terça-feira, dezembro 26, 2017

Noel - O Feitiço da Vila


"Vila Isabel veste luto/ pelas esquinas escuto / violões em funeral/ choram bordões choram primas/ soluçam todas as rimas/ numa saudade imortal/ pelas ruas escondida/ cheia de crepes vestida/ a lua fica a chorar/ e por onde a lua chora/ goteja, goteja agora/ nos oitis do Boulevard/ adeus cigarra vadia/ que em toda a sua agonia/ cantava para morrer ..."


("Violões em funeral" - Sílvio Caldas/Sebastião Fonseca).

Noel Rosa era um pândego, quase um humorista, com suas letras irônicas, sarcásticas, quase satíricas. Nas décadas de 20 e 30, ele alegrará o bairro de Vila Isabel, a cidade do Rio de Janeiro e o Brasil. Sua música inovará e, ainda assim, será aceita até pelos conservadores, que não resistirão e deixarão um sorriso, ainda que leve, ir se formando nos lábios, quando o rádio tocar Gago Apaixonado, Que horas são? ou Com que roupa?.

Será um compositor popular, mas, talvez, a figura que melhor se encaixe a ele seja a de um palhaço. Palhaço daqueles que fazem questão de se maquiar colocando uma lágrima no rosto e, a partir dela, ir quebrando lentamente as resistências, ir conduzindo a imaginação de quem ouve, até que surja o sorriso.

A lágrima de Noel sempre esteve estampada em sua face. Surgiu em seu parto: uma operação difícil, resolvida a fórceps, que mobilizou dois médicos e teve como principal consequência uma fratura no maxilar inferior do bebê. Mas uma fratura que não foi percebida de imediato e que só seria notada meses depois, passado tempo demais para uma correção definitiva. A criança ficará marcada para o resto da vida. Porém, mais profunda que a deformação física, será a de formação no espírito. Noel carregará um grande complexo. A linha reta que une seu pescoço ao lábio inferior, quase sem a presença do queixo, será responsável por várias amarguras que o acompanharão por todos os caminhos da vida.

Nesse caminhos, Noel Rosa passará inúmeras vezes pelo bulevar 28 de setembro. Em 1932, esta já é a principal rua do bairro de Vila Isabel, zona norte do Rio de Janeiro. Noel não passa despercebido. Ele tem as costas ligeiramente encurvadas, está sempre acompanhado de um violão e é assim que as pessoas que estão nos bares, nos botequins e nas portas de casas o reconhecem e o cumprimentam. E ele pára para conversar e alonga o tempo do trajeto, que o leva até o ponto do bonde e, de lá, para o Café Nice, no centro, ou para os bares e prostíbulos da Lapa ou do Mangue, na zona norte.

Em 1932, Noel Rosa já é um compositor popular. No carnaval passado, o de 1931, sua música Com que roupa? foi a mais executada. A partir daí, Noel incorporaria o bairro de Vila Isabel ao cenário artístico brasileiro. Ele mudou a vida daquela comunidade. Transformou aquelas ruas, casas, pessoas e botequins, tipicamente cariocas e de classe média, em imagens que passaram a povoar a imaginação coletiva brasileira a partir de 1929, quando, aos 19 anos, ele começou, efetivamente, a produzir música. Noel aos 21 anos já põe em prática um estilo de vida boêmio que o levaria ao sucesso e à fama, mas, aos poucos, também lhe tiraria a vida.

Noel já havia começado a fazer diferença no bairro onde nasceu e morou ainda na infância. Era uma criança inquieta, que sempre chegava em casa com as roupas rasgadas, o corpo suado das brincadeiras da rua. Sempre a rua, que seria mais seu lar que sua própria casa. Seria na rua que Noel construiria boa parte de sua personalidade. Ali, ele trataria com os personagens da vida cotidiana, humilde, miserável, fanfarrona e malandra do Rio de Janeiro de então. A criança, que desde cedo aprendera a conviver com o infortúnio do queixo, com o infortúnio do suicídio da avó enforcada numa arvore do quintal, o mesmo Noel que, anos mais tarde, enfrentaria um segundo suicídio: o de seu pai.

O artista abraçaria o mundo de Vila Isabel e, a partir dele, construiria um novo, no qual as formas se aproximariam do real mas seriam, de algum modo, mais fluidas. O malandro das ruas seria transformado por Noel em símbolo. Os olhos do artista se lançariam sobre o dia-a-dia e encontrariam as ironias, as anedotas, as brincadeiras, os amores e as desilusões de todo dia. Mas Noel Rosa era mesmo um pândego, incapaz de levar a vida dentro de padrões normais de bom comportamento da época. Quando fez dezessete anos, foi convocado pelo exército e serviu no Tiro de Guerra. Sua passagem pelos quartéis ficou marcada por várias repreensões, em função das paródias que ele costumava inventar para as quadrinhas cantadas durante as marchas.

