sexta-feira, dezembro 29, 2017

Adoniran Barbosa - O Cronista


As crianças choravam. Os cães corriam e latiam. Sem saber direito o que fazer, as pessoas tentavam juntar os poucos pertences. Enquanto isso, os tratores se preparavam para demolir mais um cortiço. Nada podia atrapalhar o crescimento de São Paulo, a cidade que nunca pôde parar. Do outro lado da rua, alguém havia interrompido a caminhada e observava, estarrecido, a cena que se tornava cada vez mais comum. 


Da desgraça e da tristeza, um samba nascia: "Se o sinhô não tá lembrado / dá licença de contá / que aqui onde agora está / esse edifício arto, / era uma casa véia / um palacete assobradado. / Foi aqui seu moço, / que eu Mato Grosso e Joca / construímos nossa maloca, / mas um dia nós nem pode se alembrá / veio os home co'as ferramenta / o dono mandô derrubá".

Saudosa Maloca, primeiro grande sucesso de Adoniran Barbosa como compositor, foi criada em uma única noite, enquanto, ainda chocado com o despejo visto horas antes, passeava pelas calçadas já escuras da cidade. A rua era a verdadeira casa de sua obra, síntese de sotaques, de entonações próprias das migrações que sempre povoaram São Paulo. O compositor transformava a experiência do boêmio em música. As palavras do povo, o modo de falar dos mais humildes, tudo encadeado de maneira a criar poesia, novas sonoridades. Nas esquinas de São Paulo, ele encontrava a linguagem em seu estado puro, contando a realidade social por meio de um português vivo e cotidiano. Um português que preferia Marvina a Malvina, muié a mulher, que falava nóis em vez de dizer nós.

Quando Adoniran Barbosa chegou a São Paulo, o disco e o rádio desenvolviam-se rapidamente. O rádio, que na década de 20 surgia com características amadoras e uma programação erudita, nos anos 30 mudava totalmente a sua conduta. A música, antes considerada folclórica e inferior, passava a ter status de popular e começava a ocupar cada vez mais espaço na programação. Em 1932, com a legislação da publicidade radiofônica, o meio se profissionalizava e se popularizava.

Na capital paulista, Assis Chateaubriand fundava, em 37, a Rádio Tupi, unindo o novo meio ao jornal (Emissoras e Diários Associados). Mas a grande líder de audiência era a Record, a primeira emissora do país a constituir um elenco fixo. E nele se encontrava de tudo. Cantores de rua e de circo, maestros com formação acadêmica, "maestros de assobio", vendedores, atores, aventureiros sem profissão, intelectuais. O rádio era então o centro de todo sistema de comunicação de massa que começava a se formar.

Nesse meio se movimentou Adoniran Barbosa, tanto como humorista quanto como sambista. Mas, nos dois casos, procurando esconder a dor de ver as mudanças da cidade que tanto amava, de ver o fim dos laços de solidariedade entre vizinhos e a destruição dos espaços urbanos que possibilitavam o encontro e a festa entre as pessoas.

Todo o processo de criação de Adoniran era acompanhado de perto e incentivado pelo amigo e parceiro Oswaldo Molles. Era ele quem enviava Adoniran para longos passeios pelas redondezas, para observar e extrair histórias para seus programas. Também foi Molles quem deu chance para Adoniran interpretar diversos tipos. A parceria dos dois deu tão certo que, em 1946, a imprensa chamava Adoniran de "o milionário criador de tipos" e, Molles, "o milionário criador de programas". Nesse ano, o compositor fazia nada menos do que dezesseis interpretações diferentes.

Com o passar dos anos, o envolvimento de Adoniran com o rádio se tornou tão grande que, em abril de 53, sua agenda era a seguinte: segunda, interpretava o humilde marido Confúcio das Dores em Solteiro é melhor; na terça, trabalhava no programa Convite ao samba; na quarta, em Show Castelo e Vale o quanto pesa; na quinta, em Presença do Trio; na sexta, em O crime não compensa; no sábado, em Sítio do Bicho de Pé e no domingo, em A grande filmagem. Nesse último, trabalhava ao lado de nomes como Anselmo Duarte, Ilka Soares, além de duas orquestras e cantores, tudo sob a direção de Blota Jr.

Em 1955, após o lançamento de Saudosa Maloca, estreou como o personagem Charutinho, em Histórias das Malocas, radio-contos escritos e dirigidos por Oswaldo Molles. O ex-mascate, ex-pintor de paredes e ex-quase tudo transformava-se no desocupado malandro morador do Morro do Piolho, pronto para mais uma viagem costeira pelo mundo dos humildes, como definia o próprio programa. Apesar de uma certa idealização das malocas, História das Malocas não mostrava um passado belo, mas sim um presente degradado: "Esta é a minha maloca, manja? Mais esburacada que tamborim de escola de samba em Quarta-feira de Cinzas. Onde a gente enfia a mão no armário e encontra o céu. Onde o chuveiro é o buraco da goteira. Não tem água de zinco. Às veis a gente toma banho de bacia e se enxuga com a toalha do vento. E quando não tem água a gente se enxuga antes de tomá banho", falava Charutinho.

