Lá está a esconsa ladeira do João Homem, que nos levará ao alto da Conceição. Subamo-la, tranquilamente, porque, quase ao chegar à crista do morrete é que se instala, numa casa de porta de rótula, toda pintada de azul-marinho, a sede da Sociedade Carnavalesca, Familiar, Dançante, Beneficente e Recreativa “Tira o Dedo do Pudim”, ufania e regalo dos moradores do lugar, de moçoilas e rapazelhos que vivem ajanelados em casebres que se dependuram como gaiolas de pássaros pela íngreme viela torta, feia, imunda, porém movimentadíssima.
Das quatro da tarde às nove da noite, nesse alcandorado recanto da cidade, a barulheira referve. Há um zabumbar furioso, infernal, sem armistício, para os nervos e para o ouvido do próximo.
De longe, saúda-nos, agora, a bulha, não do rude e atordoante zé-pereira, já repousado, mudo, porém a de mil bocas: gritos, berros, ou estrídulas risadas, de envolta com o afinar de instrumentos de corda ou sopro, balbúrdia amável e festiva, confuso bruaá, denunciando desafogo e alegria da massa ingênua que livremente se diverte. Subamos.
A vizinhança, a postos, parece satisfeita. A vizinhança é todo o morro. Embaixo, a cidade tranqüila. A noite abafa. Rescalda. Fevereiro. Passam alguns minutos das dez horas.
Suspendamos a marcha aqui; paremos, que diante de nós já se alteia a instalação modesta de jovem grupo. A sédea. Na fachada, escudo feito em folha-de-flandres, pintado com as cores sociais, mostrando uma mão que aponta com o dedo indicador para um disco enorme, vaga lembrança de uma lua-cheia. E mais um S e um C (Sociedade Carnavalesca) antecedendo as letras negras e garrafais do título: “Tira o Dedo do Pudim”.
Portas e janelas estão par a par, abertas, mostrando o interior de um salãozinho que mal comporta a chusma de associados, os seus amigos e penetras. Penetra é sempre o tipo que invade, sem convite, a sede desses grêmios, de tal sorte querendo deles gozar os proventos, sem ônus de despesa. Vezes custa-lhe à audácia um ponha-se-lá-fora, um tranco, uns empurrões, um pontapé vibrado pelo garantia, que é um ás do clube, tipo forte e trastejado, espécie de polícia do salão, fiscal da sociedade e regulador da moralidade na casa. O penetra, porém, que é um homem de pouca ou nula suscetibilidade a par de muita perseverança, em geral, não se dá nunca por achado e, quase sempre, insistindo, volta, sorridente e atrevido, sem temer nova reação do garantia, a ameaça de tranco, de empurrão ou de pontapé. E, quando não se estrepa, que como quem diz, não se desbarata, fica. E goza. De resto, para o penetra que se chama da zona, o do lugar, há indulgências costumeiras. Desde que não haja abuso. Claro. Para os outros, porém, é contar com rigor, sobretudo se o corpo estranho, o intruso, recalcitra ou, petulante, quer impor-se. Aí…
O salão do Tira o Dedo do Pudim é todo ele forrado de um papel azul cor-de-manto-de-Nossa Senhora onde, em desenhos grotescos, prateados e como que em relevo se vêem, em confusão, liras e rosas que se entrelaçam. Um dos grandes caprichos dessas agremiações mômicas é o papel da sala. Tem que ser espalhafatoso e caro. O do Tira o Dedo do Pudim custou uma fortuna e foi votado em assembléia gerá. A luz do belga, lampião a querosene, que está suspenso ao teto, quando resvala pela parede, arranca, do seu prateado escandaloso, chispas alucinantes. Do sereno, que é a platéia que se forma na calçada da rua, e vive das migalhas da folia dos outros, comenta-se gostosamente:
— Beleza de papel!
Luz cheirando a querosene, luz intensa e que não se multiplica apenas em velas, mas em quenturas, transformando o rosto da assistência em verdadeiras cascatas de suor.
