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Sinhô contava amigos nas altas rodas. Desfrutava da intimidade de alguns figurões da época. E como todo bom carioca, deveria ser também político, isto é, ter as suas paixões e entusiasmos por nomes e vultos destacados do momento.
Uma das suas primeiras produções e das que obtiveram maior êxito foi o samba Fala meu louro, lançado para o Carnaval de 1920. Nos versos pitorescos o sambista alfineta Rui Barbosa. Depois da memorável campanha presidencial em que Epitácio Pessoa o derrotara, Rui discretamente se afastara da liça e se recolhera a justificado e repousante mutismo. Homem de tais proporções não poderia sair do cartaz.
Rui era o comentário de todos os dias, a notícia permanente, a caricatura infalível nas admiráveis revistas de sátira política do tempo. Por isso mesmo o ousado compositor o interpela graciosamente no seu grande samba, que logo se espalhou por todo o Brasil. É o Fala meu louro, também conhecido como A Bahia não dá mais coco, Papagaio louro e Quem é bom já nasce feito:
A Bahia não dá mais coco
para botar na tapioca
pra fazer o bom mingau
para embrulhar o carioca.
Papagaio louro
Do bico dourado
Tu falavas tanto
Qual a razão que vives calado?
Não tenhas medo
Coco de respeito
Quem quer se fazer não pode
Quem é bom já nasce feito. (1)
A sátira feliz adocicava-se como o bom mingau com a nota estimulante e consoladora ao eminente derrotado. A expressão “coco de respeito” não era somente pitoresca, mas enaltecedora, como também o era o encaixe oportuno do dito popular:
Quem quer se fazer não pode
Quem é bom já nasce feito.
Com esse samba, Sinhô alargaria o caminho da sátira que serviria ao desfile de grande parte das cantigas populares do Rio. Mas a sua inclinação pelo comentário político ainda lhe criaria casos e ocasionaria aborrecimentos.
Com a marcha Fala baixo, Sinhô, embora disfarçadamente, faz alusões à política. A começar pelo título que é uma advertência sensata ante a censura policial da época. E nos versos as invocações a uma rolinha complicariam tudo, pois a palavra antes encontradiça na música popular tornara-se proibida. (2)
Quero-te ouvir cantar
Vem cá, rolinha, vem cá
Vem para nos salvar
Vem cá, rolinha, vem cá
O estribilhista emérito, conhecedor atilado do gosto popular, conseguiu notável êxito com essa marcha, (3) lançada ruidosamente nos festejos da Penha, em outubro de 1921. Mas nem tudo seriam glórias, e Sinhô foi depois procurado pela polícia e teve que se refugiar na casa de sua mãe, D. Graciliana, então moradora na Rua do Engenho de Dentro, 95.
Na história musical do compositor ocorreria fato mais sensacional. O seu samba Macumba (Gegê), lançado em 1922, seria interceptado pelo Estado Novo, de execranda memória, quase vinte anos mais tarde, porque nele se continha a palavra Gegê, de origem africana, e já então apelido popular e carinhoso do ditador Getúlio Vargas. O disparate era maior porque nada havia de ofensivo nos versos simples do compositor falecido em 1930, e considerado subversivo post-mortem:
Ai Gegê
Meu encanto
Eu só tinha medo
Se não tivesse um bom santo.
As cautelas policiais estadonovistas preferiram modificar o sambinha que ficara. E a palavra desrespeitosa — Gegê — foi substituída nas emissões radiofônicas por Ieiê ou meu bem...
O samba Fala meu louro igualmente gerou incidente policial-militar. Na Bahia, segundo nota publicada na Revista da Semana, em 29 de maio de 1920, numa festividade pública em Salvador, estudantes solicitaram à banda de música do 19º Batalhão de Caçadores que executasse o samba popularíssimo. Um tenente se julgou agravado e com várias praças reagiu à insolência. Mas, ao que parece, não houve mortos nem feridos.
Sinhô era um registrador sonoro dos acontecimentos que agitavam a sua cidade, o Rio da década de 20, por ele vivida tão intensamente. A capital federal naqueles anos contava pouco mais de um milhão de habitantes.
