quarta-feira, março 07, 2012

Noel, o cantor mais expressivo da MPB

Pode-se dizer, com segurança absoluta, que Noel Rosa foi um dos maiores cultores de nossa música popular.

Quando se escrever uma história certa, precisa e bem analisada, da música ligeira carioca nas suas diversas modalidades denominadas, genericamente, samba e marcha, mas que dentro do ritmo ou andamento podem ser classificadas: samba-canção, samba-corrido, chula, batucada, etc., há de aparecer ao lado de Sinhô, Caninha, Donga, Pixinguinha estes precursores — o nome de Noel Rosa, como elemento destacado da nova geração onde se conta Lamartine Babo, Ary Barroso, Almirante, Nássara, João de Barro, Alberto Ribeiro e poucos outros capazes de glosar, com espírito de letra e música, um mote popular.

Os primeiros, os da antiga seleção de sambistas, não foram expressões próprias na cultura da música popular porque eles não traziam nos seus descantes de modo positivo, as coisas, os fatos, os modismos do ambiente em que viviam.

Eram muito influenciados pelo africanismo dos seus mentores: Hilário Ferreira, Germano (o do “Macaco é outro”), o velho Marinho (pai de Getúlio, Amor), a Tia Assiata e mais alguns filhos de africanos que ambientaram ao nosso meio o jongo dos “tios minas” como derivante musical dos pontos de candomblés.

Só mais tarde, Sinhô, João da Baiana, Caninha, Getúlio Marinho, Pixinguinha, Donga e poucos outros foram se personalizando, criando um estro próprio, embora apegados ainda à escola negra de onde vinham.

Passemos, numa revista ligeira, algumas das suas produções e verificaremos o elemento “afro” sempre conduzindo-os:

o cu-ba-bá, gelê
Vá para escola, aprender a lê...
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“Eu só teria medo
Se não tivesse “bom santo”
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Mas eu tenho fé no meu orixá ...
Que não há de deixá...
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“Chora na macumba, o gongá

Além de outras que, rareando, pouco a pouco apareciam ainda com “bom santo”, despacho, macumba, etc.

Quando surgiu a nova corrente, criando uma escola diferente para o samba, fazendo-o canção brejeira das ruas, mais que simples toadas, Noel Rosa veio à frente e nesse posto ficou até quando a morte o veio surpreender.

Nesta hora em que os sambistas e ainda os marchistas, na feliz desinência de Orestes Barbosa, são arrolados e quiçá reconhecidos como compositores, mas que os afeitos às rodas de samba os classificam como tiradores de samba, porque era esse o termo usual dos morros para se designar os que arranjavam facilmente melodia e versos para serem entoados, Noel Rosa deve ser lembrado como compositor, compositor na verdadeira acepção do vocábulo.

Noel Rosa foi compositor porque era capaz de decompor e dizer a razão dos elementos que punha em suas composições. Não era um desses “com jeito pra coisa” que, às vezes, e muitas, são felizes nas suas produções.

Não! Noel Rosa conduzia, punha capricho nos seus sambas, burilava o seu estro. E quando a popularidade os aureolava ele não se surpreendia porque era com esse fito que se esmerava em fazê-los. Dava-se tão-somente, por bem pago.

Atestam o seu valor todas as composições da enorme, quão seleta bagagem que ele logrou fazer. O Com que roupa?, Palpite infeliz, Pra esquecer, Eu vou pra Vila e tantos outros que seria longo enumerar e cujos títulos não me ocorrem. Tiveram, todos, aquela marca de ironia e sátira, imbuidas num humor leve a refletir a filosofia espontânea do autor.

Parece-nos que foi César Ladeira, anunciando-o, certa vez, ao microfone, quem o cognominou o Filósofo do Samba. E vinha bem, à feição, esse apelido. Ele foi bem um símile de Diógenes, cheio de saber, a residir num tonel, sem preocupações outras do que viver a vida.

Ele poderia, talvez se o quisesse, ser um poeta e rabiscar versos pernósticos, rebuscados, para cantar os mesmos motivos dos seus sambas.

Com que roupa, eu vou
Ao samba que você me convidou?!

Não é isto a expressão despretensiosa, espontânea, que um menestrel cheio de requintes adornaria, talvez assim, para dizê-la com foros de poesia acadêmica.

Com qual indumentária, eu vou
À festa que teu convite me honrou?

E foi ele, sempre assim. Smples, sem circunlóquios, cantando de modo direto a sua ironia, musicando a sua filosofia.

Qual o malandro do morro que pedia o enterrassem no terreiro, deixando um braço de fora para tocar o pandeiro, ou que expressava a sua última vontade:

Quando eu morrer, não quero choro, nem nada,
Quero um belo samba, ao romper da madrugada”.

Ele pediu também, como “bacharel” saído da mesma escola:

Quando eu morrer não quero choro nem vela.
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela”.

E ele foi satisfeito. Ficou sobre o seu túmulo essa fita amarela da saudade, com o nome dela gravado. Mas não só com o nome dela, da amada. Gravou-se também o nome da outra. “Dela”. Dessa porção de admiradores que viu calar o cantor querido, o que não tinha medo de bambas por ser, na roda do samba, um “bacharel”.

(Revista da Música Popular, nº 3 — Dez. — 1954)
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Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.

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