As críticas sociais eram constantes. Como no episódio em que a comunidade do Morro do PioIho decide fazer uma eleição e a urna é roubada. Ou em outro, em que os moradores resolvem sair para procurar emprego e só encontram um. Para ocupar essa vaga, escolhem Charutinho, o mais preguiçoso e vadio da turma. Já no departamento pessoal da empresa, o malandro é obrigado a um ir e vir sem fim, trazendo atestados, documentos e vacinas. "Eu tenho que tirá tanta coisa pra trabaiá, que eu vô boquejá pa turma do Morro, pa vê se por motível das dificurdádias..." Ajudado pelo pessoal do Morro, ele finalmente consegue ser empregado. No primeiro dia de trabalho, todos querem levar Charutinho até a porta da fábrica. Lá, a confusão: o pessoal é proibido de entrar e Charutinho, revoltado, faz um inflamado discurso e é demitido. A crítica não é contra o trabalho, mas contra o sistema que o transforma em algo sombrio e sem vida, longe da festa e da diversão.

É impossível separar o radioator do compositor. Se a História das Malocas surgiu a partir de uma de suas músicas, seus sambas se embebiam no universo do programa de rádio.

A partir de 1955, o Brasil se abria para os bens de capital estrangeiros e acelerava o processo de industrialização. Era época de euforia, de "50 anos em 5", era o governo JK. Juscelino Kubitschek queria a qualquer custo modernizar a produção, ampliando a indústria pesada e o setor de bens de consumo duráveis. A sociedade se motorizava e a economia nacional era cada vez mais integrada aos grandes monopólios internacionais.

As mudanças na paisagem do centro de São Paulo eram visíveis para qualquer um. Especialmente para Adoniran, acostumado a andar diariamente por todas aquelas ruas, de boteco em boteco, entre um traguinho de pinga, um cigarro e um sambinha com os companheiros. Já não existiam o romantismo e a poesia dos primeiros tempos, o progresso chegava, arrastando tudo o que estivesse em seu caminho. São Paulo já não sabia mais adormecer.

Não que aquilo deixasse o compositor triste. Ele entendia que novos tempos estavam chegando, que os tipos que cantara em tantos sambas e que encarnara em tantos programas de rádio em pouco tempo deixariam de existir. "Progréssio / progréssio / eu sempre escuitei falá...", dizia uma de suas músicas. Mas também podia se sentir recompensado: graças a ele o passado estava eternizado, com seus Arnestos, com as saudades de destruídas malocas, com o trem que, às onze horas, deveria levar o namorado de volta ao Jaçanã.

Adoniran Barbosa viu todas as mudanças que a cidade sofreu. E ninguém soube cantá-las como ele, sempre a partir do ponto de vista dos excluídos, dos marginais, dos párias da sociedade. Ele só entendia a composição assim: como a voz dos mais humildes, com uma voz que era a sua mais do que de ninguém. Ele que nunca cursara mais do que a terceira série do primário e que, antes de tentar ser artista, trabalhara em diversas profissões. Ele foi percebendo e vivendo as mudanças por que passava a cidade. Em 1951, gravaria Saudosa Maloca, pela Continental. A música, porém, só faria sucesso em 55, na interpretação dos Demônios da Garoa, que também gravaram o Samba do Arnesto. Aos poucos, com o reforço dos Demônios, sua vida artística foi evoluindo. Ainda em 55, duas reportagens publicadas na Revista do Rádio traziam os títulos: "Só faltava fazer sambas... e Adoniran também fez" e "Humorista faz músicas tristes".

A fama chegava tarde na vida do compositor; o dinheiro, no entanto, não chegaria nunca. Por um lado, porque Adoniran continuava ganhando mal na Record e, por outro, porque não dispensava uma pinga no fim do dia, continuando tão boêmio e mulherengo quanto no início da carreira. Uma das alternativas para aumentar o orçamento no fim do mês foi levar a trupe radiofônica para os circos da periferia da cidade. Matilde, sua esposa, contava que ela era a responsável por depositar o dinheiro arrecadado durante aqueles espetáculos circenses: uma enorme quantidade de notas miúdas, sujas, que mais de uma vez o caixa bancário se negou a aceitar. "Acontece que a gente era muito pobre, porque ninguém fazia shows como hoje. Adoniran só cantava em circo e, de vez em quando, no Cine-Teatro Colombo, lá no Brás, ou no Coliseu, no Largo do Arouche", lembra a companheira do compositor.

O impulso dado na carreira de Adoniran e o sucesso de História das Malocas dá uma diminuída a partir de 1958. A audiência do programa começa a cair e o samba passa a sofrer a concorrência de um novo movimento musical, marcado pela influência do jazz norte-americano, que logo ficaria conhecido como bossa nova. João Gilberto gravava Chega de saudade e transformava o cenário da música brasileira.