Em 1921 e até começos de 1922, torna-se famoso na crônica policial um bandido que era o terror do morro da Favela, alcunhado de Sete Coroas. Parece que o apelido se originara de um roubo que ao início da sua vida de marginal fizera de algumas coroas de um túmulo! Depois outras ocorrências e crimes lhe aumentaram o sinistro cartaz e o celerado tanto era temido quanto popular. Sinhô que já encaixara Rui no samba, aproveita a fama de Sete Coroas, de quem era amigo, e lança o samba perfil do criminoso. Obedecia assim ao impulso que o movia de perpetuar o fato na pauta musical:
É noite escura
Iaiá acende a vela
Sete Coroas
Bam-bam-bam lá da Favela.
E a polícia
Já tonteou
Sete Coroas
Meia dúzia já matou.
E o homenzinho
É perigoso
Sete Coroas
Nasceu no Barroso.
Sinhô deveria ter pretendido apenas aumentar a fama do valente, numa exaltação da sua coragem. Mas, como bem observou Almirante, ao invés de glorificar o salteador, tornou-o mais temido, aumentando o terror da sua figura e das suas façanhas.
Consta que Sete Coroas certa vez figurou num bloco carnavalesco organizado pelo sambista. A admiração deste seria natural posto que perigosa homenagem ao valente. O mesmo fascínio que os cangaceiros famosos exerciam junto a rapsodos nordestinos que lhes exaltavam feitos, aventuras, lutas e perversidades, nos romancetes rimados. Essa glorificação do valente seja ele um salteador ou um herói, é uma constante nos poetas e artistas do povo.
A fixação do fato ou da notícia na solfa é aspecto a realçar na produção de Sinhô. Seria ele nos dias de agora um compositor participante no melhor sentido da palavra, um tanto baratinada. Seus sambas e marchas não davam somente títulos às revistas teatrais; serviam como legendas de caricaturas famosas. J. Carlos estampou na Careta uma caricatura de Rui vociferando, enquanto uma velhota que representa a Convenção lhe solfeja:
Fala, fala, fala
meu bem
Eu não digo nada a ninguém.
Eram os versos primeiros do samba Confessa meu bem, grande êxito de Sinhô no Carnaval de 1919.
Qualquer acontecimento, incidente trivial no cotidiano da cidade servia ao compositor para o registro melodioso. De 1919 é o samba carnavalesco Tirando o retrato, a que não faltava o subtítulo — Nascimento, oia ele — no qual parece comentar algum fato ocorrido talvez na ladeira do Barroso:
Nascimento, oia ele
Que qué me dá
Por causa de um retrato
Que na ladeira não quis tirá.
Modas e costumes não escaparam à glosa musical de Sinhô No Carnaval de 1924 satirizava a moda de cabelo feminino aparado à inglesa, no samba Já-já:
O tal cabelinho à inglesa
Eu mandava raspar já-já
Depois lixava a cabeça
Até ela gritar ‘chegá!’
Embora fosse mais da música que do verso, temos que destacar no compositor a identificação permanente com o povo, a sua facilidade de transmitir-se através de expressões pitorescas que inventava ou de que se apropriava, ajustando-as magistralmente nas melodias nem sempre totalmente originais. Por vezes é esquisito na sua temática. Quase hermético para os de hoje. É que arrumava no verso e na pauta não somente queixas e recriminações como também as suas mágoas e alegrias, os seus amores e frustrações e, sobretudo os fatos banais e até o anedótico nem sempre publicável. Tal como no Caneca de couro (1925), no qual o título se entende picarescamente como o sexo da mulher:
É modo agora quando ferram o namoro
Beberem água na tal caneca de couro.
História antiga que está em moda
É raro aquele que não dá uma mão na roda.
Quem provoca e gosta fica doido e vira lobo
Fica maluco faz papéis até de bobo.
Em 1926 noutro samba — Pega-rapaz — volta a referir-se à moda de então:
Ó menina
Que moda é essa de seu vestido
Oi!
Curto na frente, comprido atrás
Isto é moda de pegar rapaz.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Ó menina
Que moda é essa de seu cabelo
Oi!
