronaldo, mas sempre haviam hóspedes circunstanciais, como o compositor paulista Caetano Zama, o pianista Pedrinho Mattar e Luiz Carlos Miéle.

Um dos mais ilustres foi o próprio João Gilberto, que chegou para passar alguns dias e acabou ficando meses. Mas na verdade nenhum deles se incomodava muito com aquilo, uma vez que eram invariavelmente despertados pelo violão de João Gilberto, que voltava sempre para o apartamento quando o dia já estava nascendo depois de passar a noite por caminhos desconhecidos e misteriosos.

Apesar de tijucano, Antonio Carlos Jobim era um típico jovem de Ipanema, onde vivia desde criança. Gostava de pegar onda no mar limpo de Ipanema e de nadar na Lagoa Rodrigo de Freitas. Adolescente, no início dos anos 40, começou a estudar piano com o excelente professor alemão Hans Joachim Koelireutter. Tom e Newton Mendonça, seu amigo de infância e futuro parceiro em hinos da Bossa Nova, como Samba de Uma Nota Só e Desafinado, já formavam grupinhos musicais com os amigos, nos intervalos entre o colégio e a praia.

Em 1946, Tom entrou para a Faculdade de Arquitetura, onde não chegou a ficar nem um ano, resolvendo seguir definitivamente a carreira de músico. Seu gosto musical variava dos populares Ary Barroso, Dorival Caymmi, Pixinguinha, Garoto, Noel Rosa e Lamartine Babo aos eruditos Vila-Lobos, Debussy, Ravel, Chopin, Bach e Beethoven. passando pelas grandes orquestras americanas.

Em 1949, já casado com sua primeira mulher, Teresa, Tom ganhava a vida tocando piano em casas noturnas da zona sul, como a Tudo Azul, o Mocambo, o Clube da Chave, o Acapulco e o Carroussel, entre outras. O maestro passou alguns anos trocando a noite pelo dia, conseguindo em 1952 um emprego de arranjador na gravadora Continental, como assistente do maestro Radamós Gnatalli. O salário era baixo, mas certamente melhor do que o que ganhava como pianista. Uma de suas funções era passar para a pauta composições de quem não sabia escrever música.

Mas Tom não abandonou a noite. Agora que não precisava mais dela para sobreviver, tocar na noite tornara-se um prazer. Para ele e, claro, para quem tinha o privilégio de ouvi-lo.

Apesar de trabalhar na Continental, foi na gravadora Sinter que Tom fez sua estréia como compositor. Em 1953, a Sinter lançou dois discos com composições suas: no primeiro, Maurici Moura cantava o samba canção Incerteza, de Tom e Newton Mendonça. No segundo, Ernani Filho interpretava Pensando em Você e Faz Uma Semana (esta em parceria com o baterista Juca Stockler). Pouco depois, Tom se transferiu para a gravadora Odeon, que seria responsável, alguns anos mais tarde, pelo lançamento do histórico LP Chega de Saudade, com João Gilberto.

Em Copacabana ficava a casa do compositor Lula Freire, cujo pai era um influente político brasileiro. O apartamento, no mesmo prédio da Rua Tonelero 180, onde morava o famoso político e jornalista Carlos Lacerda, era uma mistura inusitada de política e música.

"Você abria a porta da casa e encontrava o Baden Powell com o Chico Fim de Noite. Aí, entrava na outra sala e estava meu pai com o presidente Kubitschek, o senador Gilberto Marinho e o poeta Augusto Frederico Schmidt", lembra Lula. Antes do advento da Bossa Nova, o apartamento era um ponto de encontro dos amantes do jazz, principalmente do jazz west coast, que passava por seu apogeu nos anos 50.