Por isso andam de mão em mão os leques e as ventarolas de papel. O tempo é de pouco conforto pelo estio; ventiladores, não existem, sorvete é regalo de rico; calor, definição de Brasil. Pela porta estreita do salão do grêmio, constantemente, entram sócios e convidados. Grandes apertos de mão, abracinhos de três-pancadas. Para as senhoras, espinhas curvas, em bodoque.
Estão vendo pelos cantos do salão uns enormes cartuchos de papel, muitos deles vestidos com malhas de crochet, aplicações de espelhinhos, contas, grotescamente emoldurando fotografias minúsculas, em maioria aproveitadas de cartões-postais? Isso é moda em casa do pobre. Ânsia ingênua de decoração. Cruzando o teto, em diagonal, festões de papel ou pano, uma enfiada de papoulas ou rosas, ornamento e pouso tranqüilo do mosqueiro. Também em grande voga, esses festões, como certas bolas de papel de seda, coloridas e fofas, que se dependuram pelos braços dos aparelhos a gás.
É de praxe, num caixilho doirado e envolto em gaze asa-de-mosca, o retrato do presidente da sociedade, quase sempre entre uma ventarola de pregas e um porta-cartões feito em cartolina e seda, com iniciais, mas sem a menor sombra de cartão ou carta.
Lá está o presidente eleito do Tira o Dedo do Pudim retratado a crayon. Vê-se da rua. É um homem sobrancelhudo e austero, de cabelo à brosse carré e bigodeira enorme, armada em roscas de padaria. Carão bojudo, al var, apagando-se num círculo de cinco ou seis papadas. É o grande homem da casa, é o senhor. Antônio Guimarães, honrado negociante desta praça, com loja de petisqueiras na rua da Saúde – Parreira d’Aquém e d’Além Mar –, grande amigo de patuscadas, de batuques, de crioulas e carnaval. É um amor, o Antônio. Todos sabem disso, até o senhor conselheiro Camelo Lampreia, que é ministro de Portugal, e já lhe prometeu a comenda de Cristo. É um sólido prestígio que começa na poeira da baixada, beirando o cais da Saúde e ascende ao morro da Conceição, pelo aladeirado da João Homem. Dois quarteirões! Dois! Já é… As leis da época garantem-lhe um lugar na política. Podia ser, se quisesse, Conselheiro Municipal. Talvez deputado. Mas, não quer. Contenta-se com a comenda, que espera. Modesto Antônio!
— Homem de valô e inconsideração — diz sempre, no grêmio, o João da Gosma, cabra pernóstico, grande tocador de violão que violentamente o admira e tem conta aberta na Parreira d’Aquém e d’Além Mar…
Tresanda a bodum a sala. Do bom. Do melhor. E não há perfume capaz de vencê-lo ou minorá-lo. O patchuli, a cananga-do-japão, a água-flórida e até o aglaia — que são as grandes essências da moda — nesses ambientes de transudação e de calor, perdem as virtudes trescalantes, a individualidade, o vigor. Apagam-se. Não recendem. Só o petróleo agressivo e violento, nesse conflito de olores desamoráveis, saído do lampião, mantém-se um pouco. Equilibra-se… Há, entanto, quem, voluptuosamente, sadicamente, encontre fragrância nesse fétido, narinas tolerantes que nele se encantam e deliciam. O senhor Antônio Guimarães, por exemplo.
Quando ele chega, depois de fechar a loja das comidas, dentro da sua rabona de sarja, a mostrar um célebre colete de fustão branco com ramagens azuis, que lhe contorna a pança magnífica, estrugem as ovações:
— Viva o nosso presidente! Vivôôôôôô!
O Antônio baba-se por essas coisas. É o seu fraco. Curva-se, agradecido, balouçando as guias do bigode, escancarando a bocarra sensual, as narinas sorvendo o ar, com volúpia, o olho libidinoso fincado nas negras que suam e que tresandam, metidas dentro de vestidos de seda grossa, com fitas cor-de-rosa no cabelo.
Viga-mestra do clube, o Antônio é um presidente como poucos. Um mão-aberta. Franco. Não faz questão de dinheiro:
— O que a rapaziada quiser!
