domingo, março 25, 2012

Nosso Sinhô do Samba - Parte 5

Arquivos Almirante (Museu da imagem do Som)
Em grande parte das suas composições, Sinhô procurou fixar na pauta musical um fato, um acontecimento banal ou importante, um tipo da cidade. Foi o cronista melódico do Rio na década em que se viu vitorioso e se tomou figura marcante da então metrópole, para onde convergia tudo que havia de mais expressivo na vida nacional.

Sinhô contava amigos nas altas rodas. Desfrutava da intimidade de alguns figurões da época. E como todo bom carioca, deveria ser também político, isto é, ter as suas paixões e entusiasmos por nomes e vultos destacados do momento.

Uma das suas primeiras produções e das que obtiveram maior êxito foi o samba Fala meu louro, lançado para o Carnaval de 1920. Nos versos pitorescos o sambista alfineta Rui Barbosa. Depois da memorável campanha presidencial em que Epitácio Pessoa o derrotara, Rui discretamente se afastara da liça e se recolhera a justificado e repousante mutismo. Homem de tais proporções não poderia sair do cartaz.

Rui era o comentário de todos os dias, a notícia permanente, a caricatura infalível nas admiráveis revistas de sátira política do tempo. Por isso mesmo o ousado compositor o interpela graciosamente no seu grande samba, que logo se espalhou por todo o Brasil. É o Fala meu louro, também conhecido como A Bahia não dá mais coco, Papagaio louro e Quem é bom já nasce feito:

A Bahia não dá mais coco
para botar na tapioca
pra fazer o bom mingau
para embrulhar o carioca.

Papagaio louro
Do bico dourado
Tu falavas tanto
Qual a razão que vives calado?

Não tenhas medo
Coco de respeito
Quem quer se fazer não pode
Quem é bom já nasce feito.
(1)

A sátira feliz adocicava-se como o bom mingau com a nota estimulante e consoladora ao eminente derrotado. A expressão “coco de respeito” não era somente pitoresca, mas enaltecedora, como também o era o encaixe oportuno do dito popular:

Quem quer se fazer não pode
Quem é bom já nasce feito.


Com esse samba, Sinhô alargaria o caminho da sátira que serviria ao desfile de grande parte das cantigas populares do Rio. Mas a sua inclinação pelo comentário político ainda lhe criaria casos e ocasionaria aborrecimentos.

Com a marcha Fala baixo, Sinhô, embora disfarçadamente, faz alusões à política. A começar pelo título que é uma advertência sensata ante a censura policial da época. E nos versos as invocações a uma rolinha complicariam tudo, pois a palavra antes encontradiça na música popular tornara-se proibida. (2)

Quero-te ouvir cantar
Vem cá, rolinha, vem cá
Vem para nos salvar
Vem cá, rolinha, vem cá


O estribilhista emérito, conhecedor atilado do gosto popular, conseguiu notável êxito com essa marcha, (3) lançada ruidosamente nos festejos da Penha, em outubro de 1921. Mas nem tudo seriam glórias, e Sinhô foi depois procurado pela polícia e teve que se refugiar na casa de sua mãe, D. Graciliana, então moradora na Rua do Engenho de Dentro, 95.

Na história musical do compositor ocorreria fato mais sensacional. O seu samba Macumba (Gegê), lançado em 1922, seria interceptado pelo Estado Novo, de execranda memória, quase vinte anos mais tarde, porque nele se continha a palavra Gegê, de origem africana, e já então apelido popular e carinhoso do ditador Getúlio Vargas. O disparate era maior porque nada havia de ofensivo nos versos simples do compositor falecido em 1930, e considerado subversivo post-mortem:

Ai Gegê
Meu encanto
Eu só tinha medo
Se não tivesse um bom santo.


As cautelas policiais estadonovistas preferiram modificar o sambinha que ficara. E a palavra desrespeitosa — Gegê — foi substituída nas emissões radiofônicas por Ieiê ou meu bem...

O samba Fala meu louro igualmente gerou incidente policial-militar. Na Bahia, segundo nota publicada na Revista da Semana, em 29 de maio de 1920, numa festividade pública em Salvador, estudantes solicitaram à banda de música do 19º Batalhão de Caçadores que executasse o samba popularíssimo. Um tenente se julgou agravado e com várias praças reagiu à insolência. Mas, ao que parece, não houve mortos nem feridos.