Ainda no Colégio São Bento onde ele completou seus estudos de segundo grau, ficou famoso o episódio em que ele, Noel, seguia à frente de um desfile, comandando um pelotão de alunos. Ele marchava firme, com a espada desembainhada, apontada para o alto, e os colegas o acompanhavam. Mas, de repente, ele começou a dançar e a rebolar e os outros caíram na gargalhada e dispersaram a parada. Valeu uma suspensão.

Depois do exército, estava decidido a realizar o sonho de sua família e se tornar médico. Prestou o vestibular e não passou. No ano seguinte, tentou novamente e foi aprovado. Começou a cursar, mas nessa época, o samba já o absorvia por inteiro. Foi um período em que ele ficou em dúvida sobre que caminhos deveria adotar para continuar a vida. Pensava em se dividir, fazer medicina e continuar sambista. Mas, logo percebeu que a mistura era impossível. A Medicina foi abandonada, mas deixou lembranças, como a letra do samba Coração, uma música anatômica, como afirma o próprio Noel.

Essa mistura de deboche e inconsequência foi a marca, também, de seu casamento. Por volta de 1930, sua mãe, Dona Martha, já havia transformado a casa da família em uma escola e uma de suas alunas era uma garota chamada Lindaura. E tudo começou com Noel esperando por ela no final das aulas, a pretexto de acompanhá-la até em casa. Como todo namoro, evoluiu para as mãos dadas, os beijinhos e logo, mesmo contra a vontade da mãe de Lindaura, ela já estava casada aos 13 anos de idade. Casada com um Noel 11 anos mais velho que ela, já sambista, já boêmio. Lindaura conta que o casamento foi um misto de alguns momentos hilários e de muitos momentos tristes. Ela se lembra da vez em que os dois combinaram ir ao cinema no centro. Antes, decidiram parar numa leiteria para comer arroz doce. Sentado de frente para a rua, Noel logo avistou algum conhecido e saiu para conversar. Não voltou. Lindaura ficou lá, esperando, em vão, sem dinheiro nenhum para pagar a conta ou tomar o bonde. Foi socorrida pelo garçom que conhecia Noel e lhe emprestou o dinheiro. E ela voltou para casa, dez da noite — o que para os padrões da época era de madrugada —, decidida a nunca mais sair de casa com o marido.

Mas havia o outro lado de Noel. Que deixava versos e bilhetes de amor presos às cordas do violão, para que ela os encontrasse pela manhã, quando ele ainda não havia chegado em casa vindo da noite de boemia. A mesma noite e a mesma boemia que, misturadas ao álcool, foram alguns dos responsáveis por seus pulmões perfurados pela tuberculose, que acabaria levando-o à morte, quando tinha apenas 26 anos, quatro meses e vinte e três dias. Essa foi sempre a marca de Noel. Sua criação não requeria uma condição especial. À noite, a bebida e a poesia iam se misturando e se transformando em canções. Não havia rituais. Sua música não pedia estados de torpor, adormecimento ou euforia. Seus elementos eram outros. E, talvez, tivessem como únicos requisitos o lugar: era na rua que eles surgiam e era nos botequins que eles cresciam e ganhavam a cidade.

No caso de Noel, a música brotava espontaneamente. As sim, quase a esmo. Era uma atividade tão corriqueira quanto conversar com os amigos. Começava cantarolando, as palavras iam se misturando aos sons e pronto! Mais um samba estava terminado. Para Noel, a música sempre foi uma solução. Era a música que lhe aliviava a carga da deformação na face, lhe garantia acesso fácil às mulheres, que, de outra maneira, poderiam desprezá-lo. Era a música que garantia uma certa complacência da família para com seu comportamento até certo ponto irresponsável e lhe abria espaços no meio da sociedade de então. Era por meio da música que ele dava vazão à sua personalidade irreverente e ambígua. Noel Rosa era aquele tipo especial de pessoa que carrega uma tristeza nos olhos mas consegue melhorar um pouco a vida dos que estão em volta.

A trajetória de Noel foi um caminho de duas vias. De um lado, o trágico de sua vida pessoal. De outro, a alegria dos versos e das músicas. Quando ele morreu, já havia virado mito, estava cravado no imaginário popular e suas músicas faziam coro na memória das pessoas. E na memória da MPB.

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Fonte: MPB Compositores - Fascículos - Noel Rosa - Ed. Globo, 1996.

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