E a rapaziada abusando…
A alma ingênua e bondosa do labrego, entanto, não leva a sério os abusos da rapaziada. Mas que seja! E o dinheiro a rolar, rolar…
— Viva o nosso presidente! Vivôôôôô!
É nessa altura que o Chico Transação, tesoureiro do grêmio, pardavasco pachola e escovado, com sete entradas na Casa de Correção e dois lanhos de na valha na altura de um queixo todo marcado de sinais de bexigas, começa a lhe dar piparotes de confiança no pandulho e a chamá-lo:
— Bichão! Cuera! Cobra-sarado! Bicho bão!
Diante de tanta afabilidade e cortesia o Antônio desarvora, perde as estribeiras, e, em sorrisos, desmancha-se todo. Cada negra fica com um pedaço do Antônio… É uma patuscada!
Quincas Marreta, que já foi o “vilce-persidente” em “exelcício”, é o mestre-sala e ao mesmo tempo o garantia do cordão. É um tipo escalavrado pelo tempo, sovado pela vida, com uma gaforinha em pala resvalando de um testão enorme e polido como uma bola de marfim. Mostra, quando ri, uma estranha e macabra dentadura, composta de um dente incisivo, muito amarelo, enorme, e um caco de molar. No dorso da mão direita, uma tatuagem representando o encouraçado Aquidabã e esta legenda, que vai da proa à popa — Inté depois da morte! Foi meganha (o mesmo que soldado de polícia), ser viu como fuzileiro naval no tempo de Floriano. Usa navalha no cós, pernambucana (faca) na cava do colete e leva sua vantage na hora do pé ou da marreta.
Mestre-sala avisado é quem conhece o protocolo, as etiquetas na sociedade e as aplica. É quem determina o que é de boa ou de má inducação… Bíblia do bom-tom, calepino de cortesias que o grêmio vive constantemente a consultar:
— Seu Quinca, quando os reporte vié, que tem a gente de fazê?
E o homem do protocolo:
— A gente forma tudo em torno dos reporte e grita: Viva a imprênsia! As dâmias põe a mão na cintura e sai de passo mole ciscando e pondo o rabo do oio no estandarte. Pronto! Aí, então, seu Antonho avança para os moço e arrecebe eles. E é só.
Garantia é o Cérbero do respeito a observar na hora em que se dança. Vigia encostamentos, apalpações e outras inconveniências improibidas pelo regulamento da casa.
— O cavaero queira desencastoá a perna dessa dâmia, quando não me obriga a reagi, que o crube é famia, não é porquera. E isso enquanto não viro bicho e lanço mão dos alimento que possuo para garanti a orde e a imoralidade da casa.
Obedecido, toma, logo, de uma rapariga, e, dançando, desliza, porque Quincas ainda é um belo pé-de-valsa, sendo, que, na hora da schotisch, ninguém como ele sabe fazer uma reverência com elegância e com galanteria, o dente amarelo em riste, a cabelancha pela testa enorme revolta e dependurada.
Porteiro-mor, é ele quem decide da entrada dos penetras, comparecendo à porta com o seu sorriso amável e o seu bíceps tranqüilo. Ele é quem diz, maneiroso, ao intruso que não passa da soleira da porta, esfregando as mãos, num gesto da mais profunda condescendência:
— Aqui só entra sócio efektivo e kíkitis cum ricibo do mês transsakto…
Uma vez o Tira-o-Dedo-do-Pudim recebe um penetra de qualidade, Carlos Bittencourt, pela época vagamente repórter do O Paiz, e quase autor dramático. Carlos, para poder penetrar na sede do cordão, alega a profissão de jornalista.
— Vossoria mostre antão os seus dicumentos — diz o garantia, pondo um olho de suspeição e de implicância na indumentária apurada do ainda muito jovem Bittencourt.
Ora, sem uma prova capaz de apresentá-lo, que não seja o seu interessante espírito, Carlos tem uma idéia feliz, toma da palavra e desfecha sobre a cabeça do Quincas Marreta, numa eloqüência condoreira, um discurso formidando. É uma saudação ao rancho, aos carnavalescos presentes, girândola oratória, fogo-de-vistas…
— Bravo! É reporte! O home é bem-falante… — dizem logo, todos. — Reporte!