Curto na frente, raspado atrás
Isto é moda de pegar rapaz.
A Festa da Penha, campo em que venceu muitas batalhas, não poderia ser omitida no repertório de Sinhô. De 1926 é o seu maxixe Viva a Penha!:
E viva a Penha, e viva a Penha
De amores estou farto
Quem tiver dinheiro venha.
Isto é promessa
Que fiz à Santa
Pois o dinheiro
Tudo suplanta.
No mesmo ano lançaria o samba Corta-saia, em cujos versos se refere a vários acontecimentos ou motivos. Além de envolver uma bicharada, alude à música de pretos (provocaçãozinha). E no estribilho mais uma vez se reafirma na junção de frases populares admiravelmente agrupadas, fazendo sentido. Também aproveita o dito da época: É lá!:
É lá! É lá!
Que o gato arranha a gente
Tem serpente, cobra macho
Tem até bicho demente.
Se a moda pega
Do corta-saia
Acerta o passo
Cai no mangue
E sai da raia.
É lá! É lá!
Que o mestre é um macaco
Dança o urso e o elefante
Enquanto o burro cose o saco.
É lá! É lá!
Que tocam três tercetos
Deixa de haver função
Se o conjunto só der pretos.
É lá! É lá!
Que a zebra faz vergonha
Mal começa a trabalhar
Põe-se aos beijos com a cegonha.
Quando o urbanista Alfred Agache veio ao Rio, a convite do prefeito Prado Júnior, para levantar o plano da cidade, falou-se muito na demolição do morro da Favela. Estabeleceu-se o pânico entre os moradores do celebérrimo local. Sinhô correu em defesa da sua gente e compôs o belíssimo samba A Favela vai abaixo (1927):
Minha cabrocha, a Favela vai abaixo
Quanta saudade tu terás deste torrão
Da casinha pequenina de madeira
Que nos enche de carinho o coração.
Que saudades ao nos lembrarmos das promessas
Que fizemos constantemente na capela
Para que Deus nunca deixe de olhar
Por nós da malandragem e pelo morro da Favela.
Vê agora a ingratidão da humanidade
O poder da flor sumítica, amarela,
Que seu brilho vive lá pela cidade
Impondo o desabrigo ao nosso povo da Favela.
Luís Peixoto, que foi amigo dileto de Sinhô, lembra que segundo versão corrente, talvez espalhada pelo próprio sambista, este vendo cada vez mais forte a ameaça da derrubada do morro, resolveu ele mesmo se fazer intérprete dos moradores e valendo-se do seu prestígio popular foi à presença de um ministro de Estado a quem pediu para interceder junto ao prefeito, no sentido de não efetivar a demolição. O ministro gracejando com o compositor pediu-lhe para formular o pedido em samba. Sinhô aproveitou imediatamente a deixa e cantou baixinho A Favela vai abaixo, ainda não bastante divulgado. O ministro sorridente e algo emocionado prometeu interferir. E quem sabe se não o fez? Porque o morro lá ficou.
O último samba que compôs à véspera da morte, estranhamente extraviado, era O Homem da injeção, que focalizava recente caso policial em que estivera envolvido o capitalista Denizot. Um homem aparecera e em plena rua aplicara injeções num transeunte a quem seguira. O fato merecera abundantes registros dos jornais. Sinhô passou a sua última noite quase toda em claro compondo o samba. Teria projetado a vinda ao centro da cidade, na tarde em que morreu na barca, trazendo no bolso o seu último trabalho, infelizmente desaparecido do seu paletó. Seria o derradeiro comentário do pitoresco cronista musical do Rio.
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(1) Fileto Moura, que foi íntimo de Sinhô, acha que o samba foi inspirado num velho papagaio que o compositor tinha em casa. Embora a honestidade do informante, nunca me pareceu fundada a versão, que chega a ser ingênua. Os demais versos da letra são claros, principalmente a última estrofe. (2) Rolinha era o apelido injurioso dado a Artur Bernardes por jornais do Rio. (3) Marcha e não samba como por equívoco tem sido citada.
Fonte: "Nosso Sinhô do Samba" / Edigar de Alencar - Edição FUNARTE - Rio de Janeiro 1981.
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