Alguns dos freqüentadores da casa de Lula Freire eram Alberto Castilho, Luizinho Eça, os também pianistas Kumbuco e Roberto Ebert, Pedro Paulo, Marcio Paranhos, Domingos Jabuti, Bebeto, Pedrinho Hecksher, a vocalista Tecla e Paulinho Magalhães. Alguns não-músicos, como José Octávio Castro Neves, Elfio Carvalho e Roberto Canto (Irmão do futuro baixista Ricardo Canto), também eram habitues das sessões de jazz. Maria Helena, mãe de Lula, conhecedora de jazz e música clássica não só permitia o som que invadia as madrugadas como participava ativamente das reuniões. Stan Kenton, Chet Baker, Gerry Mulligan, Dave Brubeck, Shorty Rogers, Mel Tormé, George Shearing e Errol Garner eram ouvidos pela vizinhança não raramente, até o sol nascer.

Cuba-libres e cafezinhos eram servidos seguidamente por Arlete e Teresa, empregadas da casa, que também se consideravam "da música" e vez por outra apareciam na sala com o pretexto de alimentar a reunião, mas o que queriam mesmo era ouvir a música do grupo."Elas sentavam, fechavam os olhos e ficavam só curtindo", lembra Lula. Muitos anos depois dessa época, por volta de 1965, em pleno regime de exceção, ocorreu um fato engraçado naquele apartamento da Rua Tonelero.

Numa noite de música, o violonista Candinho reparou que, pelo lado de fora da janela, quase na altura do teto, vindo de um andar superior, estava pendurado um microfone, obviamente destinado a gravar o que por ali se passava. Candinho chamou o senador Victorino, pai de Lula, homem de temperamento altamente explosivo, e apontou para o microfone. O senador mandou buscar uma vassoura e preparou-se para desferir uma violenta vassourada no microfone. "Vou estourar os ouvidos deste sujeito que está bisbilhotando minha casa."

Felizmente foi impedido por Lula, que avisou ao pai que o fio do microfone vinha do apartamento de um vizinho amigo, do 10º andar, o médico Dr. Otávio Dreux. O senador ligou imediatamente para a casa do Dr. Dreux, sendo atendido pelo filho mais moço do amigo, Chico, que muito sem jeito explicou que, como adorava Bossa Nova, resolvera gravar o som que saía pela janela do apartamento. Desfeita a suspeita da incômoda presença do SNI em sua casa, o senador riu muito e autorizou formalmente a gravação "externa" da noite, que correu tranqüila, cheia de música e com um inusitado microfone pendurado do lado de fora da janela.

Quando Lula foi morar em Ipanema, na Rua Joaquim Nabuco, a efervescência cultural continuou. Sérgio Porto, freqüentador assíduo do apartamento, dizia que ali era o último bar aberto do Rio. Naquele tempo, poucos bares, como o Sacha's e a Fiorentina, abriam até mais tarde, mas até estes fechavam a certa hora da madrugada. Vinicius de Moraes, notívago de nascença, pedia que Lula sempre guardasse para ele uma cerveja na geladeira. O compositor lembra que várias vezes, quando todos da casa já dormiam, Vinícius tocava a campainha, a empregada abria a porta e ele entrava, sentava, tomava sua cerveja, comia o que encontrava na geladeira e ia embora.

Neste apartamento aconteciam fatos bizarros que bem traduzem o espírito irreverente que dominava a época. Certa noite, Lula oferecia um jantar para alguns amigos. A porta do apartamento estava aberta e de repente entrou um sujeito baixinho e careca que, sem falar com ninguém, ignorando a presença de todos, foi direto para o piano e começou a tocar. Todos estranharam, mas Lula resolveu que deveriam igualmente ignorar a estranha figura e continuar a jantar normalmente, como se fosse a coisa mais natural do mundo alguém entrar pela casa adentro e, sem falar com ninguém, começar o tocar piano. Quatro músicas depois, ouviram uma gargalhada do lado de fora. Logo adentraram a caso o empresário paulista Olavo Fontoura, o compositor americano Jimmy Van Heusen e suas mulheres.

Ainda rindo muito, Olavo explicou: o baixinho careca era ninguém menos do que Sammy Cahn, grande compositor americano, responsável, entre outras coisas, por alguns dos maiores sucessos de Frank Sinatra, como All the Way, Three Coins In a Fountam, Be My Love, Call Me lrresponsable, Time After Time, Chicago, Come Fly With Me etc. Sammy tornou-se grande amigo de Lula e esteve diversas vezes no Rio, sendo grande divulgador da música brasileira nos Estados Unidos.