O documento está apresentado. Antes, porém, de pôr o pé no salão, a transbordar de gente, assim lhe fala o garantia:
– Seu reporte me discurpe mas porém nós percisamos sê gente de rigô par causa dos abuso. Seu reporte qué sabê? Trás antonte aqui veiu um moço que também se dizia sê da imprênsia. Vinha com duas dâmias de carção de circo. Oiei as muié e obtemperei: – Vossoria pode ingressá, as dâmias, porém, não pode por via do itinerário que elas trás que não está de acordo com um salão de fa mia. Pega ele responde: – Se eu entro elas têm que entrá também, por que elas viero cumigo e num vortam. Fez jeito de ciscá e eu ainda reobtempe rei: – Vossoria não insista que se estrepa. Ele insistiu. Foi quando o Gaudêncio, nosso claurinete, afogueado, meteu a cara no grúpo e grampiô o home. Fechou o tempo. Ora a ladeira é ingres, Gaudêncio vê pouco, é milpes, estropeça na carçada e os dois rola João Homem abaixo. Resurta do: apanha o nosso claurineta um tapa-oio que vira dispois numa dispécia fraudulenta na básia no crânis que ele ainda inté hoje tá de cama.
E continuando:
— Que isso aqui, seu reporte, é fa mia. Já se casaro nesta casa oito virge. E ainda hom de se casá mais.
E apontando para Antônio Cheira-cheira, secretário do cordão, um preto que mostra um par de beiços que são dois grossos bifes sangrentos:
– A ermã deste se casou-se aqui. Nós casemo ela. Dispois é que ela andou por aí, dando umas cabeçadas com um guarda-freio da Centrá, ponto de cair na rua de São Jorge. Nós, porém, é que não tem nada com isso… É lá fora. Aqui dentro, é respeito. Agora digo eu a Vossoria: Vossoria entra, mas as dâmias que eston no lado de fora, de sereno e que veio com Vossoria é que não pode entrá, e eu explico a rezão para Vossoria não ficá zangado…
As damas, porém, acabam entrando porque nada mais são que três boêmios, os caricaturistas Raul Pederneiras, Calixto Cordeiro e Luís Peixoto, vestidos de baianas.
O linguajar, nesse ambiente, onde se junta a ralé do morro, a gentalha que sobe da Saúde ou vem das bandas do saco do Alferes e morro do Pinto, é particularmente interessante. Um novo idioma que se ensaia e que se vai formando à revelia do senhor Hemetério dos Santos e outros filólogos de peso. Até o Antônio Guimarães, presidente, quando declara às negras o seu amor aceso, é nesse calão que se explica, destrocando os bb pelos vv, dizendo mel em vez de mele, pele em vez de pel, surripiando as consoantes finais, desarrumando os pronomes, adocicando a fala, de olho lúbrico, e bambo, a remexer as roscas do bigode…
Outro figurão notável nesse meio, conheçamos, é o maestro Turuna. Asclepíades Turu na, negralhão alto, gordo, cabeça raspada a navalha e revelando um microcefalismo deveras impressionante. Mãos enormes. Pés enormes. Beiçola enorme. É um gorila. Traja roupa de brim riscado em xadrez, cor-de-gaiola e mostra, como singularidade, uma unha, muito comprida e muito bem tratada, longa, de uns três centímetros, nascendo de um dedo curto e grosso como um calabrote. Um dia, na regência da charanga, como lhe escapasse das mãos a batuta da regência, dizem que Turuna regeu a música com a unha. É um tipo silencioso, tranqüilo. Não sorri. Quase sem gestos, morre de amores pela Casimira, preta fula que já lhe inspirou uma valsa em si bemol – Luar do meu amor – e uma schotisch em dó sustenido, para ocarina e piano – Foi ela quem me matou.
Quando ele surge na sala, de batuta toda enfeitada com florzinhas de papel, a assistência delira.