Sinhô era um registrador sonoro dos acontecimentos que agitavam a sua cidade, o Rio da década de 20, por ele vivida tão intensamente. A capital federal naqueles anos contava pouco mais de um milhão de habitantes.

Em 1921 e até começos de 1922, torna-se famoso na crônica policial um bandido que era o terror do morro da Favela, alcunhado de Sete Coroas. Parece que o apelido se originara de um roubo que ao início da sua vida de marginal fizera de algumas coroas de um túmulo! Depois outras ocorrências e crimes lhe aumentaram o sinistro cartaz e o celerado tanto era temido quanto popular. Sinhô que já encaixara Rui no samba, aproveita a fama de Sete Coroas, de quem era amigo, e lança o samba perfil do criminoso. Obedecia assim ao impulso que o movia de perpetuar o fato na pauta musical:

É noite escura
Iaiá acende a vela
Sete Coroas
Bam-bam-bam lá da Favela.

E a polícia
Já tonteou
Sete Coroas
Meia dúzia já matou.

E o homenzinho
É perigoso
Sete Coroas
Nasceu no Barroso.


Sinhô deveria ter pretendido apenas aumentar a fama do valente, numa exaltação da sua coragem. Mas, como bem observou Almirante, ao invés de glorificar o salteador, tornou-o mais temido, aumentando o terror da sua figura e das suas façanhas.

Consta que Sete Coroas certa vez figurou num bloco carnavalesco organizado pelo sambista. A admiração deste seria natural posto que perigosa homenagem ao valente. O mesmo fascínio que os cangaceiros famosos exerciam junto a rapsodos nordestinos que lhes exaltavam feitos, aventuras, lutas e perversidades, nos romancetes rimados. Essa glorificação do valente seja ele um salteador ou um herói, é uma constante nos poetas e artistas do povo.

A fixação do fato ou da notícia na solfa é aspecto a realçar na produção de Sinhô. Seria ele nos dias de agora um compositor participante no melhor sentido da palavra, um tanto baratinada. Seus sambas e marchas não davam somente títulos às revistas teatrais; serviam como legendas de caricaturas famosas. J. Carlos estampou na Careta uma caricatura de Rui vociferando, enquanto uma velhota que representa a Convenção lhe solfeja:

Fala, fala, fala
meu bem
Eu não digo nada a ninguém.


Eram os versos primeiros do samba Confessa meu bem, grande êxito de Sinhô no Carnaval de 1919.

Qualquer acontecimento, incidente trivial no cotidiano da cidade servia ao compositor para o registro melodioso. De 1919 é o samba carnavalesco Tirando o retrato, a que não faltava o subtítulo — Nascimento, oia ele — no qual parece comentar algum fato ocorrido talvez na ladeira do Barroso:

Nascimento, oia ele
Que qué me dá
Por causa de um retrato
Que na ladeira não quis tirá.


Modas e costumes não escaparam à glosa musical de Sinhô No Carnaval de 1924 satirizava a moda de cabelo feminino aparado à inglesa, no samba Já-já:

O tal cabelinho à inglesa
Eu mandava raspar já-já
Depois lixava a cabeça
Até ela gritar ‘chegá!’


Embora fosse mais da música que do verso, temos que destacar no compositor a identificação permanente com o povo, a sua facilidade de transmitir-se através de expressões pitorescas que inventava ou de que se apropriava, ajustando-as magistralmente nas melodias nem sempre totalmente originais. Por vezes é esquisito na sua temática. Quase hermético para os de hoje. É que arrumava no verso e na pauta não somente queixas e recriminações como também as suas mágoas e alegrias, os seus amores e frustrações e, sobretudo os fatos banais e até o anedótico nem sempre publicável. Tal como no Caneca de couro (1925), no qual o título se entende picarescamente como o sexo da mulher:

É modo agora quando ferram o namoro
Beberem água na tal caneca de couro.

História antiga que está em moda
É raro aquele que não dá uma mão na roda.

Quem provoca e gosta fica doido e vira lobo
Fica maluco faz papéis até de bobo.