Apesar do clima pouco favorável, Adoniran continuava com suas andanças e suas composições. Músicas que vão registrando passo a passo a vida da maloca, que também vai acompanhando o ritmo imposto pelo progresso. Em 1959, Abrigo de Vagabundo contava o início de uma nova maloca, perto da Mooca. Porém, em 1969, vem Despejo na favela. "Dispois o que eu tenho / É tão pouca mudança / É tão pequena / Que cabe no bolso", diz o morador diante do oficial que Ihe mostra a ordem de despejo.

Mas é em 65 que Adoniran dá mais uma guinada e volta a caminhar pelos trilhos do sucesso: é a vez de Trem das Onze. Lançada no meio do ano pelos Demônios da Garoa, a música chegou forte no Carnaval do ano seguinte, tomando conta do povo nas ruas, cantada com entusiasmo pelos foliões.

Cada vez mais respeitado como compositor, Adoniran vinha enfrentando problemas em sua carreira de radioator desde 64, com o suicídio do amigo e parceiro Oswaldo Molles. Era o fim da História das Malocas e das aventuras de Charutinho, que sairiam do ar definitivamente em 68. Por ter horror a pequenas plateias, o artista também já quase não fazia mais shows em circos - estes não mais atraiam o mesmo público de antigamente.

Adoniran passou a ser marginalizado na Record. Todos os dias chegava no trabalho, procurava seu nome na escalação do dia e não encontrava nada. Sem ter o que fazer, ia para o bar e ficava papeando. Novas histórias, novas músicas. Compor passou a ser sua grande meta. E, na sua obra, dois bairros paulistanos se destacavam: o Brás e o Bixiga. O primeiro, com suas casas velhas, seus cortiços superpovoados e as ruas em franca decadência. O Bixiga, com as cantinas italianas, o clima camarada e amigo, o lugar onde Adoniran reencontrava suas origens. Suas músicas se tornavam cada vez mais reportagens, crônicas de costumes e de época.

Com o passar dos anos, já não podia mais sair à noite. Anos de garoa noturna, sem chapéu e sem casaco, lhe trouxeram um enfisema pulmonar que o acompanhou até o fim da vida. Reclamava: "Eu que sempre fui um homem das ruas quase não saio mais de casa". Aos poucos, a noite deixou de lhe pertencer. Cada vez era mais difícil criar coisas novas. E as composições antigas aos poucos iam sendo deixadas de lado pelas rádios, preocupadas em tocar bossa nova e depois o iê-iêiê. Isso também era motivo de mágoa: "Por que não tocam mais minhas músicas? Afinal, todos dizem que sou um bom compositor", queixava-se às vezes.

Todos esses inconvenientes tumultuaram os últimos anos de vida de Adoniran Barbosa. Em entrevista ao jornal Diário Popular, declararia: "Nada meu foi conseguido com facilidade. Tudo parecia como se eu quisesse entrar num elevador e, embora havendo lugar, o cabineiro que não ia com a minha cara logo dizia: Tá lotado...". Persistência que finalmente lhe trouxe o reconhecimento merecido. Tardio, especialmente para quem sempre lutou por uma chance de brilhar. Mas não menos saboreado por isso.

Quando começou a ser chamado para entrevistas e outras homenagens, em meados da década de 70, não pensava duas vezes antes de aceitar. Gostava da popularidade, dos refletores das televisões, e de estar em evidência. Era assim com 20 anos de idade, foi assim aos quase 70. Apesar de ainda reclamar da demora em vencer como artista, dizia-se satisfeito: "Eu sou um homem feliz. Fiz tudo o que quis na vida, mesmo com atraso... Só não fiz teatro porque agora já não tenho mais coragem. O teatro é duro, tem que ser cara a cara com o público... Mas fiz novela, e é uma parada, pois a gente tem que chegar cedinho, cinco, seis horas da manhã, e não se sabe a que horas sai, nem se almoça ou janta... É trabalho para leão. Ainda mais para mim, que sempre gostei da madrugada, não dá certo, pois assim eu não durmo... Eu gosto de fazer publicidade, quando me pagam direitinho".

Com os anos, o enfisema pulmonar que o maltratava foi piorando. Mesmo assim, queria continuar andando, queria ver o Carnaval, o samba e o povo nas ruas. Em 82, após algumas internações, veio a caminhada final. Adoniran morreu num hospital, na avenida Santo Amaro zona sul de São Paulo, com Matilde sempre a seu lado. Imortalizado em sons e em imagens de uma música que continua cantando com humor as desgraças do dia-a-dia. Atual sempre. A cidade que ele retratou não é mais a mesma, mas a dor e a miséria humanas continuam iguais.

Veja também:

Adoniran Barbosa - Biografia

Adoniran Barbosa - Sambas de Esquinas

Adoniran Barbosa - Algumas letras, cifras e gravações


Fonte: MPB Compositores Vol. 7 - Adoniran Barbosa - Editora Globo - 1996.

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