Vejamo-lo, agora, dando início ao ensaio das cantigas, muito teso, muito lustroso de suor, a vara da regência erguida no ar, o olho sentimental na negra Casimira:
— Vamo! Escola. Todos pruma só boca! As dâmias ao centro e os cavaeiros marchando em derredor do quadrilátero… Vamo!
E o coro:
As barboleta vom pelo á…
A solfa é dengosa e leve. As mulatinhas cantam-na pondo as mãos nas cadeiras, a fartura dos seios empinados, os pescoços em riste, num retesamento exagerado de cordas vocais:
As barboleta vom pelo á,
Son cor-de-rosa com listra azu,
Queimô no fogo as asa frebi
Dispois nom pode mais avuá!
Duas vozes, em meio a tantas, se destacam: uma, a da crioula Casimira, forte voz de assoprano, como eles do cordão explicam, voz de alguém que canta dentro de um baú; outra, a do moleque Zu, sorveteiro, voz ensaiada no comércio ingrato dos picolés do tempo, violenta, dura, desafinada e estridentíssi ma: voz de antenor…
A toada ábsona, que se berra forte, espalha-se na doçura da noite silenciosa, rola pelas quebradas do morro, passa pelo casario das ladeiras onde mil ouvidos recebem-na, ansiosos e contentes, para ir morrer longe, para as bandas do cais empedrado da Saúde, onde se espicham empregados de trapiche, marinheiros, catraieiros, gentalha do lugar, jogando a vermelhinha entre marafonas de cachimbos na boca, frangalhos humanos, destacados à luz triste e amarelada de alguns bicos de gás. Lá é que vão se apagar os últimos compassos da toada magnífica:
Queimô no fogo as asa frebi
Dispois nom pode mais avuá…
A rivalidade existente entre esses grupos glorificadores de Momo é coisa velha e conhecida. Emulação ativa, concorrência, por vezes, provocadora e perigosa. O que caracteriza as camadas inferiores da nossa sociedade ainda é aquele espírito bárbaro e irrequieto, vindo de velhos tempos de domínio estrangeiro, quando se tomava como matéria-prima para colonização, entre elementos raciais opostos, a massa triste dos degredados, que a justiça portuguesa para cá viveu sempre a enviar.
Naturalmente que a interrupção dessa prática e o fator tempo haviam de minorar os ímpetos do caráter indígena, que a fatalidade histórica, de modo tão pouco amável, comprometeu e assolou. Não obstante, nas camadas populares, onde a instrução penetra a custo, o homem mantém-se, ainda, imoderado e bruto, sanguinário e brigão.
Em 1888, um ano antes da proclamação da República, cafajestes armados até aos dentes ainda saem à frente das nossas bandas militares, atravessam as ruas principais, das mais policiadas da cidade, em pleno exercício da capoeiragem. São divididos em dois grupos: o dos gaiamus e o dos nagôs, os quais por mero sentimento esportivo, em desafogo selvagem, batem-se a cacete e a navalha, atacando, estúpida e desapiedadamente, até pacíficos transeuntes, sem que os poderes públicos possam tomar, pelo que ocorre, medidas moralizadoras e eficazes. De um desses malandros sabe-se que, irritado com a lauta pança de um inofensivo e risonho taberneiro, em pleno centro da cidade, nela plantou uma afiadíssima faca, não sem dizer, com a mais fria das naturalidades, ao que, instantes depois, tombava para sempre:
— Guarda este ferro, aí, ó gordo!
Em 1901-2-3, já não existem mais capoeiras à frente de bandas militares; a coragem do primeiro chefe de polícia republicano nos livrou da indesejável malta, que foi para Fernando de Noronha. Eram, pelo menos, os que formavam o corpo dos profissionais no manejo do pé e da navalha… Cá ficaram, no entanto, os amadores que, se não freqüentavam as famosas escolas ao ar livre, onde se ia cultivar o tenebroso jiu-jitsu americano, ainda se adestram na arte de bem-aplicar no próximo uma boa rasteira, uma cocada ou um rabo-de-arraia… Pelos dias de loucura carnavalesca, a alegria e a cachaça acendem os ânimos desses tradicionalistas. E o homem colonial é o que encontramos na rua vestido de diabo, tendo uma navalha dissimulada na extremidade de uma cauda enorme ou então guardando, sob as dobras macias de um misterioso dominó, um furador de saco de café ou um facão de cozinha. E enquanto não provoca, não luta, não tinge as calçadas de sangue, esse homenzinho não se dá por feliz ou satisfeito.