Em 1926 noutro samba — Pega-rapaz — volta a referir-se à moda de então:

Ó menina
Que moda é essa de seu vestido
Oi!
Curto na frente, comprido atrás
Isto é moda de pegar rapaz.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Ó menina
Que moda é essa de seu cabelo
Oi!
Curto na frente, raspado atrás
Isto é moda de pegar rapaz.


A Festa da Penha, campo em que venceu muitas batalhas, não poderia ser omitida no repertório de Sinhô. De 1926 é o seu maxixe Viva a Penha!:

E viva a Penha, e viva a Penha
De amores estou farto
Quem tiver dinheiro venha.

Isto é promessa
Que fiz à Santa
Pois o dinheiro
Tudo suplanta.


No mesmo ano lançaria o samba Corta-saia, em cujos versos se refere a vários acontecimentos ou motivos. Além de envolver uma bicharada, alude à música de pretos (provocaçãozinha). E no estribilho mais uma vez se reafirma na junção de frases populares admiravelmente agrupadas, fazendo sentido. Também aproveita o dito da época: É lá!:

É lá! É lá!
Que o gato arranha a gente
Tem serpente, cobra macho
Tem até bicho demente.

Se a moda pega
Do corta-saia
Acerta o passo
Cai no mangue
E sai da raia.

É lá! É lá!
Que o mestre é um macaco
Dança o urso e o elefante
Enquanto o burro cose o saco.

É lá! É lá!
Que tocam três tercetos
Deixa de haver função
Se o conjunto só der pretos.

É lá! É lá!
Que a zebra faz vergonha
Mal começa a trabalhar
Põe-se aos beijos com a cegonha.


Quando o urbanista Alfred Agache veio ao Rio, a convite do prefeito Prado Júnior, para levantar o plano da cidade, falou-se muito na demolição do morro da Favela. Estabeleceu-se o pânico entre os moradores do celebérrimo local. Sinhô correu em defesa da sua gente e compôs o belíssimo samba A Favela vai abaixo (1927):

Minha cabrocha, a Favela vai abaixo
Quanta saudade tu terás deste torrão
Da casinha pequenina de madeira
Que nos enche de carinho o coração.

Que saudades ao nos lembrarmos das promessas
Que fizemos constantemente na capela
Para que Deus nunca deixe de olhar
Por nós da malandragem e pelo morro da Favela.

Vê agora a ingratidão da humanidade
O poder da flor sumítica, amarela,
Que seu brilho vive lá pela cidade
Impondo o desabrigo ao nosso povo da Favela.


Luís Peixoto, que foi amigo dileto de Sinhô, lembra que segundo versão corrente, talvez espalhada pelo próprio sambista, este vendo cada vez mais forte a ameaça da derrubada do morro, resolveu ele mesmo se fazer intérprete dos moradores e valendo-se do seu prestígio popular foi à presença de um ministro de Estado a quem pediu para interceder junto ao prefeito, no sentido de não efetivar a demolição. O ministro gracejando com o compositor pediu-lhe para formular o pedido em samba. Sinhô aproveitou imediatamente a deixa e cantou baixinho A Favela vai abaixo, ainda não bastante divulgado. O ministro sorridente e algo emocionado prometeu interferir. E quem sabe se não o fez? Porque o morro lá ficou.

O último samba que compôs à véspera da morte, estranhamente extraviado, era O Homem da injeção, que focalizava recente caso policial em que estivera envolvido o capitalista Denizot. Um homem aparecera e em plena rua aplicara injeções num transeunte a quem seguira. O fato merecera abundantes registros dos jornais. Sinhô passou a sua última noite quase toda em claro compondo o samba. Teria projetado a vinda ao centro da cidade, na tarde em que morreu na barca, trazendo no bolso o seu último trabalho, infelizmente desaparecido do seu paletó. Seria o derradeiro comentário do pitoresco cronista musical do Rio.

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(1) Fileto Moura, que foi íntimo de Sinhô, acha que o samba foi inspirado num velho papagaio que o compositor tinha em casa. Embora a honestidade do informante, nunca me pareceu fundada a versão, que chega a ser ingênua. Os demais versos da letra são claros, principalmente a última estrofe. (2) Rolinha era o apelido injurioso dado a Artur Bernardes por jornais do Rio. (3) Marcha e não samba como por equívoco tem sido citada.

Fonte: "Nosso Sinhô do Samba" / Edigar de Alencar - Edição FUNARTE - Rio de Janeiro 1981.

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