Enquanto isso, as parcerias se multiplicavam. Apresentados por Roberto Menescal, Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli logo começaram a compor juntos. Se é Tarde Me Perdoa e Lobo Bobo foram algumas de suas primeiras composições. Bôscoli continuava igualmente compondo com Chico Feitosa. São desta época Sente, Complicação e Sei. Os talentosos Irmãos Castro Neves, Mário (piano), Oscar (violão), Léo (bateria) e Iko (contrabaixo), formavam um conjunto, o American Jazz Combo.

Oscar compôs com Ronaldo Não Faz Assim, uma das primeiras canções da Bossa Nova, e depois marcou definitivamente sua presença através de diversas composições com o excelente letrista Lucercy Fiorini. Em 1957, Roberto Menescal estava em casa, comemorando as bodas de prata de seus pais. Um rapaz que ele não conhecia entrou no apartamento perguntando se ele não teria um violão para tocar. Apresentou-se como João Gilberto e disse que Edinho, do Trio Irakitan, tinha lhe dado o endereço de Menescal.

João tinha voltado há pouco tempo da Bahia e precisava mostrar a alguém o que havia criado. Menescal, que já tinha ouvido falar de João, imediatamente levou-o para seu quarto. João pegou o violão e mostrou Ô-ba-la-lá, composição sua e uma das primeiras que continham a famosa batida diferente. Impressionado, Menescal saiu na mesma hora com ele para mostrar a novidade aos amigos.

A primeira parada foi no apartamento de Bôscoli e Chico Feitosa, onde João, além de Ô-ba-la-lá, mostrou Bim-bom e tocou vários sambas. Da Rua Otaviano Hudson foram para a casa de Nara, já em caravana, onde mais uma vez João encantou a todos com seu jeito revolucionário de tocar violão, que libertava a todos do samba quadrado que até então era o que de melhor se produzia na música brasileira. A partir de então, João Gilberto passou não só a fazer parte da turma, mas também a liderar espiritualmente o movimento: todo mundo queria aprender a tocar como ele. Um dos poucos que conseguiu ter aulas com o próprio João Gilberto foi Chico Feitosa, na época em que João esteve hospedado em sua casa.

Os encontros musicais começaram a se multiplicar, tanto nas intermináveis reuniões para as quais eram chamados, e onde João Gilberto era sempre o grande mito (todas as festas prometiam a presença do violonista), quanto nos bares e boates. Nestes, normalmente, os músicos não ganhavam para tocar, a não ser doses gratuitas de bebida durante toda a noite.

Em 1954, um dos locais mais disputados na noite era a boate do Hotel Plaza, na Avenida Princesa Isabel, em Copacabana. Oficialmente, Johnny Alf era o pianista e já tocava suas próprias composições, como Rapaz de Bem e Céu e Mar. Os freqüentadores mais assíduos da boate eram Tom Jobim, João Donato, Baden Powell, Dolores Duran, Carlos Lyra e Sylvinha Teles, entre outros, e o fim da noite era recheado de intermináveis "canjas". Alf, um dos maiores precursores da Bossa Nova, mudou-se para São Paulo em 1955, deixando órfãos seus admiradores.

O pianista Luizinho Eça depois de passar uma época estudando piano clássico em Viena, juntamente com o pianista Ney Salgado, acabou indo tocar profissionalmente no Bar do Plaza, com o então baixista Lincoln e o violonista Paulo Ney. Como era menor de idade, Luizinho trabalhava garantido por um delegado que adorava música e permitia que o pianista se apresentasse na boate, desde que este concordasse em acompanhá-lo ao piano enquanto cantava uns sambas-canções. Luizinho, espertamente, não só atendia ao pedido como ensinava ao delegado novas canções, "mais recomendadas para sua voz".