Por ocasião do carnaval de 1902, as gazetas da terra registram um caso que ilustra o que dizemos.
No domingo, primeiro dia das folganças de Momo, o cordão carnavalesco Filhos da Estrela de Dois Diamantes parte do centro da cidade enchendo um bonde que caminha para Botafogo, batendo pandeiros, raspando reco-recos, dançando, cantando, cheio da mais viva satisfação e de descuido. Quando o veículo da companhia Jardim Botânico vai dobrar a curva da rua Marquês de Abrantes para entrar na praia de Botafogo, é agredido, de surpresa, por vários sócios dos Filhos da Primavera, grupo congênere e rival, que aí se plantaram de tocaia. É uma refrega estúpida e sangrenta. Os homens batem-se como feras. A faca. A tiro. Rolam aos bolos. Sangram-se. Até mulheres entram no conflito, que assume as proporções de uma feroz batalha. Quando serenam os ânimos, a rua é um caudal de sangue. Há mortos, e o número de feridos e contusos é enorme.
Na luta, os atacantes, os do cordão Filhos da Primavera, levam enormes vantagens. Quando chega a polícia, chega tarde; já os da Estrela de Dois Diamantes sucumbem ao peso de uma maioria preparada. E, apenas lavados em sangue, vociferam.
Vale a pena, no entanto, registrar o que sucede, no dia imediato, pelo enterro das vítimas: Angelino Gonçalves, o Boi, e Jorge dos Santos, sem alcunha carnavalesca.
O caso é, realmente, digno de registro.
Saem os corpos do necrotério, que então se instala no edifício da Faculdade de Medicina, isto à praia de Santa Luzia, junto à Santa Casa.
Os da Estrela de Dois Diamantes deixam a morgue organizando o préstito mortuário, com o seu estandarte envolto em crepe, as caixas de rufo teatralmente em funeral, embora os sócios dentro das fantasias as mais escandalosas e berrantes. Os caixões, negros e pobres, vão à frente. A seguir, uma carreta, flores, palmas, coroas e grinaldas. É uma homenagem simples, porém tocante. Desce o préstito, que é numeroso, caminho do Catete. Pelos lugares por onde passa, o povo, reverente, se descobre. As senhoras persignam-se. Rezam. Se a tragédia afligiu toda a cidade! Às janelas das casas chega toda uma multidão de curiosos para gozar o quadro singularmente sombrio e melancólico. Vai o bando lúgubre e silencioso roçando as calçadas do largo da Glória, quando, súbito, lhe surge pela frente, carregando pendões carnavalescos, caixas de rufos, bombos e tambores, um povaréu enorme, que ondula. São várias agremiações congêneres que, em peso, querem, também, homenagear os heróicos batalhadores de Momo, no campo da Honra e do Dever colhidos pela Morte…
Os jornais da época dão o nome dessas associações. São elas: Filhos do Poder do Ouro, Destemidos do Catete, Maçãs de Ouro, Rainha das Chamas e Triunfo da Glória. É um espetáculo magnífico. Verdadeira mobilização de mascarados. Centenas e centenas de homens vestindo as mais berrantes e excêntricas indumentárias de carnaval, com a cara pintada, com sacos de confetti a tiracolo, pacotes de serpentinas debaixo do braço, estandartes policrômicos desenrolados no ar, manchas violentas e alegres de cor num cenário de luto e de tristeza. Formados em continência, deixam passar os esquifes onde repousam os mortos. Depois, incorporam-se à massa espessa dos acompanhadores.
