— "O tango (1) argentino é grande, mas o samba é maior" — Palavras de Neiva Gomes (2) a CARIOCA.
"A gente lê nos olhos de Neiva Gomes a nostalgia das coxilhas gaúchas. Eles são grandes, e límpidos; parecem espelhar a imensidão verde dos pampas. Sua voz sugere o falar lento e compassado dos peões que pelas noites frias rio-grandenses ocupam sob as estrelas, contando coloridamente os "causos", entre um pedaço vigoroso de churrasco e uma cuia de chimarrão "bom e amargo como a vida".
Neiva nasceu em Porto Alegre e aos cinco anos de idade já deliciava os seus com a interpretação dos sambas e marchas da época. Foi com essa idade que ela se apresentou em público pela primeira vez e com grande sucesso, no Teatro Municipal de sua terra. Depois continuou na carreira clássica das meninas que cantam: participava de festivais beneficentes, cantava em reuniões comemorativas de aniversários familiares, etc.
Essa peregrinação pelo vários ambientes ouvintes foi a grande escola de Neiva Gomes. Ela teve como professor de estilo todo o público rio-grandense, esse público de alma lírica por excelência.
Por isto, por ter formado seu espírito musical entre os gaúchos, Neiva é uma cantora popular diferente de outras cantoras populares que atuam no Rio. O samba, na sua voz, ganha uma inflexão singular que, sem macular a graça original do seu ritmo, lhe produz mesmo um certo enriquecimento. É um samba mais dolente, como se fosse cantado pela sanfona (3), que é o instrumento característico dos campeiros sulinos.
A grande e atávica paixão que Neiva sente pelo tango argentino, gênero musical cheio de afinidades com o folclore gaúcho, será, também, uma das causas desse gracioso retardamento no tempo desse "samba gaúcho". Neiva Gomes é uma apaixonada do tango argentino mas sobretudo adora a nossa música.
— O tango argentino — disse-nos ela — é uma das músicas que mais gosto. Ele deve refletir fielmente a psicologia do povo irmão, tanto me impressiona. Tem um ritmo que permite ao cantor uma quase criação de movimento; o "bandoneón", na sua voluptuosa elasticidade, é a imagem material do tango; ele é mais plasmável que qualquer outra dança. Considero-o como um gênero de música mais aristocrática que popular.
O samba e a marcha — continua — são mais do povo; à vivacidade do movimento devem a sua colossal popularidade. Um só dos elementos formadores dessas músicas, o ritmo, é o fator principal dessa coisa absoluta que se chama Carnaval Carioca. A gente suburbana, armada de caixas de charutos, latas de querosene e chapéus de palha forma orquestras puramente rítmicas, de uma riqueza extraordinária, malgrado a ausência da melodia. Reunida esta ao ritmo, temos então a dança brasileira que não sei explicar porque ainda não é a mais usada em todo o mundo, tal o seu poder sugestivo de movimentação coreográfica.
— Quais os outros gêneros musicais que aprecia?
— Não há música feia, quando ela, sendo popular, reflete essa coisa sagrada que é a alma dos povos. Por isso gosto da música de todo o mundo, que é uma espécie de consciência universal. Sinto, porém, que sou uma cantora popular; admirando imensamente os gêneros musicais chamados "sérios", não posso executá-los porque me falta o virtuosismo vocal indispensável.
— Já tem cantado em outros lugares do Brasil, além do seu estado natal e do Rio?
— Sim. Já cantei em Minas Gerais. Ainda não tive oportunidade para cantar em São Paulo, o que muito desejo.
E porque Neiva além de ser um ótima cantora é uma criatura bonita, perguntamos:
— Por que ainda não entrou para o cinema?
— Falta de ocasião. Eu gostaria imenso de figurar em uma fita.
Donde se conclui que se esta entrevista não tivesse (mas tem) nenhum interesse, teria esse, notável: o de apontar aos nossos diretores cinematográficos um elemento que no Brasil prestigiaria a sétima arte."
Notas: (1) O termo “tango” não é exclusivo de um ritmo que veio da
Argentina e tomou conta do mundo a partir dos anos 1920. Há tangos e
“tanguinhos” brasileiros, de autores, como por exemplo, de Ernesto
Nazareth e Marcelo Tupinambá. Daí a expressão “o tango argentino” neste artigo de 1937; (2) Infelizmente, ainda não possuo dados suficientes para publicar uma biografia sobre essa linda cantora gaúcha; (3) “Sanfona” foi o termo usado erroneamente pelo repórter. No Sul do Brasil são usadas, para este instrumento, as palavras “acordeom”, “acordeona” ou “gaita”.
Fonte: Revista semanal "Carioca", de 31/07/1937.
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