Certa noite, Lula Freire e seus colegas de colégio, Carlos Augusto Vieira e Romualdo Pereira, todos também menores de idade, foram para o Bar do Plaza para ouvir Luizinho, que era amigo de Lula desde garoto. O leão de chácara do Plaza, o lutador Waldemar barrou os três, alegando estar na boate o tal delegado. Romualdo apresentou-se como sobrinho do delegado, e o segurança não só permitiu que os três entrassem como avisou ao delegado que os sobrinhos dele haviam chegado. O homem estava tão feliz vendo que a casa estava ainda com mais clientes para "ouvi-lo cantar" que recebeu os sobrinhos com sorrisos e abraços e ainda acabou pagando a conta das inocentes cuba-libres consumidas pelos três.

O encontro de João Gilberto e Tom Jobim foi sugestão do fotógrafo Chico Pereira, que aconselhou João a procurar o maestro. Eles já se conheciam superficialmente das noitadas em Copacabana e João resolveu bater na porta de Tom, na Rua Silva em Ipanema. Apresentou a ele Bim-Bom e Ôba-la-lá.

Tom, que como todos os outros também havia se impressionado com a nova batida de violão, mostrou a João algumas composições suas, entre elas Chega de Saudade, parceria com Vinícius e um dos temas escolhidos para o disco Canção do Amor Demais, que estava sendo preparado para Elizeth Cardoso.

Festejado como o disco que inaugurou a Bossa Nova, Canção do Amor Demais trazia belíssimas composições inéditas de Tom e Vinicius interpretadas pela "Divina". João Gilberto acompanhou Elizeth na gravação da faixa Outra Vez, deixando registrada pela primeira vez em disco sua batida inovadora.

Alguns meses depois, João já entrava em estúdio para gravar o histórico 78 rpm Chega de Saudade, com a música de Tom e Vinícius de um lado e a sua Bim-bom do outro.

A gravação de Chega de Saudade foi uma verdadeira novela. Cheio de exigências, como o pedido de um microfone para a voz e outro para o violão, inédito na época, João Gilberto conseguiu enlouquecer técnicos e músicos. Interrompia a todo instante a gravação, ora dizendo que os músicos haviam errado, ora que o som não estava bom. Mas o disco acabou saindo com arranjos de Tom Jobim, que também tocava o piano.

Ronaldo Bôscoli trabalhava como repórter esportivo na Última Hora, e sua irmã Lila era casada com Vinícius de Moraes. O já consagrado poeta ocupava o cargo de vice-cônsul na embaixada do Brasil em Paris.

Em 1956, Vinícius voltou de Paris com o rascunho do libreto de Orfeu da Conceição, uma tragédia de inspiração grega, toda em versos, que ele ambientara ao carnaval carioca e pretendia montar no Rio de Janeiro.

A chegada do poeta ao Rio é tida como um dos principais marcos da história da Bossa Nova. Libreto pronto, Vinícius começou a procurar um parceiro para as canções da peça. Ele já tivera a oportunidade de conhecer Tom Jobim no famoso Clube da Chave, em 1953, pouco antes de ir ocupar sua função na embaixada de Paris.

No Clube, cada um dos 50 sócios tinha uma chave que abria o armário onde ficava guardada sua própria garrafa de uísque. Foi lá que Vinícius ouviu Tom pela primeira vez, e ficou impressionado com o talento do jovem pianista. Chico Feitosa, que a esta altura já se transformara em secretário particular da poeta, e Ronaldo sugeriram que ele convidasse Tom para fazer as músicas da peça. Vinicius ficou de pensar.

No dia seguinte, na Villarino, uma uisqueria no centro do Rio, reduto de boêmios e intelectuais, como Paulo Mendes Campos, Antônio Maria, Sérgio Porto, Fernando Lobo, Dorival Caymmi, Reynaldo Dias Leme, Carlos Drummond de Andrade, Dolores Duran e Heitor Vila-Lobos, entre muitos outros, o jornalista Lúcio Rangel apresentou formalmente o poeta ao compositor, que seria um de seus grandes parceiros (Continua em: A história da Bossa Nova - Parte 2).

Fonte: Revista Caras - Edição Especial de Junho de 1996.

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