Pela rua do Catete segue o formigueiro humano, caminho de Botafogo, em passo ritmado. De quando em quando novas adesões aumentam a cauda viva, que se encaminha para o cemitério. Mais povo. Mais carnavalescos. Chega a impressionar a majestade do séquito pomposo com que nunca sonharam ter, um dia, Angelino Gonçalves, vulgo Boi, e Jorge Santos, sem alcunha carnavalesca. E vão a marchar, todos, assim, caminho de Botafogo, quando um dos ranchos tem a idéia de fazer soar, sobre a pelica de seus tambores, rufos melancólicos, em ritmada e fúnebre surdina: pram… pram… pram…
A idéia é amável. Agrada. Outros ranchos imitam-na. Rufam também: pram… pram… pram… o ruído dos passos, nas calçadas, é vencido pelo planger das pelicas que as vaquetas barulham. Ganha um pouco de vida a comitiva enorme. À frente, sempre, os dois negros ataúdes que dominós, diabos, clowns e pierrots carregam.
Vão todos em marcha lenta, mais ou menos disposta e aprazida, quando rompe uma voz misteriosa, num cristalino canto que se eleva, em adágio magnífico… E, logo acompanhando-a, o cavo e surdo rumor de instrumentos de sopro…
A toada impressiona. Comove. É profunda. É serena. A princípio desenha angústia. É pranto e é sofrimento. Depois, desenrolada, ganha um ímpeto mais vivo, mais decisivo. Aquece. Arredonda-se. Alteia-se. Destaca-se. Domina. Ouvem-na, todos, curiosos. Depois, subindo sempre, rebenta, num crescendo suavíssi mo, num coro harmonioso, num coro a boca chiusa, que vai, também, por sua vez, avolumando-se, crescendo… Aqui, ali, acolá, já clangoram instrumentos. Esse clangor aumenta. É quando entra, animando-o, a bulha singular dos reco-recos. E dos pandeiros e chocalhos. Dentro de pouco tempo o cantar ensurdece, de tão forte. Toma corpo. Ascende. Transforma o ritmo da solfa, que resvala para um motivo sincopado. Já alegre. E profano. E mômico. E canalha. É o samba! As mulatinhas começam a rebolar as sobras dos quadris, saracoteiam negras crioulas de grandes saias rodadas, fazendo tremer a gelatina dos seios flácidos e disformes; pardavascos agitados, raspam, com fúria, fundos de pratos e reco-recos. Agitam-se pandeiros. Os estandartes rodopiam no ar… Grita-se a mascarados, princesas e velhos, que batem a chula marchando na calçada:
– Corta-jaca! Castigo do corpo! Trama! Remelexo! – Vozeria. Clamor. Desencadeia-se a folia. Delírio. A loucura é geral. Quando chegam ao cemitério, os funcionários da Santa Casa entreolham-se espantados. Entram os dois caixões aos bo léus, os mascarados que os carregam aos empurrões, aos evoés! À frente deles, já passou um bando de índios emplumados, de arco, flecha e tacape, cantando, silvando, vivendo em fogo a pantomima dos seus bailados singulares.
Quando a cova úmida e fria recebe os corpos que se enterram e cruzam no ar confetti e serpentinas, o cemitério está coalhado de máscaras, de fantasiados álacres, que se agitam, massa colorida que se esparrama, fala, ri, barulha, gargalha, entre cruzes de pedra, ciprestes, anjos de mármore que abençoam, lousas, urnas funerárias e salgueiros… E há quem cante. E quem dance…
Sabbat magnífico! Momo domina seus muito amados filhos, soberbo e colossal, do seu trono invisível. É quando se vê um folião representando a figura da Morte, na sua negra e sinistra indumentária, tendo na mão esquerda um crucifixo de prata e na outra uma tíbia, talvez autêntica, talvez achada no lugar, subir para um mausoléu de granito, gritando forte aos carnavalescos que o saúdam, como se fosse ele a própria alma carioca que ali estivesse a gritar, cheia de sinceridade e de vigor:
— Viva o carnaval!
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Edmundo, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial, 2003 (Edições do Senado Federal, 1), p.505-517
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