Cartola (Angenor de Oliveira) condecorado pela Sra. Ilka Labarthe, vencedor do concurso de música de escola de samba promovido pelo jornal "O País", em janeiro de 1937. |
“Medalha de sambista não fica no peito vai pro prego” - Evidentemente, Cartola ou qualquer outro sambista que conquistasse uma medalha de ouro como prêmio por ter sido o primeiro entre os compositores de Escolas de Samba, ficaria bastante envaidecido. Teria mesmo orgulho, o prazer de botar banca ostentando espetada no blusão, a reluzente láurea alcançada numa competição oficializada pelo Departamento de Turismo da capital dos Estados Unidos do Brasil. Mas a escassez de erva (ou de tutu, como é a gíria de hoje) não lhe permitia tão arrogante alarde.
Assim, o já famoso autor de tantas letras e melodias que carreavam para a sua Escola, a Estação Primeira, do Morro da Mangueira, prestígio e vitórias no Carnaval, tinha que fazer uma hipoteca de pobre. Passada a euforia da festa, ainda com ruído dos aplausos nos ouvidos, dirigiu-se à agência de penhores da Caixa Econômica, na Praça da Bandeira, e botou a bonita medalha no prego. Da conversão simples resultou mais de um conto de réis que na época, 1937, dava “pra resolver muito troço”.
O turismo incentiva o samba
Interessando-se pelos festejos carnavalescos, procurando dar-lhes maior interesse turístico, o Departamento que tinha tal atribuição no governo da cidade resolveu patrocinar um concurso entre sambistas dos morros. Sugerido pelo saudoso cronista Enfiado (Luiz Nunes da Silva) que com o veterano Vagalume (Francisco Guimarães) movimentavam as páginas do noticiário momístico de A Pátria, de Antenor Novaes, o certame Vol oficializado. E para que a sua realização tivesse o melhor êxito possível, o Sr. Wolf Teixeira, diretor do referido departamento deu-lhe ampla assistência.
Foi, pois, no grande e confortável auditório da Feira de Amostras, com a presença da diretoria da União das Escolas de Samba e presente numeroso público, que se travou a importante competição musical. Com tal promoção incentivava-se o samba e ao mesmo tempo o Carnaval carioca, que com o surgimento das Escolas (em progressiva substituição dos ranchos) ganhava nova característica artístico-recreativa, animava a inovação. As melodias dos morros, os cânticos de sua gente humilde seriam mostrados ao povo das ruas asfaltadas num espetáculo de excelente significação folclórica.
Cartola canta e “abafa”
Na noite do concurso, perante um júri constituído por Wolf Teixeira (diretor do Departamento de Turismo), Henrique Pongetti (escritos e jornalista), Ayres de Andrade (diretor artístico da Rádio Tupi), llka Labarthe (do Departamento de Propaganda) e Robert Evan (diretor da RCA Victor) apresentaram-se os representantes das Escolas inscritas. Chamado pelo nome ou apelido, o concorrente cantava suas composições e os cinco juízes iam dando-lhe a classificação merecida. Havia também, é claro, a ovação, o clássico “já ganhou!, já ganhou!” da torcida organizada.
Quando foi chamado Angenor de Oliveira, o Cartola, que iria defender as cores rosa e verde da Estação Primeira do Morro da Mangueira, a assistência, mesmo os adversários, aclamaram-no com efusão. Tímido (como ainda hoje nos seus cinqüenta e tantos anos) o já famoso compositor esperou a entrada da bateria e cantou Deu Adeus. Palmas ruidosas consagraram a sua apresentação. Os tamborins deram a pala do segundo samba e ele entoou o Sei Sentir logrando o mesmo sucesso. Finalmente, encerrando a mostra de seu repertório interpretou Adeus, Violão. A vitória refletida nos aplausos demorados, nos pedidos de bis!, bis!, tinha logo depois a homologação unânime do júri: primeiro lugar, medalha de ouro. Cartola abafara.
Melódica e Poética
Mostrando a seus julgadores e à vultosa platéia uma versatilidade rara entre compositores populares, Cartola no samba Deu Adeus cantara: “Partiu e não me disse mais nada./ Já ia distanciada/ Quando ela parou e acenou com a mão./ Desapareceu./ Estou certo que este amor morreu.” Na segunda composição, a intitulada Sei Sentir, dizia em versos espontâneos: “Sei chorar./ Eu também já sei sentir a dor./ Estou cansado de ouvir dizer/ Que aprende-se a sofrer/ No amor.”
Se as duas produções acima revelam certo romantismo, têm como tema o amor perdido e a aceitação do sofrimento através ainda do amor, a que foi denominada Adeus violão proclama a regeneração, a tomada de uma nova diretriz: “Orgia hoje és minha inimiga/ O sofrimento obriga/ A me afastar de você./ Adeus, violão,/ Amigo leal./ Estes versos que fiz devem ser/ A rima final.” Três facetas da poesia de um sambista do morro retratando todos seus sentimentos. E cada qual ornada com música simples, mas muito bonita, dando realce à singeleza da letra.
Uma medalha transforma-se em “erva”
A consagração daquela noitada de 26 de janeiro de 1937 quando o valor de seus sambas dava-lhe a primazia entre tantos outros compositores das Escolas rivais da sua, durou pouco. Horas depois, a fulgurante medalha que llka Labarthe fixara no peito do sambista felicitando-o com efusão transformou-se num guichê de casa de penhores (no caso o da Caixa Econômica, na Praça da Bandeira, como poderia ser a do José Cahen na Rua Silva Jardim) em duas cédulas de quinhentos mil réis e mais algumas de menor valor. Quantia que, naquele tempo, deu para melhorar a gororoba e ainda comprar um pano (terno). Afora permitir esvaziar algumas garrafas de Fidalga e Cascatinha (cervejas).
Ficou, porém, para informe da posteridade pela pena de um cronista ainda hoje em grande evidência, Henrique Pongetti (saído da revista Leader e camuflado sob o pseudônimo de Jack nas colunas de O Globo) registro da autêntica vitória do Cartola. Lá está, em itálico, estendido em coluna dupla: “... Anteontem ouvi, disputando as belas medalhas de ouro, prata e bronze que meu confrade Antenor Novaes lhes ofereceu as escolas de samba das antigas zonas de inspiração musical...".
De todo aquele desperdício de bossas, dois sambas bonitos adquiriram o direito de viver e morrer nas bocas volúveis da planície — os do Cartola, compositor de Mangueira. Nenhum mais...“.
(O Jornal, 1.°/12/1963)
______________________________________________________________________Fonte: Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira / Jota Efegê. - Apresentação de Carlos Drummond de Andrade e Ary Vasconcelos. — 2. ed. — Rio de Janeiro - Funarte, 2007.
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